Florianópolis (Wikimedia Commons/Wikimedia Commons)
Leo Branco
Publicado em 1 de dezembro de 2016 às 05h55.
Última atualização em 1 de dezembro de 2016 às 05h55.
São Paulo — O ano de 2016 tem sido duro para os 315 000 servidores públicos do Rio Grande do Sul. Desde fevereiro, eles estão recebendo o salário em parcelas. Há pouca chance de o 13o salário chegar integralmente antes do Natal. Nas contas do governo, só vai dar para pagar metade. O pior é que a penúria não é novidade: o pagamento do benefício de 2015 só terminou em julho, depois de o governador Ivo Sartori (PMDB) levantar um dinheiro extra com a venda da folha de pagamentos do estado.
A novela é uma faceta de uma crise financeira que chegou ao fundo do poço em novembro. Pela primeira vez na história, o governo gaúcho declarou estado de calamidade financeira, medida que facilita a tomada de recursos federais. O decreto foi acompanhado de um pacote de extinção de 14 órgãos públicos, entre secretarias, fundações e autarquias, e a privatização da companhia de energia estadual CEEE.
É bom lembrar que o Rio Grande do Sul não é o único com as finanças públicas encrencadas: o Rio de Janeiro declarou calamidade e prevê-se que Minas Gerais siga o caminho. O que chama a atenção é que, ali pertinho dos gaúchos, Santa Catarina vive outra realidade. O salário dos 156 000 servidores catarinenses está em dia. A primeira metade do 13o foi paga em julho e a segunda cairá na conta nos próximos dias, quase junto com o salário de dezembro, injetando 2 bilhões de reais na economia. Por que a situação é tão diferente entre vizinhos tão parecidos?
A economia dos dois estados sempre carregou muitas semelhanças. Ambos têm uma forte cultura empreendedora, herdada dos imigrantes europeus que ocuparam a região no século 19. Até recentemente, era o Rio Grande do Sul que tinha economia e serviços públicos mais sólidos — Santa Catarina chegou a ser jocosamente chamado de “o quintal do Rio Grande”. Agora a situação é inversa. Santa Catarina, com uma população equivalente a 60% da gaúcha, tem brilhado nas listas dos melhores destinos do país para fazer negócio.
Em 2016, no ranking de competitividade dos estados elaborado pela consultoria inglesa Economist Intelligence Unit, os catarinenses estão em terceiro lugar, enquanto os gaúchos amargam o nono lugar, sua pior colocação desde a primeira edição, em 2011. No estudo da consultoria Urban Systems sobre as 100 melhores cidades do país para investir em 2016, publicado com exclusividade por EXAME, dez são catarinenses (só São Paulo tem mais cidades: 40). Em 2014, eram oito.
No mesmo período, o Rio Grande do Sul ficou em quarto lugar, com seis cidades no ranking. Ou seja, quase 40% dos catarinenses moram em cidades que são referência para os negócios — ante 24% dos gaúchos. Entre os melhores locais para uma empresa crescer rapidamente na lista da organização Endeavor, que EXAME também publica com exclusividade, Santa Catarina emplacou Florianópolis (segundo lugar) e Joinville (quarto) à frente de Porto Alegre, a gaúcha mais bem colocada, que está em sétimo.
O básico para ter um bom ambiente de negócios é o governo conseguir pagar as contas, oferecer serviços de qualidade e manter políticas de atração de empresas. As constantes trocas de partido político no poder no Rio Grande do Sul não permitiram levar adiante uma agenda de competitividade. Desde que a reeleição passou a valer, em 1998, nenhum governador gaúcho foi reconduzido ao cargo ou fez seu sucessor — resultado de uma polarização com raízes históricas.
Já no século 19, com a Revolução Federalista, que dividiu o estado em duas forças (os chimangos, favoráveis à separação do resto do país, e os maragatos, opositores à secessão), os gaúchos acostumaram-se a conviver com a bipolaridade. O hábito virou até um verbo — “grenalizar” —, em referência ao clássico Grêmio x Internacional, para designar “impasses”. Com isso, na política, ora há uma agenda que incentiva o setor privado, ora é ampliada a presença estatal.
De 1995 a 1999, o governador Antônio Britto (PMDB) tentou modernizar a gestão com a concessão de 2 000 quilômetros de estradas à iniciativa privada e benefícios fiscais para atrair as montadoras Ford e GM. O sucessor, o petista Olívio Dutra, suspendeu os incentivos, o que levou a Ford a escolher a Bahia, em vez do Rio Grande do Sul, para instalar uma fábrica. (No fim de novembro, o governo gaúcho fechou um acordo com a Ford para receber 217 milhões de reais de indenização referentes a parte do crédito que o governo Britto havia dado à montadora para erguer a fábrica. O dinheiro vai ajudar a pagar salários de servidores.) Em 2013, o governo de Tarso Genro (PT) encerrou a concessão das rodovias. “A falta de continuidade arrebentou as finanças do estado”, diz a senadora gaúcha Ana Amélia (PP).
O cenário político catarinense teve menos incertezas. O mandato de Esperidião Amin (PP), de 1999 a 2003, foi a única ruptura de um ciclo marcado pela dominância do grupo político do falecido ex-governador Luiz Henrique Silveira (PMDB). Eleito em 2002, Silveira convidou os rivais do então PFL (hoje DEM e PSD) e do PP para o governo quatro anos depois. Hoje, apesar de enfraquecida, a aliança segue à frente do estado. Embora a pouca alternância seja criticada, o fato é que o arranjo manteve programas de governo. Exemplo é o incentivo à instalação de montadoras, que começou em 2008 e, mantido pelo sucessor Raimundo Colombo (PSD), resultou na abertura de uma fábrica da alemã BMW em 2014.
A consequência disso tudo é que as economias dos dois estados andam em ritmos diferentes. Desde 2002, o PIB de Santa Catarina cresceu 39%, ante 32% do Rio Grande do Sul, segundo o banco Itaú. Mais empresas foram abertas no lado catarinense: desde 2006, a base de negócios cresceu 23%; entre os gaúchos, só 4%. A participação catarinense na economia do país, de 3,8% há 14 anos, subiu para 4,2% em 2015. Já a fatia gaúcha caiu de 6,8% para 6,6%. Uma sensação de perda de relevância permeia as conversas com quem entende da economia gaúcha.
“Antes, Rio Grande do Sul e São Paulo eram ilhas de desenvolvimento”, diz Heitor José Müller, presidente da Fiergs, a federação das indústrias gaúchas. “O país inteiro evoluiu e nós ficamos parados.” Na Fiesc, que reúne as indústrias catarinenses, o discurso é mais animador. No começo do ano, a Fiesc criou o InvesteSC, agência para atrair empresas que funciona em parceria com o governo estadual: os técnicos da federação prospectam oportunidades enquanto servidores já correm com a papelada para o negócio se instalar logo.
Em oito meses, 80 empresas demonstraram interesse com projetos que, se concretizados, levarão 2,5 bilhões de reais ao estado. “A maioria pertence a setores promissores, como o de tecnologia”, diz Glauco José Côrte, presidente da Fiesc.
Em duas décadas, gaúchos e catarinenses encararam de maneira diferente o gasto público. O pacote anunciado pelo governador Sartori em novembro é uma tentativa drástica de resolver o inchaço do funcionalismo, problema criado por consecutivos governos perdulários. Segundo o Tesouro Nacional, o Rio Grande do Sul é o segundo estado que mais gasta com pessoal: o correspondente a 71% das receitas, índice bem acima da média nacional, de 59% — Santa Catarina compromete 57%.
A gastança gaúcha foi incentivada pela contabilidade criativa local, que permite o uso dos depósitos judiciais no pagamento de despesas correntes, como salários. Em 20 anos, os governantes gaúchos sacaram 20 bilhões de reais dessa fonte. “É um dinheiro que não é do governo, mas tem sido usado como se fosse”, diz o economista gaúcho Darcy Francisco dos Santos, secretário aposentado do Tesouro Nacional. A consequência é um endividamento crônico.
Desde que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi aprovada em 2000, as dívidas do Rio Grande do Sul nunca entraram no limite imposto pela lei, de três vezes a receita corrente líquida. Já Santa Catarina fez a lição de casa: desde 2002, a relação entre dívida e receita caiu de 185% para 45%, melhor do que a média dos estados, de 68%. Para isso, sucessivas reformas administrativas entraram em vigor na tentativa de prestar mais serviços com menos recursos.
Há três anos os funcionários de 16 hospitais e clínicas estaduais recebem um bônus por produtividade que elevou 41% os atendimentos com o mesmo quadro. Em novembro, o governo catarinense anunciou o fim de três estatais com funções equivalentes às de algumas secretarias. A economia deve chegar a 42 milhões de reais ao ano. “A ideia é sempre ver o que é necessário na máquina e, se não for, fechar”, diz o governador Colombo.
Uma vigilância cerrada sobre a eficiência do gasto público teria evitado medidas drásticas como as que o Rio Grande do Sul vem tomando desde o ano passado. No desespero de fechar as contas, o governo gaúcho aumentou o imposto sobre a circulação de bens e serviços, como energia, telefonia e combustíveis, de 25% para 30%. O resultado: menos competitividade (e um motivo a mais para migrar do estado). Segundo a Federasul, associação das 230 câmaras empresariais gaúchas, a cada dois dias um negócio fechou as portas no estado em 2015.
Entre os destinos prediletos esteve Santa Catarina, que manteve as alíquotas do ICMS em 25%. Quem fica em solo gaúcho colhe o prejuízo. É o caso da empresária Simone Leite, da Urano, fabricante de balanças eletrônicas sediada em Canoas, na Grande Porto Alegre. Com receitas na casa dos 80 milhões de reais ao ano, até 2015 a Urano figurava entre “as 200 pequenas e médias empresas que mais crescem no país”, lista da consultoria Deloitte publicada por EXAME.
Em 2016, o plano era elevar 3% as receitas e investir 4 milhões de reais em novos produtos. O tarifaço mudou tudo. Como precisou reajustar preços em plena crise, a Urano perdeu mercado para concorrentes de estados sem aumento de impostos. “Pelo ritmo das vendas, terei o pior resultado em 33 anos”, afirma Simone. “Cancelei os investimentos por causa da incerteza.”
Na ponta, quem paga a conta de um governo inchado é a população. A escalada da violência no Rio Grande do Sul é prova disso. No primeiro semestre de 2016, os latrocínios cresceram 35% em relação a 2015. Em dois anos, o número de presos cresceu 17% no estado, mas faltaram recursos para as cadeias: cenas de presos acomodados em viaturas espalharam-se pelo estado.
Em Santa Catarina, a prudência fiscal fez com que os índices de violência, também em alta, fossem combatidos com mais infraestrutura: neste ano, entrou em operação o primeiro presídio de segurança máxima do Sul, a um custo de 15 milhões de reais. No longo prazo, um governo com fôlego para investir fez com que os catarinenses tivessem indicadores sociais melhores do que os gaúchos. A expectativa de vida, que era igual nos dois estados, agora é de 78 anos para os catarinenses e de 77 para os gaúchos.
Até pouco tempo atrás, o Rio Grande do Sul tinha a menor mortalidade infantil do país. Agora o título é dos catarinenses, com 9,8 mortes por 1 000 partos. Se é numa crise que se aprende, o cenário atual oferece lições para o futuro. O pacote gaúcho, por mais doloroso que pareça, toca em tabus como o fechamento de estatais, a exemplo da emissora estatal de televisão. Não -custa lembrar que o governo gaúcho é dos poucos que ainda têm um banco comercial, o Banrisul. “Estamos olhando estrategicamente para o futuro”, afirma o governador Sartori.
“É uma questão de sobrevivência.” A lição vale também para os catarinenses: embora o governo hoje esteja com as contas em dia, novos ajustes serão necessários — as despesas com pessoal cresceram 46% desde 2012, puxadas por mais gastos com aposentadorias. No começo de 2016, o Tribunal de Contas catarinense questionou uma transação financeira feita em 2015: 615 milhões de reais em impostos a ser pagos pela Celesc, companhia estadual de energia, foram depositados num fundo do governo para investimentos sociais.
Na prática, a medida diminuiu o repasse obrigatório de parte dos tributos a municípios, ao Legislativo e ao Judiciário. Segundo o governo catarinense, a prática é autorizada pelo Confaz, conselho de secretários estaduais da Fazenda. Mas o repasse foi suspenso para evitar conflito entre os poderes.
Ainda é cedo para dizer que os catarinenses vão manter as conquistas em 2017 — e se os gaúchos conseguirão, enfim, ter um Natal mais tranquilo. Mas uma coisa é certa: os tempos de descontrole fiscal estão com os dias contados no Sul do país — e, espera-se, em todo o Brasil.