Aberta em São Paulo desde abril, a Loja Icônica da TIM funciona como casa inteligente para mostrar inovação na prática ao consumidor (Gustavo Scatena/Imagem Paulista/Divulgação)
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Publicado em 5 de agosto de 2025 às 06h00.
Fazer o consumidor se sentir em casa sempre foi uma das grandes missões do varejo. Conhecer o freguês pelo nome, saber suas preferências e até ser capaz de sugerir algo novo são experiências que remontam aos tempos de balcões e do comércio feito no fio do bigode. Com o passar das décadas e a priorização de conceitos como produtividade e eficiência, esse hábito se tornou raro. Mas, agora, diversas marcas estão sendo capazes de, com uma ajudinha da tecnologia, recuperar o terreno perdido. Graças à utilização de sensores, câmeras e dispositivos conectados, empresas dos mais variados setores têm apostado numa abordagem capaz de agregar personalização e escala, sem perder o calor humano.
Em alguns casos, esse calor é literal: as lojas podem não só regular a temperatura de acordo com as preferências do consumidor como até mesmo ter uma iluminação destacada para os produtos que mais combinam com ele. Antes mesmo de pedir ajuda, um vendedor já pode saber o histórico de compras, o tamanho das roupas e até mesmo os itens anteriormente visualizados pela internet. Não é feitiçaria, é tecnologia, em um resultado direto da chamada internet das coisas (ou IoT, na sigla em inglês que notabilizou o conceito). Com ela, objetos físicos podem ganhar conectividade e inteligência — e no varejo isso significa integrar operações, marketing e relacionamento com o cliente como nunca antes visto.
Novo conceito
Por enquanto, essa ainda é uma experiência para poucos. A Cacau Show, por exemplo, inaugurou na segunda quinzena de julho a primeira loja conceito com utilização intensiva da tecnologia. Localizado no Shopping Pátio Higienópolis, na região central de São Paulo, o espaço utiliza mapas de calor e câmeras com IA e análise de expressões faciais para entender o sentimento dos consumidores diante da vitrine. “Se a pessoa sorri para um produto ou passa mais tempo na frente de uma prateleira, isso retroalimenta nosso layout e a nossa comunicação”, explica Daniel Roque, vice-presidente de negócios da marca.
Sensores de presença e contadores de fluxo, presentes nos bastidores da loja, ajudam na melhor alocação da equipe, em ajustes de iluminação e na reorganização de produtos conforme os padrões de circulação. A loja conta ainda com totens de autoatendimento, nos quais os consumidores podem inserir os dados do programa de fidelidade Cacau Lovers para aproveitar vantagens e experiências no local — hoje, o serviço tem cerca de 30 milhões de usuários cadastrados. “Sentimos que precisávamos fazer algo mais imersivo e conectado, indo além do chocolate e do cacau”, diz Roque.
Daniel Roque, VP da Cacau Show: ele defende adotar novas tecnologias no varejo com foco no retorno financeiro (Cacau Show/Divulgação)
Segundo ele, a nova loja nasceu com base em uma demonstração feita pela empresa, em parceria com a consultoria Gouvêa de Souza, na feira Latam Retail Show. “Nossa meta era construir uma operação que entregasse valor sobre a perspectiva de tecnologia, ao mesmo tempo que turbinasse o vendedor para ter mais influência no relacionamento com o cliente”, afirma o executivo, que projeta começar a oferecer algumas das inovações presentes na loja aos franqueados da marca no intervalo de seis a 12 meses.
Até lá, a empresa colocará à prova suas expectativas de resultados: aumentar o tíquete médio, ampliar a frequência de visitas (hoje os clientes mais engajados vão até quatro vezes mais às lojas, o que também se reverte em mais vendas, diz a empresa) e entregar uma experiência que justifique o deslocamento físico em tempos de e-commerce. “Nosso business case projeta 35% de incremento em vendas nessa unidade, além de uma elevação no NPS de 81% para 90%”, afirma Roque, sem perder de vista o retorno financeiro. “Sem olhar para o ROI [retorno sobre o investimento], todo projeto desses vira apenas um espasmo — e o varejo não pode ser um espasmo”, diz.
Reputação em foco
Quem também apostou na tecnologia para transformar sua relação com o consumidor foi a TIM, que inaugurou em abril uma flagship na Rua Oscar Freire, em São Paulo. Projetado como uma casa inteligente, com direito a comedouros para pets automatizados, câmeras conectadas, iluminação responsiva e ambiente 100% ligado ao 5G, o espaço pretende mostrar ao consumidor o poder da inovação, sem complicação. “Queremos que as pessoas entrem e fiquem ali o máximo de tempo, sem a pressão de fazer uma compra e entendendo que a internet das coisas não é um bicho de sete cabeças”, diz Fábio Avellar, vice-presidente de receitas da operadora.
Chamado de Loja Icônica, o estabelecimento tem ainda um café, um estúdio de podcasts e um espaço gamer, além de receber workshops semanais para demonstrar o funcionamento de soluções de IoT. “É uma iniciativa simples, mas que tem resultado em um maior engajamento do consumidor com a marca e no aumento das vendas”, diz Avellar, que vê o esforço de reputação de marca como principal iniciativa do local. “A Loja Icônica não é focada 100% em resultados comerciais, mas observamos que o cliente passa mais tempo ali do que em uma loja normal — e isso acaba se convertendo em resultados.”
Flagship da Cacau Show no Pátio Higienópolis: uso de truques, como câmeras com IA, para atrair clientes (Cacau Show/Divulgação)
Infraestrutura
Os números de mercado mostram que a tendência é global: segundo estimativas da consultoria Fortune Business Insights, o mercado de soluções de IoT para o varejo deve girar em torno de 70 bilhões de dólares em 2025, uma alta de 22% na comparação com 2024. Entre os setores que mais devem receber recursos estão temas como etiquetas de identificação por radiofrequência (RFID, na sigla em inglês) e computação nas bordas.
As etiquetas, por exemplo, podem ser usadas para controlar estoque, ajudando na redução de perdas e na acurácia do inventário — algo especialmente útil em um universo de multicanalidade. Já a computação na borda traz como paradigma o processamento dos dados junto com os próprios dispositivos, e não na nuvem, reduzindo custos de hospedagem e infraestrutura.
Para que tudo isso funcione, porém, é necessária uma infraestrutura robusta — e segura. “A conectividade é essencial, mas cada sensor, câmera ou totem também é uma porta de entrada digital. Por isso, a cibersegurança precisa estar no centro da estratégia de IoT no varejo”, alerta Fernando Gambôa, sócio-líder de consumo e varejo da consultoria KPMG no Brasil e na América do Sul.
Na visão de Gambôa, outro tema que precisa ser levado em conta é a privacidade — obedecendo a legislações como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Segundo ele, leitura facial, medição de comportamento e captura de dados físicos exigem consentimento claro e governança de dados robusta. “Não adianta usar inteligência artificial para encantar se você perde a confiança do cliente. O uso consciente dos dados é hoje um diferencial competitivo”, afirma o sócio da KPMG.
Muralha da China
Além das marcas, o jogo da IoT para o varejo e para o marketing abre inúmeras oportunidades para quem deseja prestar serviços para empresas dos mais variados setores, sem necessariamente aparecer para o consumidor final. Um bom exemplo é o da uruguaia Scanntech, que tem uma rede de 60.000 lojas de varejo alimentar conectadas no Brasil e lê mais de 13,5 bilhões de cupons fiscais por ano. Fundada há três décadas, mas presente no Brasil há oito anos, a companhia é dona de um software que se instala na boca do caixa e lê os tíquetes de compra, capturando dados para uma série de soluções — que podem ir da precificação dinâmica à reposição de estoque, com auxílio de algoritmos de IA.
Fernando Gambôa, da KPMG: ética e segurança precisam estar na pauta das marcas (KPMG/Divulgação)
“Nosso foco é mudar o DRE do varejista com inteligência real, acionável e granular”, afirma Benny Szylkowski, CEO e cofundador da companhia. Graças ao sistema da Scanntech, varejistas podem saber, por exemplo, há quantos dias determinado item não é vendido — o que pode indicar ruptura com o fornecedor ou um problema de abastecimento.
É possível também ter acesso ao preço médio de um produto em certa região geográfica — a empresa, porém, não identifica o nome dos competidores, uma vez que trabalha com cerca de 90% do mercado. Mesmo sem a identificação, os resultados são significativos: em um case recente, uma grande rede supermercadista descobriu que o segundo produto mais vendido de uma categoria numa região simplesmente não estava cadastrado em seu sistema. A partir do contato com o fornecedor, bastou incluí-lo corretamente para que a categoria registrasse um salto de 3 milhões de reais em vendas no mês seguinte.
Além de atuar na gestão de sortimento e precificação, a Scanntech também tem soluções de promoções que conectam o varejo à indústria. Outro destaque é uma ferramenta que mede o fluxo de pessoas nas lojas, compara os resultados com a média de mercado e permite campanhas de mídia offline com atribuição digital. “Hoje já fazemos atribuição de mídia digital no mundo físico com base em cupons e perfis de consumo. Isso permite saber, por exemplo, se uma campanha feita nas redes sociais de fato levou mais gente para a loja”, diz Szylkowski, em exemplo claro de que a multicanalidade deve ir muito além do “clique e retire”.
Caio Brito, da Doris: “borrar” a fronteira entre o varejo físico e o e-commerce de vestuário (Doris/Divulgação)
Espelho, espelho meu
Quem também aposta no omnichannel é a startup brasileira Doris, criada pelo empreendedor serial Marcos de Moraes — o mesmo por trás de marcas como o portal Zip.net e a cachaça Sagatiba. Fundada há quatro anos, a empresa busca “borrar” a fronteira entre o varejo físico e o e-commerce de vestuário. “A Doris é como um provador inteligente e portátil”, diz Caio Brito, diretor comercial da empresa, presente em quatro países e com cerca de 40 clientes atualmente, incluindo marcas como Reserva, Aramis e Track&Field.
A Doris trabalha com diferentes soluções: no universo digital, basta o usuário enviar uma foto sua de corpo inteiro para que o sistema crie um avatar virtual, a partir de medições de mais de 30 pontos diferentes. Com o modelo criado, a plataforma é capaz de indicar não só o tamanho ideal de uma peça de roupa com até 97% de acurácia como também demonstrar o caimento de diferentes numerações naquela pessoa. Além disso, a Doris pode sugerir itens e acessórios que complementem aquele look, ampliando o tíquete médio e a quantidade de peças vendidas em uma transação.
Já no varejo físico, a companhia trabalha com o Magic Mirror: trata-se de um espelho inteligente que pode tirar fotos dos usuários em tempo real, além de simular combinações de roupas ao vivo. Se o consumidor desejar, ele também pode inserir sua conta no dispositivo e até mesmo enviar uma foto de outra pessoa — facilitando o trabalho na hora de dar um presente para alguém querido, por exemplo.
“Nas lojas que usam o Magic Mirror, temos visto um aumento de até 30% na conversão e uma queda significativa nas trocas por erro de tamanho”, afirma Brito. Já no e-commerce, a conversão de produtos cresce em média 2,5 vezes quando as empresas passam a usar a Doris. Além disso, de maneira geral, a companhia vê crescimento de até 60% no tíquete médio de seus clientes. Os dados também geram ganhos operacionais relevantes: com base nas medidas reais dos consumidores, as marcas podem planejar melhor suas coleções, reduzir desperdícios e até otimizar o uso de tecidos na confecção.
“É uma tecnologia que melhora a experiência do cliente e também a eficiência da cadeia como um todo”, afirma Brito, que também conecta os dados da Doris a campanhas de marketing — um exemplo pode ser o envio por e-mail de um look personalizado no avatar de cada cliente. Para faturar, a companhia que tem cerca de 50 colaboradores tem modelos de negócios variados: no e-commerce, a cobrança pode ser por assinatura fixa ou por comissão em caso de sucesso; já o Magic Mirror tem um custo de locação por projeto.
Ambos os sistemas já estão sendo exportados. No mercado árabe, por exemplo, a Doris enxerga uma oportunidade para superar uma questão cultural: em muitos países, as mulheres enfrentam restrições ou até mesmo proibições para provar roupas em lojas. Até por causa da expansão internacional, a empresa começa a considerar sua primeira captação de investimentos, se preparando para uma nova era.
Não é só ela: com sensores, espelhos e bilhões de dados em jogo, o varejo brasileiro parece estar diante de uma transformação sem volta. Se antes a tecnologia parecia uma ameaça às lojas de tijolo e cimento, agora ela é aliada numa missão secular: fornecer uma experiência diferente para cada consumidor. Ou, como resume Fábio Avellar, da TIM, “o ponto de venda físico não morreu nem vai morrer, mas precisa se adaptar”. “Mas o cliente não quer ter de pegar uma senha em um papelzinho e mudar de fila para pagar sua compra. Ele quer um espaço tecnológico junto com o contato com os vendedores”, diz. ☉