Revista Exame

Sobre reformas, covid-19 e gafanhotos

O governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite toca uma agenda ambiciosa de reformas. Depois da previdenciária e a administrativa, agora é a tributária

Eduardo Leite (Felipe Dalla Valle/Palácio Piratini/Divulgação)

Eduardo Leite (Felipe Dalla Valle/Palácio Piratini/Divulgação)

LB

Leo Branco

Publicado em 30 de julho de 2020 às 05h00.

Última atualização em 3 de agosto de 2020 às 06h15.

O mais jovem governador a ocupar o Palácio do Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, o tucano Eduardo Leite, de 35 anos, vem apresentando uma ambiciosa agenda de reformas aos gaúchos. Por isso, chamou a atenção de lideranças políticas em outras partes do país, a ponto de ser considerado um nome do PSDB na corrida presidencial de 2022 — assunto que, por ora, ele desconversa. Em janeiro, Leite aprovou na Assembleia Legislativa gaúcha um pacote para aumentar as contribuições previdenciárias de boa parte dos servidores públicos gaúchos. Além disso, endureceu as regras de promoção salarial de professores e policiais — duas categorias numerosas e com sindicatos estridentes.

Tudo isso na tentativa de minimizar o rombo nas contas públicas gaúchas, uma das mais estranguladas do país. Antes da pandemia, quase 80% da arrecadação de impostos ia para o salário do funcionalismo. Agora, com a crise econômica, o déficit projetado para as contas de 2020 deverá ser de 6 bilhões de reais — o dobro de 2019 e perto de 15% da arrecadação anual.

Em meio à situação dramática, Leite deve encaminhar em agosto uma proposta de reforma tributária para “resgatar a competitividade” do estado. A ideia é reduzir impostos sobre o consumo e, na outra ponta, rever isenções fiscais, como as que incidem nos produtos da cesta básica. A discussão tributária vai ocorrer em meio à escalada da covid-19 no Rio Grande do Sul. Com mais de 60.000 casos, o estado é atualmente um dos epicentros da pandemia no Brasil. A doença afetou o próprio Leite, diagnosticado em 24 de julho. Até o fechamento desta edição da EXAME, Leite passava bem, apenas com sintomas leves, como cansaço e dor de cabeça. Um dia antes do diagnóstico, concedeu esta entrevista, por telefone, sobre os planos para a reforma e para o combate à pandemia no estado.

Seu governo está propondo uma reforma tributária em meio à escalada da covid-19 em seu estado. É o momento correto para essa discussão?

Na verdade, a gente queria ter feito antes essa reforma. Desde o início tivemos reformas profundas no meu governo. Fizemos privatizações no primeiro semestre do ano passado. Depois começamos um debate sobre a reforma da Previdência e a administrativa. Mexemos ao mesmo tempo na carreira de policiais e de professores, o que não foi fácil. Pretendíamos iniciar a reforma tributária em abril, mas a pandemia atrasou isso. Agora queremos fazer a reforma até setembro para ela vigorar a partir do ano que vem. Precisamos de competitividade no Rio Grande do Sul. Para isso, nosso modelo busca desonerar o consumo e a produção, desonerando especialmente o ICMS [imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços, principal fonte de receita dos estados].

Onde exatamente se desonera no ICMS?

A reforma vai em dois sentidos: simplificar o pagamento de impostos e reduzir a cobrança sobre alguns produtos. As alíquotas de combustível, hoje em 30%, irão para 25%. Isso deverá reduzir em 27 centavos o preço da gasolina. O mesmo deverá ocorrer na energia elétrica e nas comunicações. Por outro lado, estamos acabando com algumas isenções fiscais [para compensar a queda na arrecadação].

O senhor pretende retirar os incentivos fiscais sobre a cesta básica. Isso não penalizaria as famílias mais pobres?

O benefício para a cesta básica tem a intenção de favorecer o público de mais baixa renda, mas acaba sendo injusto do ponto de vista tributário. Na medida em que não dá para classificar o que o rico ou o pobre comem, os alimentos como um todo estão desonerados. O estado abre mão de receita para um efeito prático menor sobre a população de baixa renda. O que estamos propondo, portanto, é: em vez de isentar o imposto, vamos devolver o imposto às famílias de baixa renda. Com a tecnologia atual, dá para fazer isso com o cadastro da nota fiscal eletrônica. As famílias de baixa renda poderão pedir a devolução do imposto pago por elas. Isso vai reduzir a carga tributária das famílias com renda de até três salários mínimos.

Mas como seria esse mecanismo de transferência de renda?

A pessoa vai fazer suas aquisições e, se ela tiver uma renda de até três salários mínimos, terá a devolução garantida de até 30 reais por mês mais uma parcela variável, de acordo com as notas fiscais que tiver solicitado com seu CPF. A ideia é estimular as pessoas a pedir nota fiscal, porque isso ajuda a combater a sonegação. O estado projeta devolver até 500 milhões de reais em impostos por ano. Isso com certeza vai estimular a economia, porque nas mãos das famílias de baixa renda o valor vira consumo.

Concentração de gafanhotos: uso de defensivos agrícolas para espantar ou matar a ameaça às lavouras | Governo de Córdoba/Divulgação (Montagem)

A situação fiscal, que já não estava boa antes da pandemia, piorou com a crise. É possível pensar em desonerações?

O que estamos fazendo é uma reorganização do sistema tributário. Em nossos cálculos, o resultado será uma receita igual à atual, porém com uma tributação melhor e mais justa. Do outro lado, queremos ter alterações em benefícios fiscais sobre itens como insumos agrícolas. Nossa proposta seria que pagassem 10% do imposto devido. Ou seja, se o imposto devido fosse de 17%, ficaria 1,7% de determinado item em contribuição para a sustentabilidade fiscal do estado. É importante, inclusive, para o agronegócio, uma vez que um estado com dificuldades em promover investimentos não apresenta competitividade.

O governo Bolsonaro também está tentando avançar com uma reforma tributária dos impostos federais. Há quem diga que os impostos estaduais deveriam ter entrado na proposta. O senhor concorda?

Entendo que a proposta precisa avançar para uma reforma que abarque os impostos estaduais e municipais. É fundamental que esse debate avance no Congresso Nacional. Sei que o assunto é complexo e, por isso, já estou fazendo minha reforma independentemente da nacional. O ICMS é um imposto moribundo, digamos, pela mudança da natureza das atividades econômicas e pelo avanço dos serviços. Enquanto os municípios veem crescer o imposto sobre serviços [ISS, cobrado pelas prefeituras], os estados veem um crescimento bem mais lento ou até uma estagnação do ICMS por causa da mudança de realidade das atividades econômicas. Então, isso vai ter de ser discutido, porque essa mudança está acontecendo. Por outro lado, essa simplificação é fundamental para os empreendedores, especialmente pelos investimentos estrangeiros que o país seria capaz de atrair e que se afastam diante da enorme complexidade do nosso sistema tributário, com essas divisões entre estados, municípios e a União. Os impostos são de difícil compreensão para os investidores.

Sobre a retomada das atividades econômicas. O modelo gaúcho de distanciamento social foi inovador por ilustrar o risco da doença por meio de bandeiras e protocolos. Por muito tempo o Rio Grande do Sul esteve em situação tranquila em comparação com outros estados. Hoje, é um dos epicentros da doença no Brasil. A estratégia deu errado?

De forma alguma. Nosso modelo permitiu justamente que o estado estivesse sem restrições econômicas, ou com restrições menores, durante quase 60 dias, pelo menos. E ele também permite que boa parte das regiões esteja sem restrições, apenas aquelas que efetivamente precisem. Nós analisamos 11 indicadores, os quais, reunidos, nos apresentam os riscos com base na evolução do contágio e na capacidade de atendimento de cada região. Então, o modelo nos ajudou a manter praticamente todo o estado aberto durante 60 dias, em abril, maio e boa parte de junho. Com o aumento dos casos da doença, o governo tomou medidas restritivas. Isso nos dá muita segurança para frear a retomada na proporção necessária. O momento mais difícil que o Rio Grande do Sul vive ainda é melhor do que a situação que se observa em outros estados. Temos aqui uma taxa de mortalidade bastante menor. Está crescendo, é verdade, mas ainda é menor do que a de outros estados. Além disso, temos uma das menores taxas, se não a menor, de casos para cada 100.000 habitantes do país.

Por que, então, os casos aumentaram? Faltou engajamento aos protocolos?

Não faltou. Agora, está sendo demandado maior distanciamento. A gente não obriga as pessoas a estar distantes, a gente restringe as atividades. Com essa restrição, pretende-se ter menos pessoas circulando e, consequentemente, um nível maior de distanciamento. Claro que isso se torna especialmente difícil por causa do nível de contestação e pela politização que o tema acabou adquirindo. Temos uma grande contestação de setores econômicos reforçada por discursos políticos. Sem dúvida isso compromete a condução de um distanciamento social mais adequado para evitar o crescimento dos casos de covid-19 e para estabilizar esse quadro.

O Rio Grande do Sul também lida, agora, com a ameaça de uma nuvem de gafanhotos vinda da Argentina. Como avalia a situação?

Ano difícil, este. Não bastasse a crise fiscal do estado, tivemos forte estiagem no início do ano, a maior dos últimos sete anos, que comprometeu nossas lavouras de soja. Além da pandemia, tivemos ciclone-bomba e ameaça de gafanhotos. Definitivamente, 2020 não está sendo um ano fácil para o Rio Grande do Sul.

Qual é a resposta para o problema dos gafanhotos?

Uma equipe de fiscais na fronteira monitora o deslocamento da nuvem e temos o apoio da aviação para, se for o caso, aplicar defensivos que dispersem a nuvem ou parte dela. Essa nuvem se desloca com enorme variação, segundo condições climáticas e direção do vento.

O defensivo mata os gafanhotos?

Não sou especialista, mas tenho a impressão que, por matar uma parte, ele ajuda a dispersar os demais. Se o defensivo sozinho fosse suficiente, a Argentina e o Uruguai já teriam resolvido o problema. Ele certamente ajuda a reduzir os danos. Nossa equipe está mobilizada e tem o apoio do Ministério da Agricultura.

Nas últimas semanas, o senador José Serra e o ex-governador Geraldo Alckmin, dois caciques de seu partido, estiveram às voltas com denúncias de corrupção. Como os episódios afetam o futuro do PSDB?

Acho que a Justiça tem de ser uma só para qualquer político, de qualquer partido. Da mesma forma, também acho que o direito à defesa também tem de ser concedido a todos. Você não vê nas minhas manifestações ataques nem contentamento com episódios de outros políticos de outros partidos envolvendo denúncias ou investigações. Acho apenas que o país precisa de sobriedade institucional. Nunca foi meu estilo atacar políticos de outros partidos por causa de denúncias ou investigações, porque entendo que esse é um papel que cabe à Justiça. O país precisa de sobriedade institucional.

O que isso quer dizer, especificamente?

Há uma polícia que investiga, há o Ministério Público que denuncia, se for o caso, e há um Judiciário que julga, e todos eles estão trabalhando. Há uma investigação policial, uma oferta de denúncia, mas há também a oportunidade de esclarecimento. Entendo que tanto o ex-governador Alckmin quanto o ex-governador Serra, assim como qualquer homem público, precisam esclarecer os fatos sobre as doações de campanha, e tenho a certeza de que farão isso com a serenidade e a segurança que a vida pública de cada um deles apresenta. Essa é a sobriedade necessária.

Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: no início do ano, os deputados chancelaram projeto do governo Leite com regras mais duras para promoção e cálculo da aposentadoria | Divulgação

Quando o senhor fala em sobriedade institucional, faz referência implícita à falta dela no governo Bolsonaro?

O presidente Jair Bolsonaro é, na Presidência, o que foi ao longo de sua vida pública: polêmico. Entendo que, para exercer um mandato no Executivo, há que ter mais sobriedade e capacidade de diálogo. Mas não foi por esses atributos que ele se elegeu. Ele foi conduzido ao cargo pelo seu estilo. Meu estilo é outro, completamente distinto, mas respeito a legitimidade dele. Busco trabalhar com o presidente Bolsonaro em prol da população, dos brasileiros que estão no meu estado, para os quais nós dois governamos. Não é meu papel fazer oposição ao presidente, mas é certamente meu papel apresentar com clareza as divergências que temos. Acho que essa postura radical, de enfrentamento e de alimentar a ideia de que há uma guerra do bem contra o mal, é algo que já foi visto em outros tempos no país, especialmente pelo lado do Partido dos Trabalhadores, mas acaba prejudicando a possibilidade de realizarmos mais reformas. A reforma da Previdência seguiu adiante porque era uma pauta que já vinha anteriormente. Agora, vamos ver. Torcemos para que os conflitos que o governo federal estabeleceu politicamente não prejudiquem e não atrasem ainda mais as outras reformas tão necessárias ao país. Já estão atrasando, na verdade. A reforma tributária e a reforma administrativa — que nem sequer foi para o Congresso — são muito importantes para o Brasil nesta retomada pós-pandemia e vão demandar uma grande capacidade de articulação para ser aprovadas. Espero que haja menos conflitos. Não sei se é possível esperar, mas torço para que haja menos conflitos.

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