Revista Exame

Sobre biquínis, guerras e estatísticas

Vivemos num mundo viciado em estatísticas — e as estatísticas provam que elas estão quase sempre erradas

A GUERRA NO IRAQUE: manipular estatísticas de combate é uma tradição (Spencer Platt /Getty Images)

A GUERRA NO IRAQUE: manipular estatísticas de combate é uma tradição (Spencer Platt /Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.

"Não consegui nenhum número confiável, então acabei inventando esse aqui. Estudos mostram que números precisos não são mais úteis que os números que você inventa.

— Quantos estudos mostram isso?

— 87."

A realidade teima em demonstrar a precisão da crítica contida no diálogo acima, retirado da tirinha de Dilbert. Em 2006, o jornalista americano Carl Bialik decidiu investigar aquele que era o número mais usado para medir o tamanho do mercado mundial de pornografia infantil. Segundo os "estudos", esse mercado movimentava 20 bilhões de dólares por ano. A cifra era citada com frequência por jornais como o New York Times, aparecia em estudos acadêmicos e chegou a dar as caras até mesmo em publicações do Congresso americano sobre o tema. Bialik, desconfiado, queria ouvir o autor do tal estudo e analisar a metodologia que o havia levado à conta final. Sua primeira parada foi o Congresso. Um funcionário informou que o número vinha de um estudo do Centro para Crianças Desaparecidas e Exploradas. Um porta-voz da instituição creditou a informação à McKinsey. A consultoria, por sua vez, disse ter pescado a cifra de um relatório de uma ONG — que apontou o FBI como a fonte primária. Mas um representante do FBI afirmou que o órgão jamais teve qualquer coisa a ver com a misteriosa estimativa. A conclusão foi que alguém havia inventado o número, que, depois de ser repetido por jornalistas e acadêmicos crédulos, estava ajudando a moldar a reação do governo ao problema da pornografia infantil.

O perigo representado pelas estatísticas é o tema do livro Sex, Drugs, and Body Counts ("Sexo, drogas e contagem de corpos", numa tradução livre), organizado pelos cientistas políticos Peter Andreas e Kelly Greenhill. Vivemos, eles escrevem, num mundo viciado em números, e aquilo que não pode ser medido "não existe". Assim, para manipular a opinião pública e fazer avançar seus interesses, governos, agências multilaterais e ONGs se especializaram na invenção de estatísticas. Esse não é um problema novo. Há décadas o professor americano Aaron Levenstein comparou as estatísticas aos biquínis (o que mostram é interessante, mas o que escondem é fundamental), e já em 1840 o historiador escocês Thomas Carlyle afirmava que um bom político poderia provar qualquer coisa com um punhado de números. O grave, afirmam Andreas e Greenhill, é que o fetiche estatístico nunca foi tão agudo quanto é agora. A velocidade dos meios de comunicação aumenta a demanda por números, e a multiplicação de grupos de lobby torna farta a oferta de estatísticas. A numeralha é transformada em manchetes e imortalizada na internet. Uma busca no Google mostra que a esdrúxula estatística sobre o mercado de pornografia infantil ainda aparece, por exemplo, no verbete sobre o tema na Wikipedia.


Os professores se concentram em dois tipos de estatística — as que calculam o impacto de guerras e atividades ilegais, como pedofilia e tráfico de drogas. Distorcer dados sobre mortos em combate é uma tradição de governos metidos em guerras, mas hoje em dia até a oposição usa táticas semelhantes. Um dos truques mais utilizados por quem manipula estatísticas é conferir aos números um caráter supostamente científico — basta estar associado a uma instituição renomada para que um estudo ganhe um jeitão de verdade. Em 2006, pouco antes das eleições americanas, a universidade Johns Hopkins divulgou que mais de 600 000 civis haviam morrido na Guerra do Iraque. Logo se descobriu que, apesar do carimbo da instituição, pouco havia de científico no levantamento, cuja função oculta era aumentar a oposição à guerra.

Assim como o inferno, o mundo das estatísticas manipuladas está repleto de boas intenções. Impera, dizem os autores, a ideia de que fins nobres justi ficam números mentirosos. Na prática, causas como o combate à pedofilia ou a guerra ao narcotráfico são baseadas em dados errados. Há estimativas para todo lado: tamanho do mercado mundial de drogas, impacto do contrabando, prejuízos causados pela pirataria, volume anual do tráfico de pessoas. Poucas resistem a um exame minimamente detido, sobretudo pelo fato de ser quase impossível medir atividades ilegais. São chutes, portanto. Estatísticas manipuladas criam problemas reais, escrevem os autores. Guerras injustificáveis se prolongam; o dinheiro da ajuda humanitária é desviado por ditaduras que inflam dados sobre o drama de refugiados; governos gastam dinheiro onde não devem. Os autores recomendam algumas perguntas básicas antes que aceitemos um nú me ro como confiável. Quem o produziu? Para quem? Como fizeram a conta? Finalmente, há que se dar me nos bola para números. "Nem tudo que conta pode ser contado", disse o físico Albert Einstein, resumindo a questão com um jogo de palavras. "E nem tudo que pode ser contado conta."


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