Revista Exame

7 passos para vencer o crime em todo o Brasil

A intervenção na segurança do Rio expõe a debilidade da atuação do Estado brasileiro contra criminosos. Mas há um caminho para melhorar. O custo: R$ 5 bi

Polícia em Pelotas (RS): força-tarefa com a prefeitura reduziu roubos em 9% desde 2017 / Divulgação (Divulgação/Divulgação)

Polícia em Pelotas (RS): força-tarefa com a prefeitura reduziu roubos em 9% desde 2017 / Divulgação (Divulgação/Divulgação)

LB

Leo Branco

Publicado em 1 de março de 2018 às 05h36.

Última atualização em 2 de agosto de 2018 às 15h52.

São Paulo — O presidente Michel Temer tomou, às pressas, na noite de 15 de fevereiro, uma decisão inédita para um presidente desde a volta da democracia, há três décadas: chamar para si, diretamente, o desafio de conter a alta da violência. Ao declarar a intervenção na segurança do Rio de Janeiro, após um Carnaval caótico, com saques, tiroteios e arrastões, e deslocar Raul Jungmann do Ministério da Defesa para a pasta da Segurança Pública, criada oficialmente em 27 de fevereiro, o governo federal traça mais uma estratégia para tentar debelar o crime.

Desde os anos 90, todos os presidentes, inclusive Temer, um ano atrás, lançaram planos de segurança. Mas o padrão nas tentativas anteriores foi delegar a execução ao Ministério da Justiça, uma pasta com excesso de atribuições: cuidar da Polícia Federal (e da Lava-Jato, por consequência), dos índios, do direito do consumidor, da proteção às mulheres, da política de igualdade racial, e a lista não acaba aí. Quase nada do plano saiu do papel e a violência segue intolerável — com 61.000 pessoas- assassinadas em 2016, o Brasil é recordista mundial em homicídios.

Os anúncios causaram uma saraivada de críticas esperadas a um governo impopular como o de Temer. A começar pela suspeita de que a intervenção veio para desviar o foco do fracasso na votação da reforma da Previdência no Congresso. Seria também uma medida populista, porque atende diretamente a um clamor da população, e teria caráter eleitoreiro: se der certo, o presidente poderá até ter cacife para disputar a eleição neste ano ou, pelo menos, para deixar de ser saco de pancada. Houve ainda quem tenha criticado a delegação da missão de garantir a segurança de um estado a um militar, como é o interventor nomeado para o Rio de Janeiro, o general Walter Souza Braga Neto. A medida colocaria em risco o respeito aos direitos humanos gravados na Constituição, como alegou o Ministério Público Federal. Por fim, sobraram críticas ao fato de o governo estar criando mais um ministério — agora são 29 pastas — e mais cargos.

Ainda é cedo para avaliar os recentes movimentos de Temer na área de segurança pública. O que não há dúvida é que a violência é um problema real e urgente. O país vive, ano após ano, uma escalada nos assassinatos. A taxa por 100.000 habitantes ao ano, métrica usada em estudos da criminalidade, subiu 30% em 13 anos — hoje está em 29 casos. Com esses números, o Brasil está pior do que a média dos países da América Latina, o continente mais violento do mundo, com 20 casos por grupo de 100.000 habitantes. O crime organizado comanda o tráfico de drogas e armas pelo país inteiro. Ocupa áreas expressivas de capitais, tomando o lugar do Estado e impondo um reinado de terror à população.

Um exemplo recente do domínio das facções: horas antes de a intervenção no Rio ser decretada, o traficante Marco Camacho, o Marcola, líder da principal organização criminosa do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC), mandou matar dois de seus subordinados que viviam como milionários no Ceará, numa emboscada que envolveu o aluguel de um helicóptero. Detalhe: Marcola comandou tudo isso da penitenciária de segurança máxima de Presidente Venceslau, onde cumpre pena por formação de quadrilha, roubo, tráfico de drogas e homicídio.

O resultado de tamanha incompetência em debelar o crime faz com que mesmo regiões onde a violência parecia estar diminuindo hoje sofram com a reversão da tendência. É o caso do Rio de Janeiro, onde o PCC briga por poder com o Comando Vermelho e que, no ano passado, teve os piores índices de criminalidade em sete anos. A insegurança crescente respinga no dia a dia dos negócios: os custos para as empresas brasileiras são estimados em mais de 100 bilhões de dólares por ano, computando perdas com roubos e gastos com segurança privada, entre outros.

Diante disso tudo, qual caminho seguir? EXAME entrevistou especialistas para entender o que precisa ser mudado no país na segurança pública, considerando experiências, nacionais e internacionais, com evidências de sucesso. Elencamos sete passos essenciais para o Brasil sair do atoleiro em que está e montar uma estratégia minimamente coerente contra o crime pelos próximos cinco anos. Além disso, quisemos entender quanto custa cada medida.

A pedido de EXAME, o criminologista gaúcho Alberto Kopittke, do Instituto Cidade Segura, que acompanha o impacto de políticas públicas no combate à violência, fez estimativas de custos para seis dos sete passos elencados a seguir. No total, a conta fica em 5,6 bilhões de reais ao ano para a União, que teria um papel mais atuante no combate à criminalidade do que tem hoje. É uma ninharia ante gastos do governo em outras áreas — só em subsídios e incentivos para indústria, comércio e serviços vão mais de 100 bilhões de reais por ano. Que a leitura das recomendações a seguir surta efeito — e que o Brasil consiga virar a página do improviso e reencontre o caminho da paz.


1o passo | Duplicar a Polícia Federal

A criação do ministério da segurança pública, anunciada pelo presidente Temer em 17 de fevereiro, atenua uma verdadeira aberração do sistema federativo brasileiro: a debilidade da União no combate ao crime. Normalmente em países que são federações, como é o Brasil, é função do governo central estabelecer padrões — e enviar dinheiro — para estados e municípios que prestam serviços públicos na ponta. Aqui, muito pouco disso ocorre na área de segurança pública. Apenas 10% do orçamento do Ministério da Justiça, ou 1,2 bilhão de reais, foi empregado em equipamentos como armas e carros para tropas policiais das unidades federativas no ano passado. É bem menos do que se dá em outras áreas essenciais. No mesmo período, o Ministério da Saúde dedicou 62% dos recursos, ou 72 bilhões de reais, em repasses para estados e municípios tocarem o Sistema Único de Saúde.

A discrepância é consequência da própria maneira como as polícias foram se desenvolvendo ao longo da história no Brasil: nas mãos de governadores e prefeitos, que estão mais perto de onde a violência de fato acontece. O problema com essa lógica, reforçada na Constituição de 1988, que diz expressamente que os estados são os responsáveis em última instância por conter o crime, é que a União não criou uma estrutura para coordenar os esforços de centenas de polícias Brasil afora.

Em parte, a culpa é do Congresso, que se eximiu da responsabilidade — há três décadas, o artigo 144 da Carta Magna, que trata do papel federal em segurança pública, aguarda regulamentação. Na prática, gestores públicos raramente trocam experiências entre si sobre o que deu certo contra a bandidagem e também não podem contar com a União para estruturar algum tipo de ação conjunta. “É comum os formuladores de políticas para segurança no Brasil serem reativos, criando ajustes de curto prazo para problemas estruturais profundos”, diz o cientista social canadense Robert Muggah, fundador do Igarapé, instituto com sede no Rio de Janeiro dedicado ao estudo da criminalidade.

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Uma solução para reforçar o papel da União na segurança seria o Brasil adotar o modelo dos Estados Unidos, também uma república federativa. Por lá, na folha de pagamentos da Casa Branca estão 240 000 servidores em 117 órgãos para cuidar de segurança. A lista inclui a famosa polícia federal FBI e a agência de inteligência CIA, além de uma porção de órgãos que foram sendo criados à medida que focos de insegurança apareciam. O último, o Homeland Security, foi aberto na esteira dos ataques de 11 de setembro de 2001 para aumentar a vigilância contra potenciais terroristas.

Com tamanha estrutura, não é raro acontecer intervenções das agências federais nas tropas estaduais e municipais — nos últimos anos, surtos de violência em cidades como Detroit, Baltimore e Nova Orleans foram combatidos dessa maneira. “O governo americano conta com uma estrutura capaz de ser indutora de boas práticas de gestão criminal”, diz o criminologista gaúcho Alberto Kopittke.

Quais são as medidas necessárias para o Brasil copiar o modelo americano? Certamente, a criação do Ministério de Segurança Pública pode ser um início. Mas o futuro da nova pasta ainda está cercado de incertezas. O que se sabe até agora são as atribuições do ministério, que deverá manter sob sua tutela a Polícia Federal e os órgãos do Ministério da Justiça que cuidam de políticas contra a violência, como a Secretaria Nacional de Segurança Pública. Mas quanto custaria a manutenção de um ministério minimamente viável na luta contra a bandidagem? Na conta de Kopittke, 150 milhões de reais por ano seriam suficientes para dotar a pasta de uma estrutura inicial nos moldes da americana.

Além disso, seria necessário dobrar o contingente da Polícia Federal, para 20.000 homens, a fim de garantir que o combate à bandidagem comum não interferisse nos trabalhos já realizados pela força-tarefa contra crimes de colarinho-branco, como a Lava-Jato. O custo anual da medida: 2 bilhões de reais, em salários e outras despesas de pessoal. Faltariam ainda investimentos em tecnologia para garantir inteligência às polícias.


2o passoInteligência, inteligência, inteligência

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Na tarde de 28 de agosto de 2013, a adolescente Tayná Adriane da Silva, de 14 anos, foi achada morta num matagal próximo a um parque de diversões perto de sua residência, em Colombo, na região metropolitana de Curitiba. As escoriações no corpo de Tayná indicavam que ela havia sido estrangulada ao resistir a um ataque. Uma semana depois, a polícia prendeu quatro funcionários do parque, todos com cerca de 20 anos de idade, suspeitos de estuprar e tirar a vida de Tayná.

Divulgada com estardalhaço e riqueza de detalhes na imprensa, a prisão revoltou a população local, que destruiu os brinquedos onde trabalhavam os acusados. Mas, semanas depois, o caso sofreu uma reviravolta: um dos jovens presos afirmou ter sido torturado para confessar um crime que não havia cometido. Os suspeitos foram soltos meses depois. Em fevereiro de 2018, um delegado e dois investigadores da Polícia Civil paranaense foram condenados pela Justiça pelos erros cometidos no caso. E, após quase cinco anos, ninguém sabe quem matou Tayná. É mais um exemplo de uma triste estatística: só 20% dos assassinatos são esclarecidos no Brasil. Em países desenvolvidos, o índice raramente está abaixo de 60%.

O que precisa ser feito para resolver o problema? Investir em tecnologia, para coletar dados mais fidedignos sobre crimes e, de quebra, errar menos nas investigações, é um passo essencial. A preocupação de catalogar corretamente os crimes, por tipo, local e horário em que ocorrem, já ajudou polícias de várias partes do mundo a coletar vitórias contra a bandidagem. Talvez o exemplo mais conhecido seja o de Nova York, que desde os anos 90 mantém um banco de dados informatizado de crimes, o CompStat. No período, a cidade viu os homicídios cair ao menor patamar da história — hoje, a taxa é de três casos por 100.000 habitantes. O sistema, copiado pela polícia paulista em 2000, levou a uma situação inusitada: em duas décadas, a violência caiu em São Paulo; na maior parte do país, subiu. O índice de solução de crimes no estado, embora longe do visto em nações civilizadas, é o dobro da média nacional: 40%.

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O sucesso paulista só não é maior pela falta de estrutura federal para catalogar os crimes cometidos em outros estados. É um prato cheio para a migração dos marginais. Para ter uma ideia da precariedade da União nesse quesito, a secretaria responsável por registrar dados de criminalidade enviados por estados tem por volta de 50 servidores, que precisam ainda cuidar de bancos de dados sem relação direta com o crime, como o cadastro de motoristas. Com tão pouco braço para cobrar o envio de relatórios, os estados fazem o que querem, e os dados não chegam. Em alguns casos, os registros mais recentes são de 2014. Nos Estados Unidos, há 35.000 servidores do FBI trabalhando no catálogo de crimes. Por lá, um policial acessa 20 bancos de dados, como descrição física e amostra de DNA de gente suspeita. No Brasil, um policial sai para a rua sem nada disso.

O caminho para aumentar as investigações começaria com a criação de um Instituto Nacional de Segurança Pública, nos moldes do americano, para centralizar evidências de crimes cometidos Brasil afora e integrar os dados aos sistemas das polícias. Em seguida, o órgão montaria um banco nacional de DNA, além de uma inspetoria para investigar crimes em paralelo aos estados e um fundo para modernizar as polícias estaduais. Atingir a robustez do aparato americano contra o crime, criado em 1967, vai demorar. Mas uma estrutura inicial, já cogitada em planos nacionais de segurança, nunca saiu do papel. Com investimento de 275 milhões de reais anuais, durante pelo menos quatro anos, esse aparato já ampliaria a chance de solucionar casos bárbaros, como a morte de Tayná. Mas, com a resolução de mais crimes, serão necessárias prisões dignas para receber mais gente, tema do 3o passo.


3o passoTornar as prisões seguras e civilizadas

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“É possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando suas prisões”, disse o romancista russo Fiódor Dostoiévski em Crime e Castigo, obra-prima do final do século 19. A julgar pelo critério, o Brasil está perto da barbárie. Uma pesquisa do Prison Studies, núcleo de estudos sobre as condições carcerárias mantido pela Universidade de Londres, mostra que as prisões brasileiras têm 63% mais detentos do que comportam. É o suficiente para colocar o país na 41a posição num ranking de 205 países — quem está à frente na lista são os piores, com prisões mais superlotadas.

O Brasil está mais próximo do primeiro colocado, o Haiti, do que das nações civilizadas, como o Japão (187o lugar). A realidade brasileira consegue ser pior até do que a de nações disfuncionais, como é o caso da Venezuela (49o lugar), onde, pela escassez crônica de comida causada pela má gestão da economia, há relatos de detentos tendo de comer ratos para matar a fome. Embora ainda haja comida nas prisões brasileiras, a miséria humana aqui não é muito diferente da que padecem os presos sob o regime de Nicolás Maduro.

Brigas de gangues e presidiários liderando facções de dentro do cárcere fazem parte do dia a dia. Um dos mais recentes episódios chocantes ocorreu em janeiro com os 1.200 presos do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, em Goiás. Em meio a uma rebelião, as gangues PCC, de São Paulo, e Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, se digladiaram, deixando um saldo de nove mortos. Um relatório feito logo após a revolta indicou um número expressivo de encarcerados sofrendo de sarna por causa da falta de asseio — há algum tempo o governo estadual deixou de entregar a eles itens de higiene pessoal, como sabonetes e toalhas.

Rebelião: na gestão de suas prisões, o Brasil está perto da barbárie | Frankie Marcone/Futura Press

Uma primeira medida para consertar as prisões brasileiras é garantir que, de fato, os aprisionados ali estejam isolados da sociedade. A aprovação recente, pelo Congresso, de uma lei obrigando as operadoras de telefonia celular a instalar bloqueadores de sinal nas imediações dos presídios é um bom começo. Mas é preciso ser mais ambicioso para garantir que as prisões deixem de ser parte do problema da segurança pública. Uma medida urgente é acabar com a convivência entre presos comuns e chefes de organizações criminosas. Na prática, essas situações acabam sendo uma espécie de recrutamento para o crime. A recusa do preso comum a esse tipo de alistamento é uma sentença de morte diante do poder de fogo de facções como o PCC.

Novamente, olhar para a experiência internacional é útil. Nos Estados Unidos, que também sofrem com organizações criminosas, geralmente comandadas por imigrantes da América Central, a solução foi investir em prisões federais. “Por lá, 12% da população carcerária está nessas unidades; no Brasil, apenas 0,5%”, diz Kopittke, do Instituto Cidade Segura. A medida funcionou para isolar os cabeças das facções — os líderes são enviados para prisões de segurança máxima.

Para boa parte dos especialistas em segurança, o ideal para desbaratar organizações criminosas seria a ampliação da atual rede de quatro presídios federais para algo perto de 27, o que cobriria todos os estados brasileiros. O investimento seria de 200 milhões de reais para a construção mais 730 milhões de reais anuais para a manutenção, tomando por base os gastos das quatro unidades existentes — em Catanduvas, no Paraná, Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, Porto Velho, em Rondônia, e Mossoró, no Rio Grande do Norte. Mas novas rebeliões nos presídios podem ocorrer caso o acesso às armas continue fácil como é atualmente — assunto do 4o passo.


 4o passoControlar  o porte de armas

Em 28 de abril de 1996, o australiano Martin Bryant, um jovem de 28 anos com histórico de problemas psiquiátricos, dirigiu seu Volvo em direção aos arredores de Port Arthur, na ilha da Tasmânia, e com uma metralhadora AR-15 abriu fogo contra uma multidão que aguardava a entrada numa antiga prisão convertida em atração turística. O saldo: 35 mortos. A tragédia marcou uma mudança de valores na sociedade australiana.

Um país que começou como colônia penal britânica no final do século 18 e foi colonizado durante muito tempo por degredados, a Austrália adotou uma postura liberal sobre a posse de armas de fogo, usadas para espantar animais como crocodilos e cangurus e para guerrear com os aborígenes que lá viviam. Em termos gerais, qualquer pessoa podia comprar um revólver legalmente, assim como é hoje nos Estados Unidos. Mas, ao contrário dos americanos, que nunca encararam o problema gerado pelo acesso fácil às armas de fogo e vêm sofrendo com sucessivos massacres — até o fechamento desta edição, em 27 de fevereiro, o ano registrava oito tiroteios em escolas nos Estados Unidos —, os australianos acordaram para o perigo.

Uma legislação aprovada na sequência do massacre de Port Arthur praticamente baniu o uso de armas pesadas, como os rifles AR-15, pelo cidadão comum. A papelada para adquirir revólveres ficou maior, com mais checagem de antecedentes criminais. A consequência é que o porte de armas acabou praticamente restrito ao Exército, às polícias e a ocupações em que a posse do artefato faz sentido, como agricultores em locais isolados e praticantes de tiro ao alvo. Em paralelo, um ambicioso programa governamental de aquisição de armas investiu 500 milhões de dólares para comprar 660.000 unidades de mãos privadas.

Um severo monitoramento foi imposto em portos e aeroportos para coibir a importação ilegal. Além disso, o governo federal estabeleceu um cadastro com dados de munições legais ou não. O resultado: as mortes violentas por armas de fogo caíram 60%. Há hoje na Austrália um assassinato a cada 100.000 habitantes por ano — no Brasil são 29. O consenso lá é que o resultado é consequência do endurecimento das leis, algo comemorado pela população: a lei de 1996 tem 60% de aprovação.

O desarmamento na Austrália foi feito um pouco antes de o Brasil também aprovar leis mais rígidas. Aqui, entre 2003 e 2013, mais de 600.000 artefatos bélicos saíram de circulação. Mas, no Brasil, ao contrário do que ocorreu na Austrália, o controle do armamento ganhou pouca atenção do governo federal. A maioria das armas foi tirada de circulação em forças-tarefas das polícias estaduais. Onde o esforço foi mais bem-sucedido, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, a queda no número de homicídios foi maior nesse período. Mas as fronteiras brasileiras seguiram porosas, em especial as com o Paraguai, principal rota do armamento ilegal usado por facções do crime organizado, como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho. E as armas continuaram causando estragos. Hoje, 75% dos homicídios no Brasil ocorrem em tiroteios — a média global beira 40%.

Para um desarmamento que resulte numa redução duradoura dos assassinatos, um primeiro passo é criar um registro nacional das armas autorizadas por lei, similar ao da Austrália. Esse banco armazenaria uma impressão digital de cada arma vendida legalmente no país. O banco poderia ser complementado com rapidez se todos os donos de armas de fogo tivessem de pagar pela impressão digital para manter o direito ao porte, num processo semelhante à vistoria de um veículo ou à renovação da carteira de motorista.

A implantação de microchips, com informações da arma e de seu dono no interior das próprias armas, também enriqueceria o banco balístico. Os dados contidos no microchip poderiam ser atualizados ao longo do tempo, como na ocasião de venda da arma a um terceiro. “Esse tipo de medida pode ser adotado com a edição de um decreto do governo, de maneira simples e rápida”, diz o coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário Nacional de Segurança. O cadastro deve também ser alimentado com dados de munições ilegais recolhidas pelas polícias, de modo a reduzir o risco de extravio e a volta do armamento às mãos dos bandidos.

Reforçar a atuação das polícias esta-duais no controle permanente de fronteiras, portos e aeroportos diminuiria o risco de comércio ilegal — mais de 130.000 armas foram apreendidas no país em 2017. Por fim, viria a retomada das campanhas de desarmamento, enfraquecidas nos últimos cinco anos. Nas contas do Instituto Cidade Segura, uma repressão eficiente ao tráfico de armas custaria cerca de 60 milhões de reais anuais durante pelo menos quatro anos, considerando os custos com a abertura de um registro balístico com tecnologia semelhante à de países como a Austrália e com a contratação de gente dedicada ao monitoramento do fluxo de armas — além disso, é vital colocar nas ruas um maior efetivo da Polícia Federal, previsto no 1o passo. Neste momento, no entanto, o Brasil se encaminha para fazer o oposto: está em discussão no Congresso o afrouxamento do porte de armas. Se a medida passar, ficará mais difícil garantir o sucesso de medidas preventivas contra o crime, como os exemplos do 5o passo.


5o passoEm vez de punir, é melhor prevenir

Todas as segundas-feiras, o empresário Jefferson Nogaroli e o prefeito de Maringá, Ulisses Maia (PDT), têm um compromisso na agenda: discutir os rumos da segurança dos 400.000 habitantes da cidade paranaense. Os dois fazem parte de um conselho formado por empresários, reitores de universidades, sindicalistas, entre outros representantes da sociedade civil. O grupo começou a discutir as causas da violência na cidade há 35 anos, na sequência de uma onda de assaltos que chocaram os maringaenses, então acostumados ao sossego do interior. Em três décadas, a participação da sociedade e a boa vontade de gestores públicos em ouvi-los colaboraram para que Maringá conseguisse escapar da escalada de criminalidade no Paraná. Em 2000, a cidade teve sete assassinatos por 100 000 habitantes. Em 2010, chegou a 14 casos e hoje voltou ao nível de 18 anos atrás. Já a média estadual, embora venha caindo, ainda é alta: 26 homicídios por grupo de 100.000 habitantes por ano, próxima da média brasileira, de 28.
Polícia em Pelotas (RS): força-tarefa com a prefeitura reduziu roubos em 9% desde 2017 | Alina Souza/Especial Palácio Piratini

Mas, afinal, por que um conselho  social foi importante para tornar Maringá mais segura? “A população acordou para o fato de que uma cidade só pode prosperar se estiver livre do crime”, diz Nogaroli, uma das lideranças do conselho. Sintoma disso é que o empresariado abriu o bolso: desde 2003, mais de 10 milhões de reais, em sua maior parte dinheiro privado, foram utilizados em estratégias contra a bandidagem. Exemplos: o patrulhamento local conta com um sistema, criado pelo conselho, que ligou as câmeras de segurança de prédios comerciais e residências ao sistema da polícia. Além de identificar mais facilmente gente com comportamento suspeito e pontos que precisam de reparos na iluminação para coibir a criminalidade, a vigilância ajudou a pôr em prática um controle duro sobre o comércio ilegal. Além disso, policiais e suas famílias cursam faculdades pagas pelo empresariado. “Eles precisam estar bem para impedir o bandido de aparecer aqui”, diz o coronel Antônio Rodrigues, presidente do conselho de Maringá.

Políticas de prevenção, como as de Maringá, são as preferidas dos especialistas no combate ao crime. É o que diz uma pesquisa inédita do criminologista Túlio Kahn, ex-secretário de Segurança Pública paulista nos anos 2000. Para 88% deles, as medidas preventivas são eficazes contra o crime, índice superior ao de quem defende maior presença federal (81%) e reformas de presídios (77%). “Quando a sociedade está mobilizada contra o crime, os resultados são consistentes”, diz Kahn. Que o digam os 340.000 moradores da gaúcha Pelotas.

Desde 2004, os homicídios ali cresceram 500% — hoje superam 30 casos por 100.000 habitantes. Brigas de gangues viraram parte da rotina local. E o pior: boa parte dos envolvidos é formada por jovens. Por isso, em agosto de 2017, a prefeitura de Pelotas criou um plano para tirar a juventude do rumo do crime. A abordagem começa em casa: assistentes sociais batem de porta em porta em busca de relatos de violência doméstica. Nas escolas, alunos com mau desempenho ou famílias problemáticas são convidados a desenvolver hobbies, como esportes, e a fazer terapia. Alguns, já em idade de trabalhar, foram encaminhados a estágios.

Policiais militares passaram a dispersar a concentração de jovens em barulhentas festas de rua sem alvará, movidas a álcool e drogas, e alertar a moçada dos riscos que correm. O resultado: em seis meses, os roubos caíram 30%; e o total de crimes, 9%. Pelotas não teve ocorrências policiais no Carnaval. Em 2017, houve cinco. “O próximo passo é aprovar, na Câmara, um código municipal de boas- práticas de convivência”, diz a prefeita Paula Mascarenhas (PSDB).

Para que medidas como as que vêm dando resultados em algumas cidades venham a ter um impacto nacional, o ideal seria que 28 milhões de jovens que estudam no ensino público e usam serviços de saúde tivessem acesso a políticas de prevenção ao crime, como treinamento em habilidades emocionais como controle de estresse e frustrações, a exemplo do que está sendo feito em Pelotas. Nas estimativas do Instituto Cidade Segura, a conta para isso ficaria em 1,9 bilhão de reais por ano. Juntamente com a prevenção, uma melhor formação das polícias também ajudaria a reduzir o risco de prisões ou de morte de quem está no início da vida.


6o passoRepensar a política antidrogas

A prisão por posse ou tráfico de drogas vem crescendo no Brasil num ritmo superior à expansão da população carcerária, que cresce a uma taxa expressiva. Divulgado em dezembro, o relatório mais recente do Ministério da Justiça sobre a população carcerária constatou que 28% dela estava presa por esses motivos — um universo de 203.000. Em 2006, ser pego com entorpecentes era o motivo de detenção de 14% dos presos na época. Até aí, as estatísticas oficiais conseguem elucidar um ponto. Agora, distinguir quantos dos presos são meros usuários e, portanto, deveriam passar por cuidados médicos para abandonar as substâncias, e quantos fazem parte de organizações criminosas e, assim, merecem ficar atrás das grades porque oferecem perigo à sociedade, ainda é uma tarefa difícil no Brasil diante da fragilidade dos dados disponíveis.

Um olhar atento às estatísticas existentes, no entanto, indica que há algo de errado na atual política antidrogas. Ela considera critérios subjetivos, como os antecedentes criminais e o contexto da ocorrência criminal — no fim das contas, qualquer pessoa que for pega com uma dose de droga no Brasil poderá parar no cárcere. Há evidências de falta de foco no combate ao tráfico de drogas. De acordo com um levantamento do Instituto Sou da Paz sobre dados oficiais de cinco anos atrás — os mais recentes disponíveis —, apenas 1,3% dos presos confessaram participar de narcogangues. Outros 25% haviam sido pegos com pequenas quantidades de drogas, o que não deixava claro se eram soldados do crime organizado ou apenas consumidores. Desse universo, quase 60% não tinham antecedentes criminais e 94% estavam desarmados na hora da prisão.

Mais recentemente, em 2016, o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, órgão que cataloga as estatísticas criminais no estado, divulgou um relatório estimando que, se o Brasil adotasse o mesmo critério de Portugal para definir quem é traficante e merece ir preso — estar com mais de 25 gramas de droga —, o número de encarcerados por esse motivo cairia 60%. “Misturamos pequenos usuá-rios de drogas com traficantes em nossas prisões”, diz Ivan Marques, presidente do Sou da Paz.

Cracolândia: o consumo de entorpecentes não depende do rigor das leis antidrogas | Bruno Santos/Folhapress

Pois bem, o que deveria ser feito? Para os especialistas em segurança pública, o Brasil teria a ganhar com uma política antidrogas mais objetiva e focada em botar atrás das grades somente quem realmente é perigoso — e, uma vez preso, garantir que o traficante não continue operando a atividade criminosa de dentro da cadeia, como é tão comum hoje. Experiências no exterior servem de exemplo. Nos Estados Unidos, de seis anos para cá, 20 estados relaxaram as políticas antidrogas num esforço de reduzir a pressão na estrutura carcerária. Lá, 19% dos presos tiveram problemas com entorpecentes e havia indícios de que meros usuários de drogas iam parar em celas com criminosos barra-pesada. Mas havia o receio de o “liberou geral” aumentar o consumo de drogas e motivar outros crimes.

Os resultados até agora mostram que os temores eram injustificados. Não houve uma migração de criminosos como se temia. No estado de Washington, que permitiu a venda da maconha produzida localmente e em quantidades limitadas, meses após o pioneiro Colorado, em 2014 os crimes caíram para o menor nível em quatro décadas. As prisões por posse de maconha vinda de outras regiões, o que configura tráfico mesmo na nova lei, diminuíram 98% no primeiro ano de liberação.

Mudar a legislação antidrogas brasileira depende de uma discussão no Congresso, o que não deve ocorrer tão cedo por causa das eleições. Outro caminho para o assunto vir à tona é com o Supremo Tribunal Federal, que está discutindo a descriminalização do porte de drogas e, na prática, pode colocar um entendimento a ser seguido por juízes Brasil afora. Até agora três ministros votaram a favor: Gilmar Mendes, Edson Fachin e Roberto Barroso. O assunto está com Alexandre de Moraes, que não indicou quando vai opinar. Além de olhar para as drogas, congressistas e juristas deveriam atentar para outra legislação: a reforma da polícia, que pode ser vista no 7o passo.

7o passo |  Reformar e treinar melhor as polícias

O número é chocante: só em 2016, 4.224 pessoas morreram em confrontos com a polícia no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Para ter uma ideia, é uma letalidade dez vezes maior do que a dos Estados Unidos, onde a brutalidade policial contra negros e latinos motivou movimentos políticos, como o Black Lives Matter (“A vida dos negros importa”, numa tradução livre). O horror das estatísticas brasileiras fica ainda maior na comparação com países como Japão e Reino Unido, onde ninguém morreu em confrontos policiais em 2016.

Afora o drama das vidas perdidas, a letalidade gera um problema econômico: como muitos policiais também acabam perdendo a vida nos confrontos, o Estado precisa arcar com uma conta ingrata. Só em 2017 o governo do Rio de Janeiro desembolsou mais de 5 milhões de reais em indenizações às famílias dos 1.000 policiais mortos em serviço.

É consenso que a polícia brasileira precisa de um choque de gestão para ser mais eficiente. Um passo importante seria unificar as polícias civil e militar, encerrando uma tradição de países latinos — as primeiras polícias militares do Brasil foram criadas no século 19 pelo imperador dom João VI numa tentativa de copiar a guarda francesa, a gendarmerie.

Lá fora, essa força vem sendo substituída: a Espanha acabou com o sistema em 1975, com o fim da ditadura de Francisco Franco; a Guatemala anunciou decisão semelhante no ano passado. A conclusão: a divisão abre brecha para feudos de atuação e, sem boa vontade para apartar rixas, as corporações viram concorrentes. “O Brasil precisa urgentemente de uma abordagem de ‘ciclo completo’ para as polícias, que reúna a patrulha ostensiva e a investigação de crimes num comando só”, diz o canadense Robert Muggah, do Instituto Igarapé. 

Um passo seguinte, na opinião dos especialistas, seria investir na formação dos policiais. Hoje, cada estado tem uma política de qualificação de mão de obra. Os últimos planos nacionais de segurança previam custear o ensino superior das tropas, mas a ideia ficou pela metade: atualmente, há só cursos online, e rápidos, de qualificação. Para uma estrutura capaz de modernizar a cultura das polícias, o ideal seria investir numa escola federal de gestão em segurança pública para centralizar o treinamento. Além disso, é preciso constituir uma ouvidoria federal para investigar tropas com mau desempenho. O investimento: 375 milhões de reais durante pelo menos quatro anos, valor que poderá cair à medida que ganhos de produtividade forem obtidos. É uma conta irrisória para resolver um problema que vem custando caro para o Brasil. 

Com reportagem de Roberta Paduan

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