Revista Exame

Opinião: escola sem partido é uma escola sem sentido

A proposta do movimento Escola Sem Partido de proteger alunos de ideologias e crenças de professores erra o alvo. O problema não são os docentes ideológicos

Campus em São Paulo: os estudantes têm estratégias para evitar a doutrinação nas salas de aula (Alexandre Batibugli/Exame)

Campus em São Paulo: os estudantes têm estratégias para evitar a doutrinação nas salas de aula (Alexandre Batibugli/Exame)

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Da Redação

Publicado em 12 de novembro de 2016 às 05h55.

Última atualização em 12 de novembro de 2016 às 05h55.

São Paulo – O debate sobre a necessidade de o Estado proteger os alunos da ideologia dos professores promete esquentar. Está nas mãos do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, a ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação contra a “lei da escola livre”, aprovada em Alagoas neste ano e que propõe um sistema de “neutralidade política, ideológica e religiosa” nas escolas públicas do estado.

A Procuradoria-Geral da República já se manifestou a respeito. No final de outubro, enviou um parecer ao Supremo descrevendo a lei como inconstitucional. Mas a opinião dos procuradores não esmoreceu as convicções de quem apoia o movimento Escola Sem Partido, a inspiração da lei alagoana.

A imagem que o movimento faz do sistema de ensino é que ele está tomado por professores militantes que usam sua cátedra para impor aos alunos suas ideologias políticas de esquerda e suas opiniões acerca de sexualidade e gênero, temas especialmente sensíveis a seus idealizadores. Cabe, então, perguntar: existe um problema de doutrinação no ensino brasileiro? E, se existe, qual é sua magnitude? São essas as perguntas necessárias para uma discussão realmente séria.

O debate tem se concentrado no ensino básico, mas talvez seja mais pertinente analisar o ensino superior. Afinal, é quase unânime a percepção de que nossas universidades são focos do pensamento de esquerda. Nessa análise, as redes sociais podem ser uma boa bússola.

Uma das melhores novidades do Twitter, o perfil “Antes e Depois da Federal”, mostra fotos de jovens nos últimos anos do ensino médio e nos primeiros meses depois do ingresso em alguma universidade federal. Antes, meninos nos eixos, bem arrumados, meninas com jeito de princesa; depois, roupas rasgadas, bebida, drogas e performances artísticas de gosto duvidoso. Se a mudança é para melhor ou pior, cabe a cada um julgar. Fica evidente o fato de que a faculdade realmente transforma muita gente.

Muito do que se atribui à universidade, de maneira genérica, e às vezes aos professores, são casos extremos da cultura estudantil. Algo que não é diretamente controlável pelo conteúdo dado na sala de aula. A cultura e a militância estudantil no Brasil são radicalmente de esquerda (dividem-se entre PSOL, PSTU e PCdoB). Os alunos querem a esquerda. Os professores, no máximo, atendem à demanda.

Por vezes, a presença de ideologia em sala de aula é aumentada pela imaginação dos que estão do lado de fora. É o caso da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, na qual fiz graduação e mestrado. Existe a percepção de que o curso é todo eivado de pregação de correntes de extrema esquerda. As aparições públicas de professores mais midiáticos, como Marilena Chauí, nossa filósofa e eterna porta-voz do Partido dos Trabalhadores, confirmam essa imagem. Essa percepção é, contudo, falsa. Dentro da sala de aula, os professores deixam de lado suas ideologias e expõem o pensamento de autores antigos como se o mundo contemporâneo nem sequer existisse. Se há algo de que o curso possa ser acusado é o excesso de alienação quanto aos tempos atuais.

Dito isso, e corrigidos certos exageros, há um claro viés de esquerda — especificamente nos cursos de humanas. É difícil medir algo tão genérico, mas uma percorrida pelas ementas dos cursos retornará mais o sociólogo Zygmunt Bauman, crítico do capitalismo, o historiador marxista Eric Hobsbawn e Theodor Adorno, pai da Escola de Frankfurt, do que Leo Strauss, filósofo pai do neoconservadorismo, o sociólogo francês Raymond Aron e o economista liberal Friedrich Hayek. No campo econômico, de maneira geral, a academia brasileira foi sempre de esquerda, quase sempre oscilando entre variantes do marxismo e do nacionalismo desenvolvimentista. Viés, contudo, é diferente de doutrinação.

Um professor pode ser de esquerda e, ainda assim, não usar sua cátedra para fazer propaganda política e impor suas visões aos alunos de forma autoritária. Nada disso é para negar a existência de doutrinação em sala. Mas ela tem de ser distinguida de outros fenômenos e identificada em sua real extensão, coisa que ainda não se tentou fazer. O que é, afinal, doutrinação?

Ao contrário do que diz o movimento Escola Sem Partido, não se trata de apresentar um lado só de alguma questão ou de tentar convencer alunos de um ponto de vista. Se bem apresentado e com profundidade, um lado é o bastante. É o que faz a maioria das boas matérias universitárias. Há excelentes professores que têm um ponto de vista claro, exposto em aula, e que não dedicam igual profundidade a outras visões. O ideal de imparcialidade é impossível no dia a dia da sala de aula. O professor conhece, acima de tudo, a linha interpretativa de sua própria formação, os autores que ele leu e nos quais se baseia para enxergar o mundo.

A doutrinação reside em outro lugar. Na atitude do professor de reprimir as manifestações dos alunos. No professor que inibe os questionamentos, em vez de acolhê-los, forçando os estudantes a adotar sua linha de pensamento com ameaças, esbravejos e reprovação. É um problema que requer solução? Por vezes, sim. Mas, na maioria dos casos, os próprios alunos usam os meios de resistência que têm à mão, hoje mais poderosos do que nunca. Se o grosso da sala só quer ser aprovado, então responde na prova o que o professor quer ouvir (já há até um verbo para isso: “esquerdar”). Alguns mais subversivos filmam os piores momentos do professor e colocam as cenas do “tirano” online.

De maneira geral, o professor já tem pouco poder. Até sua capacidade de determinar o conhecimento dos alunos é limitada, com Wikipédia, Google e bibliotecas a um clique. Ainda assim, alguns casos mais graves requerem respostas mais sérias. E, como outros problemas da relação entre aluno e professor, devem ser resolvidos na própria instituição. Colocar o Estado no meio é ferir de morte a liberdade acadêmica, impondo um tipo de intromissão que as faculdades tentam se livrar desde a Idade Média.

Sou o primeiro a dizer que o ensino brasileiro — do básico ao superior — precisa largar mão do esquerdismo mofado que ainda impera, conhecer outras referências e maneiras de enxergar o mundo. Esse é o ideal propriamente liberal de ensino: a educação como meio de formar indivíduos capazes de pensar por conta própria. Mas, para alcançar esse objetivo, de nada adianta silenciar professores.

Temos de formar professores melhores, entrar nos cursos de pedagogia e licenciatura, escrever livros melhores. O pensamento de esquerda não chegou aonde chegou à toa. Foi com trabalho e dedicação à docência — um exemplo para a direita e outros incontáveis rótulos seguirem.

O professor não é nem deve ser apenas um veículo neutro. Para passar conteúdo aos alunos, precisa torná-lo vivo, construí-lo junto com a classe e levar seus alunos por um percurso no qual aquele conhecimento faça sentido. Essa função é incompatível com o ideal do movimento Escola Sem Partido. Se no ensino básico o projeto de calar professores já é lastimável, levar essa mentalidade policialesca para o ensino superior é quase criminoso.

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