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Saudade do que não vivi: cresce desejo de retorno ao passado, e isso mexe com a política

Pesquisa global mostra que pessimismo sobre o amanhã leva a um desejo de volta ao passado, algo que a política tem explorado

Destroços em Valência: cidade espanhola foi atingida pela pior enchente em décadas e mais de 200 morreram (Jose Jordan/AFP/Getty Images)

Destroços em Valência: cidade espanhola foi atingida pela pior enchente em décadas e mais de 200 morreram (Jose Jordan/AFP/Getty Images)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 21 de novembro de 2024 às 06h00.

Última atualização em 21 de novembro de 2024 às 11h07.

A visão do futuro molda o presente. Quem espera recompensas à frente tem motivação extra. Mas, quando se perde a esperança, as coisas ficam mais confusas, tanto para os indivíduos quanto para política e a economia de um país. O estudo Ipsos Global Trends faz um mergulho interessante nas visões de futuro de mais de 50.000 pessoas, em 50 países, e traz algumas pistas de como as perspectivas estão ficando mais estreitas.

“As pessoas estão mais céticas e inseguras em relação ao futuro”, diz Cintia Lin, head de Creative Excellence da Ipsos Brasil. “Sessenta e seis por cento dos brasileiros dizem que viver o presente é mais importante, porque o futuro vai ser incerto. Na média global, 64% disseram isso.”

O estudo mostrou ainda que 86% dos brasileiros acham que o mundo está mudando rápido demais e que as coisas devem piorar com a crise climática e um possível avanço desenfreado da tecnologia, que poderá cortar empregos e trazer ainda mais incerteza. Esse contexto leva ao desejo de volta ao passado, como um lugar idealizado no qual a vida teria sido melhor.

No Brasil, 56% dizem que gostariam de que o país fosse como antes — não há clareza, porém, do que seria esse antes. Na média global, 57% têm esse desejo. Um ponto curioso é que muitos jovens da geração Z, que nasceram neste século, buscam se interessar mais pelo que não viveram. Isso se reflete no mercado: séries como Stranger Things, que se passa nos anos 1980, fizeram muito sucesso, e marcas têm trazido de volta produtos que saíram de linha, como chocolates da Turma da Mônica, depois de notarem uma demanda por — literalmente — saborear a nostalgia.

Na política, essa busca se reflete no voto em candidatos que defendem o retorno a valores tradicionais, como um modelo único de família, ou a momentos em que era mais fácil arrumar um emprego bem remunerado e ter conforto material. O maior exemplo disso é Donald Trump, que venceu as eleições presidenciais de 2024 nos Estados Unidos repetindo a promessa de “tornar a América grande de novo”. Javier Milei, prestes a completar um ano de governo na Argentina, venceu em 2023 ao prometer recolocar o país no rumo de sucesso perdido no século 20.

Há também um descolamento de visões entre homens e mulheres, especialmente os mais jovens. Enquanto eles estão pessimistas sobre o futuro, elas têm mais expectativas, sobretudo por causa dos movimentos para ampliar a igualdade salarial e a presença feminina em posições de comando. “O papel do masculino está mais confuso.

Os homens da geração Z têm um sentimento de solidão, falta de ambição profissional e de perspectivas para o futuro”, diz Lin, da Ipsos. Vem daí outro dado curioso: há mais homens da geração Z (47% deles na média global) declarando que o papel das mulheres é cuidar mais da casa e dos filhos.

Na política, pesquisas feitas pela EXAME e pelo instituto IDEIA em sete estados decisivos para a eleição americana mostraram que, em quase todos os casos, Trump liderava entre os homens, e a democrata Kamala Harris era a preferida das mulheres. “Nunca tivemos uma diferença de gênero tão grande em uma eleição americana”, afirma Mauricio Moura, professor da Universidade George Washington. 

Apesar do cenário sombrio, há otimismo sobre o futuro em alguns temas: 75% dos brasileiros disseram acreditar que o mundo seria melhor se houvesse mais mulheres na liderança, 73% dizem que a inteligência artificial vai facilitar seu trabalho, e 65% dizem esperar que novas tecnologias tenham impacto positivo no mundo. “O Brasil é muito aberto à tecnologia em razão da pobreza dos serviços que são oferecidos, especialmente serviços públicos”, diz Marcos Callari, CEO da Ipsos Brasil. São luzes que poderão ajudar a tornar menos sombrias as perspectivas para o futuro.

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