Produção da JBS no Paraná: o escândalo de corrupção resultou em fechamento de mercados para a carne brasileira (Ueslei Marcelino/Reuters)
Leo Branco
Publicado em 7 de abril de 2017 às 05h55.
Última atualização em 7 de abril de 2017 às 05h55.
São Paulo — Nas últimas décadas, os brasileiros se acostumaram a ver o agronegócio como uma fonte inesgotável de boas notícias. Recordes nas safras, produtividade em alta e tecnologia de ponta nas fazendas tiraram a pecha de um setor atrasado e colocaram o país no topo do ranking mundial de diversos produtos. Mas a Operação Carne Fraca — descontando-se o espalhafato com que veio a público e os erros cometidos com o uso de alguns dados, como o famigerado “papelão” que rechearia embutidos — revelou um esquema de pagamento de propina envolvendo frigoríficos e fiscais federais e jogou luz sobre problemas que fragilizam um dos setores que mais avançaram no agronegócio.
Até a investida da Polícia Federal que prendeu 38 pessoas e resultou no fechamento temporário de mercados externos, causando perda de exportação estimada até agora em 150 milhões de dólares, havia uma percepção de que o sucesso conquistado ocorreu por ser um ramo da economia pouco afetado pela mão forte de Brasília. O que se descobriu agora, além dos casos de corrupção, é que o Estado brasileiro é ávido por regular a operação dos frigoríficos, mas é leniente quando se trata de fiscalizar com rigor a atuação das companhias. E pior: foi construído um sistema de inspeção de produtos de origem animal que sofre com os vícios do capitalismo de compadres — o mais conhecido deles, o toma lá dá cá entre empresas e políticos.
Com produção anual de 27 milhões de toneladas de proteína animal, o Brasil é uma potência mundial nessa área: há uma década lidera a exportação de frango e briga pelo primeiro lugar com os Estados Unidos na exportação de carne bovina. É surpreendente que um competidor dessa estatura esteja sujeito a um nível de interferência política como a encontrada no sistema de inspeção ligado ao Ministério da Agricultura. O organograma inclui 27 superintendências estaduais com poder de vetar ou autorizar o trabalho de inspeção feito por servidores de carreira.
Atualmente, mais de dois terços dos superintendentes têm alguma filiação partidária. Na prática, o poder deles costuma reverberar quando se trata de arrecadação para campanhas políticas: os frigoríficos, liderados pela JBS, doaram 400 milhões de reais somente em 2014. E mais: as indicações partidárias às superintendências nos estados com frequência são de gente com pouca intimidade com o agronegócio. Nas contas de fontes ligadas aos inspetores federais, chega a dez o número de chefias estaduais que nunca tinham trabalhado no setor antes de assumir o posto.
O critério político fala tão alto nesses cargos que gera turbulências como a que houve no ano passado na Bahia, quando a indicada pelo presidente Michel Temer ao cargo de superintendente, Lorena Borges, mulher do presidente estadual do Partido Humanista da Solidariedade, foi demitida com dois meses de gestão depois de receber críticas de servidores de que não estava apta à função. Um alento é saber que o próprio ministério reconhece o problema e quer que o legado da Operação Carne Fraca seja uma “blindagem” do trabalho dos inspetores concursados. Medidas concretas ainda estão por vir, mas o discurso é fortalecer um padrão de conduta para os fiscais de campo, promover quem o segue e punir quem sai da linha. “O objetivo é que cada vez mais o trabalho deles seja pautado por critérios técnicos, e não por pressões locais”, diz Luis Rangel, secretário de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura.
Como se não bastasse a politicagem, o trabalho de inspeção de frigoríficos também sofre com o excesso de regras. É um campo fértil para maus agentes públicos criarem dificuldades para a venda de facilidades. O código que regula a inspeção na cadeia de proteína animal, o Riispoa, criado em 1952 pelo governo de Getúlio Vargas, estipula 952 normas para os frigoríficos seguirem antes de liberar um naco de carne ao consumo. O material é tão extenso que chega ao ponto de ter regras para a posição de um frigorífico (no centro do terreno e a pelo menos 5 metros de uma via pública) e para a arquitetura do local (o pé-direito na sala de matança de bovinos deve ter pelo menos 7 metros; nas demais dependências, 4 metros). Para efeito de comparação, o código americano tem 130 normas, restritas ao modo de abate dos animais.
Na esteira da gritaria em torno do sistema de fiscalização causada pelas denúncias da Polícia Federal, o ministro Blairo Maggi anunciou em 29 de março a atualização do Riispoa, a primeira em seis décadas. O novo documento ainda aguarda portarias do ministério para entrar em vigor, mas aponta numa direção correta ao reduzir o cipoal de normas para 542. Exigências tidas como arcaicas foram abolidas. Uma delas é a do envio, por escrito, de uma extensa lista de documentos sanitários ao Ministério da Agricultura antes de um frigorífico já em operação ser autorizado a lançar um produto. Os dados da papelada precisam ser checados pelos próprios fiscais, o que costuma levar até quatro meses — demora que não raro é contornada com o pagamento de propina. Pela nova lei, o registro de um produto novo será feito só pela internet e não dependerá mais de fiscalização.
Normas mais simples para a inspeção poderão resolver outro entrave do setor: a falta generalizada de pessoal para conferir se todas as regras estão sendo seguidas pelos frigoríficos. No quadro do Ministério da Agricultura há 2 700 funcionários para garantir a ordem em tudo o que tem a ver com a produção agropecuária, do abate de animais ao plantio de sementes e uso de fertilizantes. Para dar conta de 4 837 frigoríficos, há apenas 800 profissionais dedicados ao trabalho de inspeção na pecuária. Nos Estados Unidos, o quadro é de 7 800 fiscais para checar o padrão de qualidade de 6 315 abatedouros. E a escassez atual tende a ficar pior com a combinação de poucos concursos para admissão de novos profissionais, devido ao rombo nas contas públicas, com leis frouxas de aposentadoria dos servidores. “Metade dos inspetores na ativa já está apta a se aposentar”, diz Maurício Porto, presidente da associação dos fiscais agropecuários.
A falta crônica de técnicos de carreira resulta num sistema em que as próprias empresas são obrigadas a contratar fiscais e ceder a mão de obra para o Ministério da Agricultura. Esse esquema de fiscalização, que só existe no Brasil, carrega uma série de problemas. A começar pelo evidente conflito de interesses: será que todos os fiscais realmente levam ao pé da letra uma legislação sanitária complicada de seguir e que pode colocar o próprio empregador na ilegalidade? Se a iniciativa privada servisse apenas para complementar o trabalho dos fiscais federais, seria mais fácil defender o sistema. Mas, na prática, os frigoríficos são obrigados a colocar uma verdadeira legião à disposição do ministério — nem a própria pasta sabe o tamanho desse contingente. Na Aurora Alimentos, cooperativa de produtores rurais de Chapecó, no interior catarinense, 730 profissionais, quase 3% da mão de obra, são inspetores cedidos às necessidades de 19 fiscais federais lotados nos 15 frigoríficos da empresa. “Há uma clara deficiência de agentes federais numa atividade com tanta importância na economia”, diz Mario Lanznaster, presidente da Aurora.
Uma forma de contornar o problema seria habilitar fiscais privados ou de governos estaduais e municipais a emitir certificados de inspeção para produtos de origem animal com validade no país inteiro. Hoje, somente a fiscalização federal tem esse poder. Os certificados emitidos por profissionais de órgãos municipais ou estaduais só têm validade em seus territórios de abrangência. A consequência é uma reserva de mercado que, para muitos especialistas, está na raiz da corrupção existente no setor. Desde 2006, o Brasil tem um modelo de fiscalização descentralizado, chamado Suasa, que nunca decolou justamente pela relutância do governo federal em abrir o mercado. O terremoto causado pela Operação Carne Fraca deve acelerar a tramitação no Congresso de um projeto de lei do senador catarinense Dário Berger (PMDB) abrindo a veterinários da iniciativa privada o direito de emitir certificados de inspeção no Sua-sa. Fala-se também na criação de uma agência reguladora da qualidade dos alimentos, uma espécie de Anvisa focada nos problemas do agronegócio e bem distante da interferência política. “Utilizar critérios de meritocracia para a designação desses dirigentes públicos é o caminho para evitar os dissabores que o país enfrenta na cadeia de produção animal”, diz Nelmon Costa, fundador da consultoria Sob Controle, especializada em segurança alimentar.
A experiência internacional tem mostrado que os países ricos também enfrentam dificuldades nessa área. Em 2011, a Austrália reformou sua legislação sanitária e adotou um sistema parcialmente privado. Os cerca de 150 frigoríficos do país passaram a ter a opção de pagar pela fiscalização federal — ao custo de 100 000 dólares por fiscal que fica dentro da empresa — ou contratar diretamente inspetores agropecuários autorizados pelo governo, o que é mais barato. Boa parte das empresas migrou imediatamente para a nova opção, mas os problemas não tardaram a surgir. Em 2014, episódios de contaminação levantaram suspeitas quanto ao rigor do novo sistema. A União Europeia e o Japão proibiram a entrada de carne australiana fiscalizada pelos próprios frigoríficos — apenas produtos inspecionados pelo governo ou por empresas independentes de certificação passaram a ser aceitos.
Nos Estados Unidos, há um projeto para transferir à iniciativa privada a inspeção de carne de frango e porco, mas, diante da resistência da opinião pública, tem sido adiado ano após ano. Mesmo com uma fiscalização ostensiva, o país volta e meia enfrenta problemas de segurança alimentar. Desde o início do ano foram expedidos 21 alertas e pedidos de recolhimento de alimentos de proteína animal. “Não existe sistema 100% seguro e imune a contaminações biológicas”, diz Richard Raymond, ex-subsecretário de agricultura na área de segurança alimentar dos Estados Unidos. “Mas é preciso ter regras claras e transparentes para que o sistema funcione.” No momento, o Brasil tenta recuperar a credibilidade abalada no mercado internacional. Não ajuda nessa tarefa, porém, que um dos donos da JBS, maior companhia de carne bovina do mundo, Joesley Batista, seja afastado judicialmente da holding de sua empresa por descumprir um acordo assinado na Operação Green-field — investigação da Polícia Federal que nada tem a ver com a dos frigoríficos, pois apura prejuízos causados a fundos de pensão de estatais. O Brasil tem uma das produções de carne mais fortes do mundo, não há dúvida. Não podemos pôr isso a perder.