Revista Exame

A estratégia da L'Oréal para levar a inclusão produtiva ao maior porto escravagista das Américas

Na região conhecida como Pequena África, a L‘Oréal investe em projetos que combinam a preservação da memória com desenvolvimento da população negra local

Eduardo Paiva, head de diversidade, equidade e inclusão, Helen Pedroso, diretora de responsabilidade corporativa, Márcia Silveira, head  de DE&I advocacy, e Marcelo Zimet, CEO do Grupo L’Oréal no Brasil, na Pequena África (Andre Valentim/Exame)

Eduardo Paiva, head de diversidade, equidade e inclusão, Helen Pedroso, diretora de responsabilidade corporativa, Márcia Silveira, head de DE&I advocacy, e Marcelo Zimet, CEO do Grupo L’Oréal no Brasil, na Pequena África (Andre Valentim/Exame)

Letícia Ozório
Letícia Ozório

Repórter de ESG

Publicado em 23 de janeiro de 2025 às 06h00.

Marcada por décadas de exclusão, a zona portuária do Rio de Janeiro, que reúne os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, vivenciou um prolongado ciclo de isolamento econômico. Essa parte da cidade ficou conhecida como Pequena África, desde o desembarque de africanos escravizados no século 18, e até hoje preserva a identidade e a herança populacional negra.

Símbolo do complexo histórico, destaca se ali a Pedra do Sal, formação rochosa situada na Saúde. O monumento recebeu esse nome em referência ao desembarque de sal importado de Portugal, um dos árduos trabalhos exercidos por africanos. E, não por acaso, em seu entorno se estabeleceu a principal área residencial de escravizados, ex-escravizados, negros libertos ou que já nasceram livres no Rio de Janeiro.

Tombada como patrimônio histórico do estado em 1987, a Pedra do Sal também se tornou ponto de encontro dos praticantes de religiões de matriz afro-brasileira e berço dos primeiros ritmos carnavalescos. Antes, porém, cercada pelos morros da Conceição e da Providência, a localidade permanecia apartada do restante da cidade, permitindo que a elite se mantivesse distante tanto dos horrores vividos na rotina daquela população que chegava ao Brasil quanto da visão dos milhares de corpos que já aportavam sem vida.

Hoje, entre os antigos casarões e pontos históricos dessa diáspora negra está a sede da L’Oréal, que completa 65 anos no Brasil. A multinacional francesa do ramo de beleza passou a ocupar um espaço próximo ao porto em 2017, ano da revitalização da Pequena África. O desafio de representar a história da região e sua população teve de ser incorporado na estratégia do negócio, de acordo com Marcelo Zimet, CEO da companhia.

Alunos de uma escola pública participam de tour pelo Largo da Prainha: região do Rio de Janeiro concentrou a cultura afro-brasileira após a chegada dos africanos escravizados (Andre Valentim/Exame)

Raízes e transformação

Em entrevista exclusiva à EXAME, o diretor explica que a história da Pequena África potencializa os esforços da empresa na busca pela representatividade e inclusão. “É uma história triste, mas que precisa ser relembrada. Vejo ainda uma necessária reparação histórica com a população negra. A L’Oréal, enquanto empresa, não consegue mudar o mundo, mas pode impactar positivamente as comunidades que estão próximas, e essa é nossa responsabilidade”, afirma.

É nas mesmas proximidades que também está localizado o Cais do Valongo, declarado Patrimônio Mundial da Unesco em 2017, destino de cerca de 1 milhão de africanos submetidos à escravidão ao longo de 40 anos, tornando-se o maior porto de entrada de negros traficados do mundo. O local ganhou novos holofotes em 2011, durante as obras do Porto Maravilha, quando foram encontradas centenas de utensílios característicos de diferentes classes sociais de negros sequestrados de seus países, como búzios, colares e braceletes.

CEO da L'Oréal explica por que o Brasil é o mercado ideal para a inovação no setor de beleza

A preservação dessa memória também se mantém viva por meio do Instituto dos Pretos Novos, criado após uma descoberta acidental em 1996, quando um casal encontrou ossadas humanas ao reformar sua casa. O local revelou-se um antigo cemitério que funcionou de 1769 a 1830, destinado aos corpos dos escravizados que não sobreviviam à travessia atlântica.

“As covas eram rasas, com cerca de 3 palmos, o que vai contra a tradição africana de enterros e velórios. A visão era de que corpos pretos nada valiam. Por isso, os escravizados morriam duas vezes: quando seu coração parava e antes, quando descobriam que não seguiriam suas tradições religiosas na hora da morte”, explica o historiador e professor Flavio Cardoso, que guiou a EXAME durante a visita pela região carioca.

Impacto e inovação

Gerar impacto social e econômico positivo na região é uma agenda na qual a L’Oréal tem investido cada vez mais nos últimos anos. A ação mais recente do programa de impacto social da iniciativa foi a criação da primeira turma do Beleza Mais Diversa, curso de aceleração e capacitação de influenciadores negros.

Em parceria com o TikTok, plataforma de vídeos, e a YouPix, empresa da economia dos creators, 50 jovens passaram por uma aceleração em sua carreira enquanto criadores de conteúdo, com mentorias aplicadas por alguns dos influenciadores negros mais seguidos do Brasil, que ensinaram técnicas para conseguir o sucesso nas redes sociais.

Após o programa — e centenas de postagens —, os formandos acumularam, juntos, mais de 1 milhão de seguidores. Oitenta por cento deles serão selecionados para integrar o time de criadores de conteúdo das marcas da empresa de cosméticos. A ação parte do objetivo da empresa de beleza de garantir que metade dos seus influenciadores parceiros seja de grupos de diversidade.

Mercado e representatividade

A atriz e apresentadora Taís Araújo, que também é porta-voz da L’Oréal, esteve presente na formatura do Beleza Mais Diversa e contou à EXAME que vê a formação como uma forma de enriquecer a mídia a partir da pluralidade da comunidade negra. “Entender a diferença enquanto riqueza é o grande lance do negócio, ainda mais em um país como o Brasil. Durante muito tempo, o país só enxergava beleza no que parecia com o europeu. Quanto mais a gente popularizar pessoas com belezas diversas no Brasil, melhor”, conta.

A crescente diversidade no setor é um dos pontos que colocam o Brasil na terceira posição entre os países que mais gastam com a beleza, de acordo com um levantamento da consultoria de mercado Euromonitor. Em 2023, foram gastos 34,2 bilhões de dólares na área de beleza e cuidados pessoais, resultado influenciado pelas compras de cuidados com cabelos, que somaram 5,6 bilhões, e maquiagens, com gastos de 2,27 bilhões de dólares. As áreas de skincare e cuidados contra o sol também apresentaram altas, com os resultados de 1,4 bilhão e 1 bilhão de dólares, respectivamente.

Para o CEO da companhia, a realização do Beleza Mais Diversa foi um passo para levar as ações já realizadas internamente para a comunicação e o marketing da L’Oréal. A companhia de beleza conta hoje com 45% de funcionários negros no Brasil. A meta anual de contratação de líderes negros, estipulada em 22%, está atualmente em 21%.

Legado e construção

“O Brasil é um país de conexão emocional, então começamos a trabalhar com os influenciadores pensando na comunicação dos produtos. O problema é que a população negra está sub-representada entre os criadores de conteúdo. Então vimos a necessidade de trazer novos influenciadores”, explica.

A ação, de acordo com Zimet, partiu das equipes de comunicação, que consultaram a ideia e a campanha com o grupo de afinidade étnico-racial da companhia. “Foi uma oportunidade de criar influenciadores não só para a L’Oréal, mas para o mercado. E não vai parar por aqui; queremos as próximas turmas, porque para mim essa é uma nova economia que está surgindo”, afirma.

Outra iniciativa do grupo, voltada para a inclusão produtiva da população ao redor da sede, é a Escola de Beleza da Pequena África. O projeto busca capacitar mulheres em vulnerabilidade social para que sejam cabeleireiras, auxiliares de cabeleireiras, barbeiras ou manicures.

Além de promover uma melhoria na autoestima das formandas, a Escola de Beleza gera empoderamento econômico para moradoras da Pequena África. A iniciativa é feita em parceria com o Movimento pela Equidade Racial (Mover) e com a Fundação Darcy Vargas (FDV), organização social e educacional da região.

Pedra do Sal, na zona portuária do Rio de Janeiro: berço dos primeiros rituais do Carnaval e das religiões de matriz africana (Andre Valentim/Exame)

Os cursos, que duram em média quatro meses, já contaram com mais de 100 participantes. A ação faz parte do Beleza Por Um Futuro, programa global da companhia que visa utilizar o ramo de atuação para gerar desenvolvimento socioeconômico. A ação foi implementada em 2017 e já formou mais de 2.000 mulheres.

Além do incentivo às carreiras na área de beleza, a FDV realiza outros dois projetos em parceria com a L’Oréal. O Sabores e Saberes busca formar mulheres negras da região como auxiliares de cozinha. Uma formação rápida, de seis meses, busca a empregabilidade e a independência econômica delas. Já o Beleza Inclusiva e Tecnológica — que também conta com parceria do Vai na Web, instituto de capacitação sobre a economia digital — desenvolve adolescentes e adultos de até 35 anos em competências digitais, como programação e inteligência artificial, além de habilidades interpessoais. O objetivo é garantir que a população do entorno também esteja capacitada para os avanços tecnológicos e a digitalização do trabalho. O objetivo é formar 150 pessoas até o fim de 2025.

Para Eduardo Paiva, líder de diversidade, equidade e inclusão do grupo para o Brasil, o segredo para as altas taxas de representatividade negra na companhia é atuar com profundidade em projetos que melhorem a vida da população. “Não vamos apenas colocar uma pessoa negra no cargo de liderança, mas preparar a comunidade para que chegue a essas posições. São compromissos de longo prazo, pensando no futuro da empresa e do Brasil”, conta. “Essa nossa fórmula garantiu que a representatividade se perpetuasse nos últimos 65 anos e permitirá que se mantenha nos próximos 65 anos.”

Helen Pedroso, diretora de responsabilidade corporativa e direitos humanos da L’Oréal, conta que a estratégia do grupo até 2026 inclui destinar 80 milhões de euros a projetos de responsabilidade social globais. No Brasil, a meta é impactar positivamente 13.000 mulheres negras e indígenas.

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