A divisão entre os “lulistas" e os “bolsonaristas” deu margem à interpretação de que o Copom estaria enfrentando a mesma polarização da sociedade (Wong Yu Liang/Getty Images)
Colunista
Publicado em 23 de maio de 2024 às 06h00.
Entre as minhas preocupações mais latentes está o afastamento cada vez mais perceptível que há entre a sociedade civil e a Academia — não que essas coisas convivessem em harmonia e proximidade no Brasil, mas elas parecem ter se distanciado ainda mais. Não se faz ciência e, por conseguinte, proposição de política econômica dentro do que deveria ser a fronteira do conhecimento com discurso politizado. Também não estou dizendo que a ciência detém um saber divino ou perfeito, capaz de solucionar todos os problemas do mundo. Mas ela é o melhor que temos disponível, funcionando a partir de uma série de protocolos muito bem definidos e rituais institucionalizados.
Não basta você achar algo bom ou ruim. Formula-se uma hipótese a partir da sua conjectura. Submete-se essa conjectura ao teste empírico. Produzem-se vários novos testes, artigos e métodos para buscar validar aquilo. Caso se encontre significância estatística no teste, a conjectura não foi rejeitada e o jogo continua.
A validade empírica, de um lado e de outro, deu lugar ao apriorismo das posições ideológicas. Se tal medida se alinha ao estereótipo de minha corrente de pensamento, está aceita mesmo sem precisar passar pelo teste empírico. Se você é de esquerda, gostou do show da Madonna. Se é de direita, identificou uma série de referências ocultistas no palco. Aleister Crowley, que também não deve ter visto o show, saiu falando que adorou.
A politização teria chegado ao Copom. Com os quatro diretores nomeados pelo presidente Lula votando de maneira distinta aos demais cinco membros do colegiado do BC, rapidamente condenamos à morte a independência do Banco Central. Na prática, ressuscitaríamos a Era Tombini e teríamos o Poder Executivo como presidente do Banco Central brasileiro.
A decisão do Copom na semana passada foi inequivocamente ruim. Quando você tem um colegiado dividido entre os “novos” e os “velhos”, alimentam-se os piores medos. O Copom deveria saber disso. Não quer dizer que autoridades monetárias sempre precisem de consensos. O BoE mesmo acabou de encontrar um dissenso, de 7 a 2. O Fed deve também viver seus momentos a partir do segundo semestre. Mas a natureza da divisão entre os “lulistas” e os “bolsonaristas” deu margem à interpretação de que o Copom agora estaria enfrentando a mesma polarização da sociedade.
Teríamos uma gestão nomeada com o propósito bem definido de jogar os juros para baixo na marra a partir de 2025, alinhado ao suposto modelo desenvolvimentista defendido historicamente por economistas ligados ao PT.
Nada poderia ser pior neste momento. O Brasil nunca conseguiu resolver seu problema fiscal adequadamente. É uma questão estrutural. Mas estava circunstancialmente pior com os ferimentos provocados no arcabouço recente — liberação de crédito extraordinário de 15,7 bilhões de reais e revisão de metas para 2025 e 2026. Para combater nossa fragilidade fiscal, precisávamos de um monetário muito apertado. Tínhamos uma grande âncora funcionando. Agora conseguimos levantar questionamentos também sobre a âncora monetária. Os juros seriam mais baixos, a inflação e o dólar subiriam. Perderíamos a moeda, justamente quando o real completa 30 anos de idade.
Criamos um problema que não existia. Na semana passada, honramos velhas máximas como: “O Brasil não perde uma oportunidade de perder uma oportunidade”; “Atravessamos a rua para escorregar na casca de banana que estava na outra calçada”; “Não se preocupe: este país não corre o menor risco de dar certo”; “Vamos mais uma vez capotar na reta”.
Existiam, de fato, elementos técnicos para justificar um corte de 50 pontos. Eles foram apresentados na ata publicada nesta terça-feira, mas não afastam a nuvem de dúvidas que recaem sobre as motivações que levaram à decisão do comitê. De toda forma, é importante considerar que seria um erro político um tanto grande retirarmos o pilar do rigor monetário. O dólar dispararia; a inflação, também. Feitos de gente, os mercados têm seu narcisismo e adoram atribuir a fatores locais as dinâmicas de preço, mas a verdade é que estamos muito dependentes do ambiente internacional. O Brasil tem enorme sensibilidade ao comportamento das taxas de juro nos Estados Unidos. Sofremos bastante quando elas subiram e, de maneira simétrica, deveríamos ser um dos maiores beneficiados se for confirmado o ciclo de corte por lá.
O caminho mais provável ainda parece ser da mediocridade, da complacência e da antropofagia brasileira, aquela alternância entre a monotonia do banquinho e violão de João Gilberto seguida do tropicalismo idolatrado pela esquerda, mas que bebe dos metais elétricos do rock americano. Em linguagem de economista, o Banco Central mudaria um pouco suas preferências e sua função de reação, dando mais peso a desvios do produto do que a divergências da inflação à meta. Seríamos, sim, um pouco mais dovish, mas ainda obedecendo a uma regra de Taylor defensável, com parâmetros recalibrados.
Desde quando o próprio presidente do Banco Central alertou para riscos crescentes diante da maior incerteza internacional, a tal incerteza diminuiu. Jerome Powell teceu comentários mais brandos e descartou alta de juro; o Relatório de Emprego criou menos vagas de trabalho, e os pedidos de auxílio-desemprego subiram bastante. O dólar voltou bem, e a inflação brasileira continuou dando sinais favoráveis, com melhor composição do segmento de serviços.
Cumpre também dizer que há diretores do Banco Central que votaram a favor de um corte de 50 pontos sem nenhuma vinculação política conhecida. Paulo Picchetti goza de profundo respeito da Academia e sempre foi um estudioso bastante ortodoxo da inflação brasileira.
Dentro do que poderia ser, a ata do Copom corrigiu o excesso de pessimismo criado nos últimos dias. As justificativas apresentadas demonstram um Copom unido em prol da perseguição obstinada do centro da meta de inflação de 2025, mas não apaga o ocorrido. A mácula existe, indelével.
Mais do que escolher as palavras mais adequadas, o Copom precisará agir de forma coesa e ortodoxa em suas próximas reuniões. Essa é a única maneira de resgatar a credibilidade da política monetária nacional e preservar o legado de três décadas que o Brasil construiu para nossa moeda.