Revista Exame

Governantes e sociedade: quem serve a quem, afinal?

A voz das ruas é um alerta: o brasileiro cansou de ser feito de bobo. O governo tem de trabalhar para nós. Não o contrário


	O papel de cada um: o ministro inglês Hammond foi repreendido em público por uma cidadã. E abaixou a cabeça
 (Leon Neal/AFP)

O papel de cada um: o ministro inglês Hammond foi repreendido em público por uma cidadã. E abaixou a cabeça (Leon Neal/AFP)

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Da Redação

Publicado em 27 de fevereiro de 2014 às 14h06.

São Paulo - Há 250 anos que a Inglaterra não vê tanta ­chuva. As tempestades têm sido uma calamidade para um povo acostumado à previsibilidade. Cidades inteiras ficaram sob as águas, cidadãos tiveram de ser retirados de casa e passaram à condição terceiro-mundista de desabrigados, gente morreu.

As consequências da desordem climática na vida dos ingleses levaram à crise no gabinete do primeiro-ministro, David Cameron. Dias atrás, Philip ­Hammond, secretário de Estado para a Defesa do governo de Sua Majestade, foi despachado, de botas e capa de chuva, para uma das regiões mais atingidas pelas tormentas.

Foi então que Hammond, homem com status de ministro, participou involuntariamente de um episódio que traduz o que é ser cidadão e o que é ser um servidor do Estado.

Em frente às câmeras de TV de todo o mundo, ele foi repreendido por uma voluntária, uma mulher do povo. “Estamos trabalhando há 48 horas. Arriscamos nossa vida para retirar as pessoas. O que falta para vocês perceberem que precisamos de ajuda?” Assessores do ministro não intervieram.

A voluntária não foi desqualificada como agente da oposição. Hammond não tentou dar explicações para o inexplicável. Apenas abaixou a cabeça diante das câmeras. 

Quanto tempo será necessário até que o Brasil atinja esse nível de compreensão sobre o papel de cada um na sociedade? Quase um ano se passou desde que os primeiros protestos irromperam nas ruas do país — e, desde então, as manifestações impopulares permanecem incompreendidas.

O que as pessoas querem? Por que as reivindicações apareceram de forma tão difusa? Mais saúde, mais educação, mais segurança, menos corrupção, menos gastança. O que há por trás de tantas palavras de ordem, sem muita conexão umas com as outras? 

É possível que a resposta seja mais singela do que cientistas políticos e institutos de opinião imaginam: o brasileiro comum — eu, você, seu filho, sua empregada, a amiga dela — gostaria de ser alguém cuja opinião importasse, assim como a voluntária inglesa sabe que é.


E gostaria que aqueles que governam, trabalham com o interesse público e decidem o que fazer com nosso dinheiro fossem aquilo que realmente deveriam ser: servidores, e não imitadores dos porcos de A Revolução dos Bichos, de George Orwell (“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”).

É de uma obviedade assombrosa. Há quase 200 anos as coisas acontecem de forma diferente num Brasil de alma patrimonialista, com Estado e governos que se consideram fins em si próprios. Nossos governantes, historicamente, não se enxergam como servidores da sociedade.

Aqui, é a sociedade que deve servir aos governos e às suas máquinas hipertrofiadas. Prover educação, segurança, transporte e saúde com o mínimo de qualidade não é visto como obrigação dos comandantes de plantão, mas como favores feitos à massa. É de bom-tom agradecer.

No Brasil, ministros de Estado, deputados, senadores, prefeitos e governadores — só para ficar no alto escalão da República — não abaixam a cabeça sob as críticas pertinentes, e cada vez mais frequentes, da sociedade. Nós é que — com uma subserviência que não faz distinção de classe — abaixamos a cabeça para eles.

Trabalhamos para eles. Não o contrário. E muita gente ainda acha isso perfeitamente normal. O Brasil deve ser um caso único onde pagadores de impostos são tratados como contribuintes. Não se trata de uma questão semântica. Quem paga exige contrapartida à altura. Quem contribui, não.

O desprezo ao servir não é um mal exclusivo de políticos e funcionários públicos. Ele está impregnado também no mundo das empresas. De forma geral, o brasileiro é um consumidor de segunda classe.

Muitas coisas mudaram no país — algumas para muito melhor —, mas um número impressionante de companhias ainda não consegue fazer o básico: entregar a quem compra seus produtos e serviços o que foi prometido no ato da venda. 

Para o público e também para o privado, a voz das ruas é um alerta: o brasileiro está ficando cansado de ser feito de bobo. E a pressão pela inversão dos papéis — de quem serve e de quem deve ser servido — pode ter consequências mais imediatas do que muitos imaginam.

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