Revista Exame

Quem precisa da Sudene?

Resposta: os 163 funcionários da própria Sudene. Eles consomem quase 90% do orçamento da autarquia morta-viva. Cinco anos depois de ressuscitado, o órgão nada fez para estimular o desenvolvimento nordestino

Obra em Aracaju: iniciado em 1986, projeto de hotel é um dos micos da Sudene (Maria Odilia/EXAME.com)

Obra em Aracaju: iniciado em 1986, projeto de hotel é um dos micos da Sudene (Maria Odilia/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 22 de fevereiro de 2012 às 05h00.

São Paulo - Estão no nordeste os bra­sileiros que mais confiam em seu futuro. Quase 60% dos nordestinos estão seguros de que terão boa situação financeira nos próximos anos, número 10 pontos percentuais superior à média nacional, segundo pesquisa da Associação Comercial de São Paulo.

Essa é apenas uma entre várias evidências de que a região tem se distanciado do passado de miséria extrema. Os programas federais de distribuição de renda, como o Bolsa Família, e a ascensão da nova classe média expandiram o mercado consumidor em todo o país, mas em especial no Nordeste, onde a renda média das famílias é mais baixa.

O aumento do poder aquisitivo atraiu investimentos privados: setores como automobilístico, alimentício, farmacêutico e naval anunciaram 50 bilhões de reais em projetos na região ao longo da década. Ainda não se pode considerar o Nordeste um bolsão inequívoco de prosperidade — a região continua a ser campeã em indicadores como desnutrição e analfabetismo.

Mas o retrato pintado por Candido Portinari, com retirantes de olhar mortiço sob um céu lúgubre, deixou de espelhar a realidade. O Nordeste mudou para melhor.

O mesmo não se pode dizer de um órgão público que, segundo o discurso vindo de Brasília, deveria ter tudo a ver com essa transformação: a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. Sepultada em 2001 sob uma avalanche de denúncias de corrupção e com 653 projetos cancelados por irregularidades, a Sudene foi ressuscitada em 2007.

Passados cinco anos, ela não chega a ser nem mesmo uma figurante na onda recente de crescimento econômico nordestino. A recriação foi uma das bandeiras de campanha do então candi­da­to Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência. Mas o que foi vendido como panaceia para os problemas nordestinos se tornou um fardo extra na pesada burocracia brasileira.

A Controladoria-Geral da União detectou que 87% do orçamento do órgão em 2009 foi usado para pagamento de funcionários ou na compra de material de escritório. O padrão se repetiu nos anos seguintes. A Sudene, portanto, até agora só serviu para alimentar a própria Sudene.


Dos seus 163 funcionários, 60% estão em atividades subalternas, como faxina ou vigilância, enquanto faltam profissionais para as operações-chave — há apenas dois engenheiros na análise de projetos. Profissionais qualificados não são o único artigo escasso. Ao ressurgir, a Sudene ficou de criar o Plano Regional de Desenvolvimento do Nordeste, com diretrizes para balizar sua atuação. 

Até hoje o plano não está pronto.

O órgão foi criado pelo presidente Juscelino Kubitschek em 1959 com base em projeto do economista Celso Furtado. Sua meta: reduzir a distância entre o desenvolvimento nordestino e o das regiões Sul e Sudeste. Nos anos que se seguiram, a autarquia encorpou — no auge, mantinha 3 700 funcionários — e chegou a ter status de ministério.

Após o golpe militar de 1964, ganhou feições cada vez mais fisiológicas. E não só isso: ao ser extinta pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a Sudene tinha sido sangrada por desvios de 2,2 bilhões de reais, segundo as contas feitas na época pela CPI do Fundo de Investimento do Nordeste (Finor).

“O que FHC fez foi eutanásia: ele enterrou um paciente que já estava entubado”, diz José Aristophanes Pereira, diretor da Sudene nos anos 60. “Hoje estamos em um Brasil mais desenvolvido. A Sudene foi importante no passado, mas tudo tem seu tempo — e seu fim.”

Especialistas em políticas de desenvolvimento defendem que programas de estímulo regional são boas ferramentas para amainar desigualdades históri­cas. É o que está em curso na Aquitânia, tida como uma das regiões mais atrasadas da França, no sudoeste do país.

Lá, deverá ser investido 1 bilhão de euros até 2013 para incentivar a criação de empresas de setores como o de tecnologia da informação. Mas o exemplo francês não tem paralelo com a Sudene atual. A autarquia brasileira tem passado ao largo das discussões sobre as prioridades nordestinas.

Não participou, por exemplo, da definição do complexo portuário industrial de Suape, em Pernambuco, o maior polo de investimento regional. Mesmo a ferrovia Transnordestina já estava no radar do financiamento público antes de o órgão ser recriado — a ferrovia, principal projeto financiado pela Sudene, recebeu 1,5 bilhão de reais do fundo administrado por ela, o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste.


O resultado, como se viu recentemente, não é dos melhores. Em visita ao Nordeste, a presidente Dilma Rousseff passou pelo constrangimento de cancelar um discurso num dos canteiros da ferrovia. As obras estavam praticamente abandonadas.

Nem os governadores nordestinos parecem preocupados com o esvaziamento da Sudene. “Estive em quatro reuniões, e em nenhuma havia governadores. No máximo aparecia o vice de Pernambuco, mas só porque a Sudene fica em Recife”, diz o presidente da Federação das Indústrias do Ceará, Roberto de Macêdo.

“E a última reunião foi por videoconferência.” Em lugar de dar gás ao órgão, os governadores preferem fazer à parte um fórum de debates anual. “Em 2010, ano de eleição, foi difícil trazer os governadores para cá”, reconhece Paulo Fontana, superintendente da Sudene.

Uso político

Fontana é ligado ao ex-ministro da Integração Nacional Geddel Vieira Lima, do PMDB baiano. Mas o atual ministro, Fernando Bezerra Coelho, do PSB pernambucano, acossado por denúncias de uso político de órgãos a ele subordinados, como o Dnocs, de combate à seca, e a Codevasf, da área de irrigação, cogitava mexer também na Sudene — até o fechamento desta edição, no dia 13 de fevereiro, Fontana permanecia no posto.

“Ainda diziam que meu Nordeste não ia pra frente. Falavam até que a Sudene não funcionava”, cantou Luiz Gonzaga em Nordeste pra Frente. Felizmente, o Nordeste avançou. Já a Sudene, que morreu e ressuscitou, continua a cumprir a profecia do rei do baião.

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