Fábrica da Lactalis: a meta é ser líder no Brasil (Alexandre Battibugli/Exame)
Gian Kojikovski
Publicado em 1 de fevereiro de 2018 às 05h00.
Última atualização em 3 de agosto de 2018 às 08h54.
A multinacional francesa Lactalis, um dos maiores laticínios do mundo, investiu para ser protagonista no mercado brasileiro. Comprou primeiro a pequena fabricante de queijos Balkis, em 2013, por 70 milhões de reais. Depois adquiriu, por 250 milhões, quatro unidades de produção da fabricante de laticínios LBR, num negócio que rendeu também a marca Parmalat no país. Finalmente, em 2014, pagou 1,8 bilhão pela divisão de lácteos da gigante de alimentos BRF, composta das marcas Batavo e Elegê. O objetivo de roubar da suíça Nestlé a liderança no mercado nacional foi alcançado no dia 5 de dezembro do ano passado, quando a Lactalis anunciou a compra da mineira Itambé. Passou, com isso, a ter uma captação de 2,7 bilhões de litros de leite por ano, com 20 fábricas e mais de 10.000 funcionários no Brasil. Toda essa magnitude ficou apenas no papel. Desde o dia 15 de dezembro, uma disputa judicial travou o negócio. Tudo porque a Vigor, antiga sócia da Cooperativa Central dos Produtores Rurais de Minas Gerais (CCPR) na Itambé, reclama que foi passada para trás.
O imbróglio foi deflagrado quando a Vigor, que pertencia ao grupo J&F, foi comprada pela mexicana Lala Foods em meio à liquidação feita pelos irmãos Joesley e Wesley Batista. O negócio à venda incluía toda a Vigor e 50% da Itambé — os outros 50% eram da CCPR. A oferta interessou grandes grupos mundiais do setor, incluindo a Lactalis. Em agosto do ano passado, a mexicana Lala Foods fez a melhor proposta e levou a Vigor e a Itambé por 5,7 bilhões, dos quais 1,4 bilhão destinava-se à Itambé — 700 milhões para a Vigor, e 700 milhões para a CCPR. Foi quando o simples começou a ficar complicado. A CCPR poderia vender sua parte ou lançar mão de uma cláusula do acordo de acionistas e comprar metade da Vigor pelo mesmo valor oferecido. Foi o que fez, anunciando a aquisição no dia 20 de setembro e depositando em 4 de dezembro 552 milhões de reais — 700 milhões da oferta menos as dívidas. No dia seguinte, a CCPR divulgou que estava vendendo 100% das ações da Itambé à Lactalis. O valor da negociação não foi anunciado, mas estima-se que tenha girado em torno de 1,9 bilhão de reais. Todas as empresas envolvidas negaram pedidos de entrevistas.
A cooperativa, pelo que constava no acordo de acionistas assinado em 2013, quando a sociedade foi celebrada, teria de ter levado a oferta que recebeu da francesa para o conhecimento da Vigor. Já a Lactalis havia assinado um termo de confidencialidade em que se comprometia a não fazer propostas futuras por ativos da Vigor e da Itambé durante dois anos. A Lactalis saiu perdedora do processo e anunciou a aquisição da Itambé menos de 24 horas depois de a companhia ter sido comprada pela CCPR, num prazo atípico. A suspeita é que a cooperativa estivesse negociando com os franceses sem notificar a Vigor. Assim, logo que a aquisição saiu, a Vigor entrou com duas ações na Justiça — uma contra a CCPR e outra contra a Lactalis.
No dia 15 de dezembro, o juiz Luis Felipe Ferrari Bedendi, da 1a Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem em São Paulo, entendeu que nem a compra dos 100% da Itambé pela CCPR nem a posterior venda para a Lactalis eram válidas. Mais tarde, ele reformulou a decisão, reconhecendo a compra inicial, mas não a venda para a companhia francesa. Na segunda instância, em 15 de janeiro, o desembargador Cesar Ciampolini aprovou as duas operações, mas disse que a Lactalis não poderia assumir o negócio até que um tribunal arbitral decidisse, afinal, como ficaria a Itambé. Na segunda-feira 29 de janeiro, o Cade, conselho de defesa da concorrência, validou a fusão. Mas o imbróglio não termina aí. No Cade, a Vigor ainda pode entrar com recurso. Caso nada mude, a Lactalis está liberada para finalizar a compra, mas não poderá administrar a empresa antes de uma decisão do tribunal arbitral, o que pode levar até dois anos. Até lá, a CCPR, que queria se livrar da Itambé, terá de gerir o negócio sozinha. “É o pior dos mundos para a Lactalis. Vai repassar quase 2 bilhões de reais à CCPR, mas não poderá administrar imediatamente. No futuro, poderá vir a assumir um negócio com números diferentes de quando o adquiriu”, diz um executivo do setor.
A Itambé foi criada no início da década de 50 pela CCPR e tornou-se uma das marcas mais conhecidas no país. Em 2013, em crise, vendeu metade de suas ações para a Vigor, então do grupo J&F, numa transação que avaliou a companhia em 820 milhões de reais. A decisão recente de tornar-se dona de toda a Itambé foi uma surpresa, já que a própria Vigor não acreditava que a cooperativa conseguisse levantar o capital até a data do pagamento, dia 4 de dezembro. A princípio, o financiamento seria organizado pela Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais. No dia 1o de dezembro, no entanto, a CCPR foi avisada por e-mail que a entidade- de fomento estava fora. Em três dias, a CCPR conseguiu uma nova fonte de financiamento, até agora mantida em segredo. O banco francês BNP Paribas, citado como possível financiador por reportagem do jornal Valor, negou a informação.
O principal motivo apontado pela CCPR para não assinar com a Lala é o fato de a mexicana não aceitar um contrato de compra de leite nas condições determinadas pelos cooperados. A Lactalis topou. Outro ponto que desagradou à cooperativa foi a diferença nos valores oferecidos às empresas. A Vigor fatura 2,4 bilhões de reais e tem um lucro operacional de 200 milhões. A Itambé fatura 2,7 bilhões de reais, mas tem lucro operacional de 130 milhões. A Lala estava, portanto, pagando pela Vigor um múltiplo de quase 22 vezes o lucro operacional, mas de apenas 11 para a Itambé. A CCPR achou que pudesse estar sendo subavaliada intencionalmente, já que a Vigor sabia que dificilmente a cooperativa teria como exercer seu direito de recompra. “A Vigor trabalha com produtos de maior valor agregado, mas a diferença é muito grande”, diz um analista do setor. Bancos criticam os 4,3 bilhões de reais pagos pela Lala para, no fim das contas, ficar só com a Vigor. “É a transação mais cara que vimos em nossa história cobrindo o setor”, diz um relatório do Scotiabank ao qual EXAME teve acesso.
A CCPR tem um histórico de atritos com a Lala. No início da década passada, uma oferta de compra feita pela Lala foi considerada muito baixa. Depois, em 2012, as empresas chegaram a um acordo, que dependia da diligência feita pela compradora. Mas o processo durou mais de um ano. “A CCPR piorava sua situação financeira mês a mês e achou que a Lala enrolava na diligência para tentar renegociar o acordo pagando menos. No meio de tudo, apareceram os Batista, que fecharam o negócio em menos de uma semana e salvaram a Itambé”, diz um executivo que acompanhou a negociação.
A Lactalis é comandada pelo bilionário francês Emmanuel Besnier, quarto homem mais rico da França, com uma fortuna de 16,7 bilhões de dólares. Ele não dá entrevista nem posa para fotos. Também não visita suas fábricas. E faz da Lactalis, dona de marcas como a Président, uma empresa tão fechada quanto ele. A companhia é a maior produtora de lácteos da Europa e a segunda maior do mundo, com fábricas em 45 países e faturamento de 17 bilhões de euros. Em 2011, a Lactalis saiu vitoriosa de uma oferta hostil pelo controle da Parmalat, o que causou um incidente diplomático entre a França e a Itália. Em 2015, foi condenada na França por um esquema de cartel na venda de iogurtes. No final de 2017, Besnier foi criticado por levar um mês para se posicionar depois de 12 milhões de latas de leite em pó infantil com a bactéria Salmonella serem enviadas a 83 países. O Brasil não estava entre os afetados, mas, semanas depois do escândalo mundial da Salmonella, o país seria palco de um novo problema para a Lactalis. Bernier, agora, tem de lidar com uma situação para lá de inusitada: pagar por uma empresa e não poder assumir seu controle.