Oficina com imigrantes ilegais: a produção de jeans para a Zara usava trabalho considerado escravo (MPT/Campinas)
Da Redação
Publicado em 5 de outubro de 2011 às 18h47.
São Paulo - Na noite de 16 de agosto, uma terça-feira, o programa A Liga, da TV Bandeirantes, traçou um retrato do trabalho escravo no Brasil.
Entre os casos apresentados estava o de uma oficina têxtil na zona norte da capital paulista, onde imigrantes bolivianos ilegais costuravam roupas da marca espanhola Zara num regime considerado de escravidão urbana para os padrões do século 21: não tinham carteira de trabalho, cumpriam jornadas diárias superiores a 14 horas, não recebiam salário, dormiam e faziam refeições no local em condições precárias e não podiam deixar a oficina sem autorização do dono.
A história ganhou espaço na imprensa mundial, mas foram as declarações indignadas dos consumidores nas redes sociais, iniciadas ainda durante a apresentação da reportagem, que deram a dimensão do estrago. “Zara” e “trabalho escravo” chegaram a ser, respectivamente, o primeiro e o terceiro temas mais comentados no Twitter naquela semana.
Na sexta dia 19, as ações da Inditex, controladora da marca, encerraram o pregão na bolsa de Madri em queda de 4%. O papel, até então considerado atraente por fundos interessados em empresas com imagem social positiva, havia perdido boa parte de seu charme. No dia 29, a Assembleia Legislativa de São Paulo decidiu convocar a empresa para prestar esclarecimentos.
Ninguém deu atenção à nota oficial da Zara, em que repudiava o trabalho escravo e responsabilizava um fornecedor que “quarteirizou” a produção. Isso ocorreu por uma razão simples: nos dias de hoje, virou regra corrente atribuir às empresas responsabilidade pelos atos de seus fornecedores.
“Já faz tempo que o papel da empresa vai muito além do que ocorre dentro de seus muros”, diz Carlos Rossin, diretor da consultoria PwC. “Quem não entendeu isso e não monitora toda a cadeia vai ter prejuízos financeiros e sérios danos à imagem.”
No discurso, a maioria se diz preparada para gerenciar a cadeia de fornecedores. Entre as mais de 150 empresas que participam da pesquisa do Guia EXAME de Sustentabilidade 2011, com publicação prevista para novembro, 90% declaram levar em conta a postura dos fornecedores em relação à comunidade, aos trabalhadores e ao meio ambiente na hora de selecioná-los.
E 75% dizem ter nos contratos cláusulas prevendo o monitoramento dos fornecedores. Na prática, no entanto, mesmo as maiores e mais organizadas companhias do mundo já se mostraram despreparadas para lidar com a terceirização. A imagem da Nike e da Apple foi manchada por fornecedores chineses que utilizavam trabalho infantil.
A siderúrgica Gerdau teve problemas com terceirizados que se abasteciam em carvoarias ilegais mantidas com madeira de desmatamento e trabalho degradante. As varejistas Marisa, Pernambucanas e Collins já tiveram problemas trabalhistas semelhantes aos que afetam a Zara.
As empresas costumam justificar os deslizes alegando que as cadeias são cada vez mais longas e capilarizadas, o que complica o monitoramento.
No primeiro semestre, a MRV Engenharia, maior construtora do Minha Casa, Minha Vida, foi responsabilizada pelo atraso no pagamento de salários e pela precária situação em que viviam mais de 60 trabalhadores nordestinos contratados por prestadores de serviços no interior de São Paulo.
Entre eles estava um grupo de 22 maranhenses que chegou a morar numa olaria abandonada e ser transportado para o trabalho numa Kombi branca caindo aos pedaços, batizada de Branca de Neve. “Tomamos muitas medidas preventivas, mas trabalhamos com mais de 1 600 empreiteiras terceirizadas, com 10 000 operários indiretos e 300 canteiros em 90 cidades”, diz Junia Galvão, diretora executiva da MRV. “Por maiores que sejam os nossos cuidados, algo pode sair do controle.”
Para as autoridades, no entanto, argumentos como esse soam como desculpa. “Ouvimos sempre o mesmo discurso: nós não sabíamos”, diz Luis Alexandre de Faria, auditor fiscal do Ministério do Trabalho responsável pelo flagrante da Zara. “Na maioria das vezes, não é bem assim.”
Faria levou dois meses para apurar que 40% das peças vendidas pela Zara no Brasil eram fabricadas no país por 50 empresas e que o maior fornecedor, a Aha, chegou a entregar cerca de 46 000 peças entre maio e julho.
O que chamou a atenção foi o fato de a Aha ter só cinco costureiras e uma rede de 33 oficinas fornecedoras sem um único empregado. A denúncia que rodou o mundo diz respeito a duas dessas oficinas. “Se uma fornecedora tem essa estrutura, quem fabrica as roupas: o divino Espírito Santo?”, pergunta Faria.
Terceirização de riscos
A terceirização foi uma prática adotada a partir dos anos 90, sobretudo para reduzir custos. “A maioria das empresas calculou que, ao repassar parte das operações, estava também terceirizando responsabilidades”, diz Paulo Branco, da consultoria socioambiental Ekobé.
“O tempo mostrou que era o contrário: elas assumiram o risco de responder pelos atos de terceiros.” Para reduzir riscos é preciso assumir, conhecer e monitorar todos os elos da cadeia e ter em mente uma máxima: empresas menores ou localizadas em áreas carentes exigem atenção redobrada.
A Alcoa tem um cadastro com o perfil de 7 000 fornecedores. Todos responderam a questionários com detalhes sobre a estrutura e o sistema operacional e assinaram contratos em que se comprometem a seguir os princípios da empresa. Na hora de fazer visitas surpresa, a Alcoa vai atrás do fornecedor do fornecedor, como o produtor de cal do interior do Ceará.
Se um dia a vistoria deparar com um problema, como trabalho infantil, a ordem é ajudar o prestador de serviço a regularizá-lo o mais rapidamente possível. “Se ele está na cadeia de fornecimento, faz parte da empresa”, diz Rodolfo Carvalho, gerente de logística e aquisição. “É nossa responsabilidade orientá-lo.”