Revista Exame

Quando a estratégia “dá ruim”

O cancelamento pode extrapolar as redes sociais e arranhar a reputação do negócio todo para além das marcas. A solução? Saber medir (e gerenciar) o risco

Grandes marcas estão expostas a riscos, a exemplo da Nike, que gerenciou mais de uma crise com patrocinados, entre eles o jogador americano de golf Tiger Woods (Mario Tama/Getty Images)

Grandes marcas estão expostas a riscos, a exemplo da Nike, que gerenciou mais de uma crise com patrocinados, entre eles o jogador americano de golf Tiger Woods (Mario Tama/Getty Images)

Cris Galbin
Cris Galbin

Colaboradora

Publicado em 17 de agosto de 2024 às 06h00.

Última atualização em 22 de agosto de 2024 às 12h12.

Num mundo em que informações chegam em segundos aos celulares, a estratégia de atrelar celebridades a negócios (e vice-versa) para construir reputação ou alavancar vendas torna-se cada vez mais complexa — e arriscada. Ainda assim, o “cancelamento” de talentos ou a repercussão negativa de empresas envolvidas em escândalos de corrupção parecem não intimidar quem assina o cheque das ações de marketing. Ao mesmo tempo, na última década, a atividade de gestão de riscos passou a abraçar o assunto dentro das companhias.

O impacto da estratégia para marcas e personalidades não é tão facilmente mensurável, afirmam especialistas em marketing e acadêmicos ouvidos pela EXAME CEO. Contudo, há pistas relacionadas ao ritmo de expansão desse universo estratégico. “É cada vez mais difícil ter a atenção das pessoas em um mundo multitarefa”, afirma Diego Senise, CEO da consultoria Ilumeo, especializada em data ­science e marketing.

Enako, a cosplay número 1 do Japão: nos países orientais, cerca de 40% dos anúncios publicitários estão atrelados a talentos (Jun Sato/Getty Images)

O executivo ilustra o raciocínio com dados do mercado americano. A presença de celebridades em comerciais veiculados no intervalo do Super Bowl, a final da National Football League (NFL), nos Estados Unidos, mais que dobrou em pouco mais de uma década, saindo de aproximadamente 30% em 2010 para a casa dos 70% em 2023. São dados do iSpot.tv veiculados pelo The Wall Street Journal em fevereiro de 2024.

A busca pela atenção do consumidor e o volume de canais de informação disponíveis explicam um ­pouco o porquê de as empresas não abandonarem a ­estratégia, mesmo com o maior risco. “Não que o brasileiro fique olhando para o americano como um farol de referência, para copiar. É mais sobre como funciona um processo decisório: trata-se de olhar para o mercado, para os concorrentes, para ver quais estratégias estão dando certo”, explica Senise.

Extrapolando um pouco mais as fronteiras, nos países ocidentais cerca de 30% dos anúncios publicitários estão atrelados a talentos. Já no Oriente, a exemplo do Japão, a participação sobe para 40% do que se veicula, conforme um estudo sobre endosso de celebridades como estratégia publicado pela Psychology & Marketing em dezembro de 2022. “O endosso de celebridades aumenta o reconhecimento e a lembrança da marca, mas como isso molda o processo de decisão ainda não está claro”, afirma o artigo assinado por Simone D’Ambrogio, Noah Werksman, Michael L. Platt e Elizabeth N. Johnson.

Luciana Faluba, professora da FDC: se desculpar por uma escolha pode ajudar a marca a construir autenticidade (Paulo Marcio/Divulgação)

O estrago pode ser maior

Mas, se a maior exposição pode construir, ela pode, em uma proporção ainda maior, ruir com uma marca. Segundo uma avaliação da Ilumeo a partir de artigos científicos sobre o assunto, a descoberta de uma informação negativa a respeito de determinada personalidade pode ter o dobro do efeito danoso em comparação ao positivo; ou seja, à credibilidade que ela traria ao produto ou serviço. O universo de personalidades cresceu muito na última década, somando-se os influenciadores de redes sociais à lista formada tradicionalmente por atores, atrizes, representantes políticos, entre outros profissionais que conversavam com o público consumidor. O universo fragmentado de opções permite alcançar nichos às vezes antes impensados pelo potencial de ajuste de linguagem ao público. Contudo, os riscos de “o tiro sair pela culatra” vêm na esteira.

“A vida particular é cheia de problemas, sempre foi”, diz Marcos Bedendo, professor de branding na ESPM. A diferença é que atualmente a exposição é muito maior, o que explica a elevação de risco. Apenas o universo de influenciadores no Brasil pode chegar a 20 milhões de pessoas, segundo a agência de marketing de conteúdo Youpix. Bedendo destaca um ponto de risco importante a ser observado por lideranças: o fato de as agências publicitárias terem objetivos distintos dos de seus clientes. “A agência quer, sempre, gerar impacto. Naturalmente, ela é mais disposta a participar de polêmicas do que seus clientes”, afirma o professor da ESPM que já ocupou cadeiras no universo das grandes marcas.

Alinhamento de visões

A necessidade de um olhar mais cuidadoso nessa relação cliente-agência nem sempre é muito comentada, continua o especialista em branding, mas pode ser vital para a diretoria que aprova uma campanha. É que o “efeito deu ruim” ficará na conta da empresa. As agências fazem um trabalho comprometido, não é disso que se trata. O ponto é que, pela própria natureza de seu negócio, elas ousam mais: sua reputação é construída pelo impacto que geram, e não necessariamente pela perenidade de um cliente no portfólio, reitera o especialista.

Uma entre tantas marcas globais que precisaram desenvolver expertise para lidar com crises relacionadas a celebridades é a Nike. Na cartela dos patrocinados estiveram o jogador de golfe Tiger Woods, que nos últimos anos se envolveu em várias polêmicas (casos extraconjugais, prisão e tratamento para vício em sexo circularam em publicações), e o ex-atleta olímpico e paralímpico Oscar Pistorius — condenado pelo assassinato da namorada. Na época do crime, há pouco mais de dez anos, a Nike e a marca de óculos Oakley retiraram rapidamente o patrocínio de ­Pistorius, conforme publicações da época.

Gestão de crise

Quando uma crise desponta, o primeiro movimento é retirar as peças publicitárias de circulação, elaborar notas de posicionamento e, em casos avaliados como mais graves, romper o contrato. Luciana Faluba, professora e pesquisadora na área de estratégia e marketing da Fundação Dom Cabral (FDC), considera agilidade e transparência dois pontos cruciais para resguardar a reputação. “Eu não vejo nenhum problema em uma marca se desculpar por alguma coisa. Isso ajuda a construir sua autenticidade”, acrescenta Faluba. “E tem aquela máxima: se você não disser o que é, os outros dirão o que não é”, diz ainda a professora da FDC.

Social listening

É importante, ainda, evitar o “ponto cego” no trabalho de análise para a gestão do problema. Em outras palavras, trata-se de utilizar uma ampla gama de métodos além dos relatórios de monitoramento relacionados às redes sociais. Estes são conhecidos como “social listening” e mostram o que as pessoas comentam sobre sua marca ou sobre determinada pessoa ou fato. É necessário furar a bolha das redes para visualizar o alcance da crise. “Assim evita-se reação desproporcional ao fato”, comenta Senise, da Ilumeo. Isso exige consulta a outras bases de informação — como a imprensa — e pesquisas quantitativas elaboradas com consumidores.

Não há uma receita pronta para lidar com eventuais problemas. Especialistas ouvidos pela EXAME CEO reiteram que a gestão de crise reputacional não é “ciência de foguetes”, e sim um trabalho de prevenção de riscos que antecede as dicas já citadas. Rodrigo Pinotti, CEO da Giusti, da FSB Holding, diz que a gestão de uma crise nessa seara se dará conforme alguns fatores, como a gravidade dos fatos, o histórico da relação entre marca e personalidade, o tempo de parceria, as campanhas e as causas que foram defendidas em conjunto. “Se o grau de simbiose é grande, maior deve ser o cuidado com a situação presente”, afirma Pinotti.

Os responsáveis terão de agir rápido e ter sangue frio, visto que em casos mais complexos a pressão da opinião pública é grande sobre as marcas. Se houver base sólida na relação e, eventualmente, a marca continuar apoiando a personalidade, isso pode gerar críticas num primeiro momento, mas ser revertido em ganho de reputação depois. “Há muitos casos irrefutáveis, e aí não é possível manter parceria”, continua. A gestão da crise é similar quando é a personalidade que sofre algum problema. Um exemplo é o de pesquisadores em administração ou economia que utilizam modelos de negócios como objeto de estudo.

Acadêmicos passaram por isso na época do escândalo da Enron, que foi uma das maiores empresas de energia do mundo e colapsou após a descoberta de uma fraude financeira, há mais de duas décadas. No Brasil recente, ocorreram casos relacionados à Odebrecht (atualmente Novonor) após a eclosão da Operação Lava-Jato. “É um dano para a imagem. O que se faz é evitar citar artigos relacionados a determinado negócio”, conta Tales Andreassi, professor de empreendedorismo na Fundação Getulio Vargas (FGV Eaesp).

“Puxando a capivara”

É possível avaliar o comportamento prévio das personalidades, prática útil para escolher um representante de marca. Isso ajuda a mapear os riscos ligados a essas pessoas, afirma Kainã Faria, líder do hub de influência da WMcCann. Companhias têm encomendado com frequência pesquisas desse tipo. A Ilumeo, por exemplo, que tem grandes agências publicitárias em sua carteira de clientes, acabou de concluir um trabalho realizado com 6.000 brasileiros sobre 400 celebridades. Por meio de seu banco de dados é possível “puxar a capivara” de personalidades e saber como são vistas pelos consumidores em critérios como engajamento ambiental, social, político, se mais ou menos polêmicas, inovadoras, ousadas e, até mesmo, quem pode sofrer boicote.

Senise, da Ilumeo, afirma que hoje o engajamento político é uma das preocupações mais importantes das empresas. Nos últimos meses de 2023, a contratação do influenciador Felipe Neto pela marca Bis, da Lacta, controlada pela Mondelēz, evidenciou o barulho que uma personalidade polêmica atrelada ao universo político pode causar no Brasil polarizado. Neto tornou-se figura rechaçada pelos eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro por fazer campanha para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. Na época da campanha do chocolate, a hashtag #BISnuncamais fervilhou nas redes — a ponto de correntes bolsonaristas defenderem o consumo de KitKat, da Nestlé. O Bis acabou como pano de fundo no ringue de uma nova batalha política do público nas redes.

Alicia Keys no Super Bowl: presença de celebridades em comerciais do evento mais do que dobrou em uma década (Timothy A. Clary/AFP/Getty Images)

Mesmo recomendável, a estruturação de comitês de prevenção e gestão de riscos atrelados a esse tema ainda é ponto falho nos ambientes corporativos. Poucas empresas os têm de forma organizada, diz Senise. Geralmente, os donos das campanhas sabem qual mensagem querem passar, mas não têm na gaveta nenhuma ação traçada para o caso de problemas. Faria, da WMcCann, avalia que um olhar interno só vale se a companhia recorre muito à estratégia. Nesses casos, vale ter alguém interno monitorando riscos, já que será um olhar 360 graus; ou seja, um diferencial por dominar uma visão mais completa do negócio para apoiar o trabalho de agências terceirizadas. Também é uma ação válida se a empresa é conhecida por sua marca de produto ou categoria, já que o impacto pode ser maior e arranhar a reputação do negócio todo.

Crises nos bastidores

Vale dizer ainda que as dores de cabeça que envolvem a estratégia não nascem apenas por um escorregão da personalidade. Rafaela Lotto, sócia da Youpix, diz que há muitas crises que são geradas pelas próprias marcas. “Uma influenciadora negra foi contratada para um trabalho com maquiagem, mas na hora de enviar a base não tinha a da cor da pele dela. Gerou problema”, exemplifica Lotto. O comitê interno, continua, não é o único a fazer falta para lidar com os problemas que implicam a estratégia. Diversidade dentro do ambiente empresarial está em falta para aumentar (de fato, e além do discurso) a conscientização interna sobre temas fundamentais, como racismo e machismo. Ela sugere, ainda, atenção ao comprometimento dos influenciadores quando a marca estiver pesquisando um representante para evitar outro tipo de crise, a de bastidores. Lotto­ lembra que há quem não entregue conteúdo no prazo combinado e agentes que dificultam a relação, o que leva a desgastes e prejuízos para as companhias.

Com tantos sinais de alerta, fica claro que atrelar marca e personalidade não é uma estratégia de negócios exata. Mas as chances de construir valor por meio dela aumentam — se os riscos forem bem mapeados.

Como prevenir (e lidar com) crises

1. Destine o olhar do comitê de prevenção e gestão de riscos às campanhas.

2.“Puxe a capivara” das personalidades. Isso ajuda a mensurar os riscos à reputação (dica válida para os talentos que emprestam sua imagem a negócios).

3. Atenção aos bastidores: refinar, antes da contratação, a pesquisa sobre o comprometimento dos influenciadores escolhidos evita desperdício de tempo e de recursos.

4. Danos à reputação: quando ocorre uma crise, é preciso avaliar o histórico da relação entre marca e personalidade, o tempo de parceria, as campanhas e causas defendidas em conjunto para traçar um plano de ação.

5. Em casos avaliados como graves, o jeito é romper o contrato o mais rápido possível.

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