Revista Exame

Os desafios da economia brasileira e o 'progressismo reaça'

O governo que se dizia progressista, na prática, é reacionário. Perde as pautas dos costumes no Congresso, tenta deliberadamente voltar no tempo na Economia

O governo que se dizia progressista, na prática, é reacionário. Perde  as pautas dos costumes no Congresso, tenta deliberadamente voltar no tempo na Economia (OsakaWayne Studios/Getty Images)

O governo que se dizia progressista, na prática, é reacionário. Perde as pautas dos costumes no Congresso, tenta deliberadamente voltar no tempo na Economia (OsakaWayne Studios/Getty Images)

Publicado em 18 de junho de 2024 às 06h00.

“Não é dado ao homem conhecer as próprias necessidades.” Os russos podem não ser lá muito bons de democracia, mas sabem um bocado de Guerra e Paz. Os brasileiros (ou, pelo menos, a maior parte deles) valorizam a própria democracia, embora guerreiem com a própria alma. Nas últimas eleições nacionais, a sociedade escolheu um governo progressista, supostamente. A agenda proposta sugeria progressismo na pauta dos costumes e desenvolvimento social-democrata com maior participação do Estado na economia. Miramos o capitalismo woke, acertamos o capitalismo de Estado e de compadrio.

Algo curioso se coloca agora. O governo perde de forma sucessiva todas as votações ligadas a costumes no Congresso. O conservadorismo ou, em alguns casos, o reacionarismo ocupa esse espaço. Na economia, também não há progressismo algum. Não estamos nos planejando nem mesmo nos aventurando em um futuro com novidades, de evoluções, avanços, ideias frescas e atualizadas. O governo que se dizia progressista, na prática, é reacionário. Perde as pautas dos costumes no Congresso, tenta deliberadamente voltar no tempo na economia.

O problema não é exatamente que as ideias sejam velhas, mas que sejam velhas e ruins. Revisitamos o também antigo princípio da contraindução de Mário Henrique Simonsen: vamos insistir no que deu errado até dar certo. Depois de um ano de 2023 bastante bom, o Brasil começa a emitir sinais idiossincráticos ruins. Para fins didáticos, divido a caminhada errática em três partes.

O primeiro é o grande calcanhar de aquiles brasileiro: a resolução estrutural da política fiscal. Cada ano larga já com um rombo entre 150 bilhões e 200 bilhões de reais no orçamento brasileiro. Ao déficit estrutural, somamos elementos conjunturais. O governo opta por não empenhar uma agenda reformista e por não controlar gastos. Adicionamos querosene à fogueira.

O tal arcabouço fiscal foi bem recebido num primeiro momento. Permitia que atravessássemos os primeiros anos, até rediscutirmos a regra um pouco mais para a frente. Evitaría­mos uma trajetória explosiva da dívida e conteríamos um crescimento muito acelerado da despesa pública. Sendo mais criterioso, mesmo de largada, já carregava algumas inconsistências.

Como os gastos com saúde e educação estavam vinculados à receita, contratamos de imediato uma expansão mais vigorosa desse tipo de dispêndio. Em paralelo, o governo conferiu ganhos reais no salário mínimo — é legítimo e alinhado a prescrições ortodoxas: ganhos de produtividade (acima da inflação) também devem ser transferidos ao trabalhador. A questão é que os gastos com previdência estão vinculados ao salário mínimo. Como resultado, as despesas com previdência também passam a crescer mais do que a média.

Apesar de suas fragilidades, o arcabouço era uma ponte razoável, num momento em que o mundo todo convivia com certa complacência fiscal e se aventava o risco de uma trajetória ainda mais perversa dos gastos. O melhor resumo para a regra fiscal veio do gestor Luis Stuhlberger: “Pior do que o desejado, melhor que o temido”.

De poucos meses para cá, no entanto, o arcabouço se mostrou mais frágil. Rapidamente, foi criado novo crédito extraordinário de 15,7 bilhões de reais, revisamos para baixo as metas fiscais de 2025 e 2026, apelamos ao casuísmo para usar a tragédia do Rio Grande do Sul como instrumento para abrirmos a caixa de ferramentas. Há mesmo algum compromisso público, ainda que mínimo, com a trajetória fiscal?

Não bastasse o halloween fiscal, ressuscitamos outro filme de terror. Depois de termos resolvido nosso problema monetário e termos criado uma âncora firme nesse escopo, observamos Jason ressuscitando para nos assombrar em 2025. O placar dividido na última reunião do Copom despertou o medo de interferência do Executivo na condução da política monetária ou, pelo menos, de uma postura mais tomadora de risco no enfrentamento da inflação. A divisão alimenta os medos de abandono da âncora monetária, na iminência da inédita situação em que, provavelmente, um economista heterodoxo assumirá a presidência do BC em 2025.

O terceiro elemento da gama de notícias particulares ruins de Brasil vem dessa espécie de restauracionismo de ideias de 20 anos atrás na política econômica. Tentamos nomear políticos para conselhos de administração ou diretorias de empresas privadas, adotamos um dirigismo estatal sem avaliação de desempenho, não superamos a obsessão com Abreu & Lima e outras refinarias, vamos para a quarta tentativa de desenvolver a indústria naval, trocamos de novo a presidência da Petrobras. A lista é longa.

Plantamos (ou estocamos) vento, colhemos tempestade. As expectativas de inflação não param de subir. Estão desancoradas e há a preocupação de que a Selic tenha de subir lá na frente. Os juros futuros dispararam, o dólar superou 5,30 reais, a bolsa brasileira é a pior entre as 15 principais referências globais no ano. O momento é particularmente importante, com eleições no México e na Índia levantando dúvidas quanto a mercados emergentes em geral.

A boa notícia é que o provável ciclo de cortes das taxas de juro nos países desenvolvidos pode engendrar um ambiente mais positivo. A Europa já começou, e a expectativa é de que os Estados Unidos façam o mesmo em setembro ou um pouquinho mais para a frente. Se fomos um dos mais prejudicados pela dinâmica de alta das taxas de juro no mundo, agora deveríamos estar entre os maiores beneficiados de suas quedas. Temos todas as condições para isso.

O ministro Haddad tem se mostrado um homem público de muita competência, os técnicos do Ministério da Fazenda são de alta qualidade, o Copom ainda carrega grande grau de institucionalização e rigor, a economia brasileira cresce sistematicamente acima do esperado, a inflação corrente vem surpreendendo para baixo, a taxa de desemprego está baixa, acumulamos expressivos saldos comerciais, o tecido empresarial é profundo e amplo, os lucros corporativos crescem em bom ritmo, contamos com uma excelente safra de governadores estaduais, nossos ativos estão baratos.

Ainda dá tempo, mas precisamos parar de andar para trás. Voltando aos russos: “Aquilo que foi e que será, e até mesmo aquilo que é, não somos capazes de saber, mas quanto àquilo que devemos fazer, não apenas somos capazes de saber, como também o sabemos sempre, e somente isso nos é necessário”.

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