Rio Xingu, onde deve ser construída a usina de Belo Monte: o país pode abrir mão do potencial da Amazônia? (Paulo Jares/VEJA)
Da Redação
Publicado em 15 de março de 2011 às 16h33.
Após três décadas de estudo, a polêmica hidrelétrica de Belo Monte, no trecho paraense do rio Xingu, finalmente ensaiou sair do papel. Com capacidade instalada de 11 233 megawatts, a usina, caso concretizada, será a terceira maior do mundo e provavelmente a maior obra de infraestrutura do país nos próximos anos. Os números da construção são, todos eles, grandiosos - quase 100 000 empregos diretos e indiretos, 2 800 tratores necessários e 210 milhões de metros cúbicos de terra e rocha a ser escavados. Para o governo, que se empenhou em apressar o leilão da usina, a obra teria o dom de ser um ativo eleitoral de primeira grandeza na campanha da candidata oficial, Dilma Rousseff. No entanto, o que se viu foi a formação de um imbróglio cujo desfecho ainda não é possível prever. Afora a oposição esperada de ambientalistas e lideranças indígenas, a qual contou com o festivo reforço do cineasta canadense James Cameron, diretor de Avatar, o enrosco piorou no início de abril com a desistência de participar do leilão das construtoras Odebrecht e Camargo Corrêa, tidas como as maiores conhecedoras do projeto.
A licitação final foi realizada na data prevista após uma correria da tropa governamental para formar um novo bloco de concorrentes e garantir um mínimo de disputa com o consórcio que ficara no páreo e era considerado favorito, o constituído pelas estatais Furnas e Eletrosul e, do lado privado, por Andrade Gutierrez, Vale, Neoenergia e CBA. Mas os participantes de última hora - um consórcio entre a estatal Chesf e seis empresas privadas, entre as quais o grupo Bertin e a construtora Queiróz Galvão - venceram o certame. Horas após a vitória do consórcio azarão, a construtora Queiroz Galvão pediu um tempo para pensar e deixou no ar um clima de que a coisa não havia dado certo. "De joia da coroa, Belo Monte pode virar uma herança maldita", diz o consultor Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura.
Do ponto de vista do consumidor, observando-se apenas a tarifa de energia, o leilão foi um sucesso. Os 78 reais por megawatt-hora, 6% menos que o preço teto, estão abaixo do conseguido com a energia da hidrelétrica de Santo Antônio, já em construção em Rondônia. O problema é que a tarifa de Belo Monte foi calculada para um investimento estimado em 19 bilhões de reais, com rentabilidade de 8% ao ano, segundo o governo. Odebrecht e Camargo Corrêa desistiram da disputa alegando que o investimento chegaria a 30 bilhões - o que reduziria o retorno anual para 3%. O interesse diminuiu também em razão de riscos de várias naturezas. É esperada uma enxurrada de ações na Justiça comum e no Ministério Público, sobretudo apontando falhas no licenciamento ambiental e prejuízos para a população local. Com um processo de 15 000 páginas, o estudo do impacto de Belo Monte levou 26 meses para ser analisado pelo Ibama, o órgão responsável por aprovações socioambientais. "Cerca de 8 000 pessoas participaram das audiências públicas, mas é praticamente impossível ouvir todo mundo", diz Pedro Alberto Bignelli, diretor de licenciamento do Ibama. A maior imprevisibilidade em relação a Belo Monte, no entanto, é geológica e está concentrada na escavação de dois canais de 35 quilômetros cada um, com 500 metros de largura, uma obra comparável à do canal do Panamá. São eles que levarão a água do rio Xingu para as casas de força da usina.
O governo pensa diferente. "Há interesses contrários em jogo. Queremos a usina mais barata possível. Já as construtoras querem a obra mais cara", afirma Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia. Isso pode até ser verdade, mas no próprio governo há sinais de que a avaliação das empreiteiras não é absurda. Segundo o jornal O Globo, um relatório interno das estatais Furnas e Eletrosul calculou o custo da obra em 28,5 bilhões de reais. O governo agora é acusado de não atrair o setor privado e de ter preferido maior participação estatal. Quando as duas usinas do rio Madeira foram leiloadas, a competição deu o tom, desencadeando deságios de 35% na usina de Santo Antônio e de 21% na de Jirau. Antes do leilão de Belo Monte, o governo anunciou um pacote de bondades para tornar o empreendimento mais atraente. Isso incluiu isenção de 75% do imposto de renda durante dez anos e uma linha de crédito do BNDES para cobrir até 80% do investimento com prazo de pagamento de 30 anos. Além disso, estatais do setor elétrico foram escaladas para compor a metade do capital de cada consórcio. Ao final, dado o desinteresse privado, o governo chamou para si a tarefa. "Nós faremos sozinhos se for necessário", disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, logo após a Queiroz Galvão titubear. Na atual configuração, a Chesf, do grupo Eletrobrás, detém 49% do consórcio. Já estaria acertada também a entrada da Eletronorte, que faria a gestão da obra. Dependendo da configuração final, a participação do Estado pode chegar a 80% do total. "Se fosse uma obra essencialmente privada, seria problema do empreendedor. Quando o Estado assume, isso vira um problema de todos", diz Eduardo José Bernini, ex-presidente da AES Brasil. Ainda pode mudar muita coisa - fala-se até numa volta de empresas desistentes ou na entrada de novas companhias privadas, como CSN e Gerdau, e ainda de fundos de pensão.
Apesar das dificuldades iniciais, Belo Monte não está fadada ao fracasso. O aprimoramento do projeto e a eficiência na condução da obra ainda podem viabilizar a usina por um valor mais baixo. Isso ocorreu com a hidrelétrica de Jirau, também no rio Madeira. Uma mudança no plano original - o deslocamento de 12,5 quilômetros do eixo da usina - permitiu uma economia de 1 bilhão de reais. Também sobram indícios de que o projeto de Belo Monte é mais que necessário ao país. A energia hidrelétrica continua a ser a opção mais barata disponível, e é também a mais limpa. Apesar do impacto ambiental durante a fase de instalação, uma hidrelétrica em operação emite muito menos dióxido de carbono do que usinas a carvão ou a óleo. Os rumos adotados para Belo Monte sinalizarão como o Brasil irá tratar seu imenso potencial hidrelétrico. Os países que hoje escolhem outras fontes, como a nuclear e a eólica, são os que já esgotaram a capacidade de aproveitamento de seus rios. O Brasil só aproveitou até agora 26% do potencial dessa fonte e, ainda assim, ela responde por 78% da energia gerada. A grande questão é que a maior parte do que resta se situa na Amazônia, região que desperta paixões - razoáveis ou não - quanto a qualquer negócio que lá se faça. Deixar de construir usinas nos rios amazônicos significa apelar a fontes mais caras e poluentes. Isso porque o Brasil precisa adicionar, em média, 5 000 megawatts por ano ao sistema elétrico para sustentar o crescimento da economia. Numa perspectiva ainda mais ampla, as decisões do Brasil vão nortear um dilema comum a todos os países: como conciliar a produção de energia e o crescimento econômico com a preservação do meio ambiente. Sobre isso, James Cameron não tem nada a dizer.