Revista Exame

Brasil pode ter sua década de ouro (se a política deixar)

Em entrevista a EXAME, o presidente mundial da Siemens diz que a indústria brasileira pode ter um futuro próspero — desde que haja estabilidade política

Joe Kaeser, da Siemens: “Não há razão para confundir todo mundo sobre o que é internet das coisas” (Foto:/Divulgação)

Joe Kaeser, da Siemens: “Não há razão para confundir todo mundo sobre o que é internet das coisas” (Foto:/Divulgação)

DR

Da Redação

Publicado em 24 de maio de 2018 às 05h54.

Última atualização em 24 de maio de 2018 às 05h54.

O alemão Joe Kaeser, de 60 anos, é um dos executivos mais poderosos do mundo. Como presidente do conselho de administração e presidente mundial do conglomerado alemão Siemens — cujo faturamento anual é de 83 bilhões de euros —, ele comanda 380.000 funcionários em mais de 200 países. Sua influência também avança sobre o mundo político. É frequentemente citado como um conselheiro informal da chanceler da Alemanha, Angela Merkel, que tem uma versão impressa em 3D de sua figura presenteada por Kaeser. Ela, por sua vez, o levou numa visita oficial ao presidente americano,  Donald Trump, em 2017. Em março, Kaeser esteve com o presidente Michel Temer, quando assinou um memorando de entendimento com o governo brasileiro em que afirma que a Siemens investirá até 1 bilhão de euros no Brasil nos próximos cinco anos. A ideia é construir fábricas, investir em educação profissional, em soluções energéticas e nas tecnologias da Quarta Revolução Industrial.

Otimista, Kaeser diz que o país poderá se beneficiar das novas tecnologias para dar um salto de produtividade, até porque, segundo ele, não é preciso ter um parque industrial 3.0 para receber os benefícios da indústria 4.0. “O Brasil poderá ter, assumindo que haja um resultado econômico estável das eleições, uma década de ouro.” Durante sua passagem pelo país, EXAME conversou com Kaeser sobre esses assuntos e o atual momento da Siemens. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O senhor anunciou um investimento de 1 bilhão de euros no Brasil. O que a Siemens planeja desenvolver nos próximos cinco anos no país?

Basicamente, anunciamos duas coisas. A primeira delas é sobre como construir uma infraestrutura para o país juntamente com o governo para que o desenvolvimento industrial possa decolar. Isso versa muito sobre energia sustentável, acessível e, é claro, confiável. Se há quatro ou cinco apagões por dia, então uma manufatura automatizada não vai funcionar. Portanto, é preciso preparar o terreno para uma infraestrutura confiável e acessível, e isso passa, necessariamente, pela eletrificação. Há também o desenvolvimento da infraestrutura de mobilidade, de transporte de pessoas e bens. Isso ajuda a reduzir a inflação porque elimina ineficiências. Muitas vezes, a inflação decorre de ineficiências, não do superaquecimento de uma economia. O que precisa ser construído pelo governo é apenas uma moldura regulatória. Não há necessidade de nos ajudar a fazer isso.

E qual é o segundo ponto?

Anunciamos a Aliança Brasil 4.0, que, com base nessa política, vai trazer mais manufatura para o país. Eu pedi ao nosso CEO local, André Clark, para examinar as novas necessidades de gestão de energia por aqui. O Brasil é, provavelmente, 20 vezes maior do que a Alemanha. É preciso gerenciar a infraestrutura com distâncias enormes. E, com o aumento do uso da energia renovável, não haverá mais uma usina como a de Itaipu. Haverá várias fontes de energia: do Sol, do vento, de todos os lugares. Isso tornará a rede mais volátil. Será necessário equilibrar a demanda e a oferta. Assim, a inteligência sobre a eletrificação irá para o lado da rede, e não tanto para a geração de energia. Portanto, precisamos investir, porque há uma grande demanda de serviços.

Mas que tipo de demanda mais exatamente?

O Brasil é um ótimo lugar para investir. Aqui há muitas empresas, como a Basf e a Nestlé. São mais de 200 milhões de pessoas. Todo mundo precisa de energia. Todo mundo precisa ir de um lugar ao outro. Todo mundo precisa se alimentar. É isso que vamos fazer: construir a infraestrutura básica, depois acelerar a automação e levar o componente digital tanto para a fábrica quanto para o design de produtos.

Fábrica de turbina a gás em Berlim: é preciso treinar as pessoas para a indústria 4.0 | Krisztian Bocsi/Getty Images

A indústria 4.0 tem o potencial de impactar todos os segmentos. Mas há alguma área em que o impacto será maior no Brasil?

O impacto vale tanto para o setor de alimentos e bebidas quanto para o de óleo e gás, incluindo a área de distribuição e a de derivados petroquímicos. Não nos esqueçamos da agricultura, porque no Brasil, assim como em outros países da América Latina, a agricultura é industrial, com áreas de 100 000 hectares. Há projetos agrícolas que podem ser automatizados como a manufatura. É diferente no processo, mas com os mesmos ganhos de produtividade e de eficiência. O que é muito importante nisso tudo: é preciso ter as pessoas certas para fazer isso. Pouco adianta se as pessoas não são treinadas e bem instruídas. Educação é outra pedra angular de nosso investimento. Se houver apenas a transferência de mão de obra de outros países, então o país nunca desenvolverá sua capacidade. Precisamos de pessoas treinadas nas universidades. E também treinar os professores. Acredito que o Brasil poderá  ter, assumindo que haja um resultado econômico estável das eleições, uma década de ouro.

No relatório de competitividade do Fórum Econômico Mundial, o Brasil aparece numa posição intermediária, sobretudo pela falta de mão de obra qualificada. Como equilibrar esse problema da educação com a velocidade da digitalização?

É simples, na verdade. Só existe um desafio para um -país: é preciso educar seu povo em primeiro lugar. Sente-se, relaxe, entenda as prioridades e, em seguida, faça uma coisa de cada vez. Não há nenhuma razão para confundir todo mundo sobre o que é software 4.0, internet das coisas, tecnologias que poucos sabem como aplicar. A boa notícia é que muitas empresas multinacionais sabem como aplicá-las. Pense em empresas como a montadora Daimler, a química Basf e a própria Siemens. E tantas outras de diferentes países e setores. Todas trazem muito conhecimento e são importantes nesse processo. Sei que as multinacionais alemãs aqui têm um sistema de aprendizagem. O Brasil não está completamente sem base. Há muito talento aqui. Basta estar atento ao plano de desenvolvimento da infraestrutura e, em seguida, dar um passo de cada vez no mundo industrial. Eu sou otimista em relação a isso.

Qual é sua avaliação do parque industrial no Brasil? Concorda com alguns analistas que dizem que não é nem mesmo 3.0, talvez seja ainda 2.5?

Não importa se é 2.5, 3.5 ou 1.5. É preciso colocar as prioridades em ordem. E as prioridades são uma infraestrutura robusta, um plano industrial de longo prazo como um modelo de referência para o setor, treinar as pessoas para que elas possam participar da próxima etapa da industrialização. Se atualmente é 2.5 ou 3.0, isso não é relevante. Siga essa fórmula e o Brasil alcançará os outros países rapidamente, não importa onde esteja hoje. Mas é melhor começar logo.

Como o processo de transformação digital está afetando a própria Siemens?

Nos últimos quatro anos, ocorreu uma enorme transformação na empresa. Não há nenhuma ficção nem conversa sem substância. Precisamos conectar o mundo físico com o mundo virtual. Precisamos olhar para os métodos físicos de produção de chocolate, de carros, de móveis e, em seguida, pegar todos os dados desses processos, levá-los para a nuvem e então analisá-los para compreender o que deve ser modificado no mundo físico para tornar todos os processos mais eficazes. E, claro, mais flexíveis. Chamamos de EAD: eletrificação, automação, digitalização. Essa fórmula vertical, acredito, é a fórmula vencedora da Quarta Revolução Industrial.

Geração eólica: as novas fontes de energia tornam a rede mais instável | André Dib/pulsar imagens

Como é levar um grande conglomerado industrial a ser uma empresa que também produz software?

Parece mais simples do que é, pois o mundo físico e o virtual são completamente diferentes em capacidades, prioridades, pessoas pensando e agindo. Exemplo: se há um grupo de pessoas que vendem disjuntores, torná-las vendedoras de software será um desastre. E o contrário também. Portanto, é uma questão muito sensível, sobre como ir ao mercado e integrar hard-ware e soft-ware numa coisa só. Não entrarei em detalhes sobre como fizemos. Mas vemos os clientes como o ponto mais importante, e isso unifica a empresa em torno de um propósito. Uma vez que há um sistema comum de valores e crenças, há um poder de integração. Se a empresa não fizer isso, haverá forças em diversas direções desviando o foco.

E quais são esses valores comuns?

Chamamos de “cultura de dono”. Não importa onde a pessoa trabalha ou o que faz, ela precisa agir como se fosse sua companhia. Temos também uma cultura de falar, não importa qual seja a posição na hierarquia: diga sua opinião, faça propostas, seja ativo.

Acompanhe tudo sobre:AlemanhaAngela MerkelCrise políticaExecutivosGoverno TemerMichel TemerRevista EXAMESiemens

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda