Revista Exame

Por que o Brasil precisa de um limite para a gastança

O Brasil tenta evitar uma catástrofe nas contas públicas com a imposição de um teto para os gastos

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Da Redação

Publicado em 19 de outubro de 2016 às 18h30.

Última atualização em 19 de outubro de 2016 às 19h37.

São Paulo – Nas últimas décadas, o Brasil e o Peru passaram por agruras comuns. Ambos os países deram calotes nas dívidas externas nos anos 80, lutaram para controlar a inflação galopante na década de 90 e penaram com sucessivos choques vindos de fora, como o provocado pela crise da Rússia, em 1998. Foi nessa época que Brasil e Peru passaram a adotar regras fiscais rígidas. Mas os dois países tomaram caminhos diferentes.

Entre outras medidas, o Peru determinou em 2000 que o crescimento das despesas do governo fosse limitado a um teto que começou em 2% e chegou a 4% acima da inflação. A medida de austeridade sobreviveu, inclusive, aos tempos de abundância do superciclo das commodities, quando os preços das matérias-primas vendidas pelo país dispararam. Nos 13 anos em que o teto foi adotado, o Peru registrou só um ano de déficit: o buraco das contas foi de apenas 0,3% do produto interno bruto em 2009. Hoje, o Peru tem uma dívida de 24% do PIB, maior apenas que a do Chile na região. Já o Brasil...

O Brasil adotou metas para as contas públicas no final dos anos 90. Até o fim do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o país buscava alcançar um superávit primário, indicador que chegou a quase 4% do PIB antes da crise de 2009. Com a presidente Dilma Rousseff, porém, os cofres foram abertos e a meta de superávit fiscal acabou abandonada de vez em 2014.

No primeiro mandato de Dilma, apesar de as receitas terem crescido em média 0,6% por ano acima da inflação, os gastos avançaram à média real de 4%, descontrolando o orçamento. Só entre dezembro de 2013 e dezembro de 2015, a dívida bruta do governo cresceu 15 pontos, para  66% do PIB — a previsão é chegar a 73,5% ao final deste ano.

O indicador brasileiro já é quase o triplo do peruano. Passado o processo de impeachment de Dilma, o governo tenta recompor as contas públicas. E como fazer isso? Adotando a receita que o Peru usou lá atrás: impor um teto para a expansão dos gastos. “Regras que controlam as despesas são úteis para limitar o uso de recursos públicos sem disciplina”, diz o economista brasileiro Marcello Estevão, que chefia a missão do Fundo Monetário Internacional no Peru. “Foi dessa forma que o Peru chegou a níveis de dívida invejáveis.”

Uma operação foi montada pelo governo brasileiro para conseguir passar ainda neste ano no Congresso uma proposta de emenda constitucional — a chamada PEC dos gastos — que limita o crescimento das despesas primárias apenas à taxa de inflação de 12 meses até junho do ano anterior. O presidente Michel Temer ofereceu um jantar a parlamentares para convencê-los a votar a favor da medida, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, falou em cadeia nacional à população sobre a importância do tema, e técnicos do Planalto têm publicado artigos dizendo por que a proposta é boa. Um aspecto joga a favor: assim como no Peru, a experiência lá de fora mostra que, quando barram os gastos, os países colhem melhores resultados fiscais.

O que o Brasil está tentando fazer começou a ser praticado por 23 países desenvolvidos e emergentes na década de 80 (seis outros tentaram, mas abandonaram a regra). De lá para cá, 31 regras diferentes para o tema foram adotadas por esses países, um terço delas depois da crise de 2009. Um estudo do FMI mostra que os países em questão tiveram em média um resultado primário 0,8 ponto do PIB melhor do que aqueles que não adotaram a regra.

No caso do Brasil, a proposta tem sido alvo de ataques. No dia da votação da medida na Câmara dos Deputados, ocorreram protestos em São Paulo e em Brasília. Não é à toa. Da forma como está, a regra brasileira é mais rígida do que as adotadas em outros países. A proposta, já aprovada em primeiro turno na Câmara, ainda deve passar por mais uma votação na Casa e, depois, será encaminhada ao Senado — sujeita, portanto, a mudanças. Até agora, ela prevê um prazo mínimo para revisão de dez anos, enquanto a prática lá fora fica entre três e quatro anos.

Além disso, a versão brasileira chega a abranger 83% das despesas primárias do governo. Na Finlândia, que tem uma das regras mais duras, são 75%. No Brasil, o teto inclui itens como investimentos, seguro-desemprego e desembolsos com segurança pública, enquanto outros países deixam esse tipo de despesa de fora. Além disso, a proposta é uma das únicas no mundo que não permitem crescimento dos gastos acima da inflação — somente a Bélgica aplicou uma regra igual de 1993 a 1998.

A rigidez é justificada pelo tamanho do problema. Caso o controle não seja adotado, dizem seus defensores, o Brasil estará à beira do caos, com risco de a dívida pública superar 104% do PIB em 2020. “Nesse caso, o governo vai ter dificuldade em se financiar, o investimento vai se dissipar e a situação econômica vai piorar”, afirma o economista Armando Castelar, da Fundação Getulio Vargas. Mesmo com a nova regra, a previsão é que o Brasil só conseguirá alcançar um superávit primário em 2022, e a dívida deverá se estabilizar em 96% em 2024. “O governo poderia fazer um ajuste mais rápido, mas isso implicaria aumentar impostos em meio à recessão, o que não é desejável”, diz Castelar.

Uma das críticas à vigência do teto é que, com o passar do tempo, ele gere distorções. O receio: com a volta do crescimento da economia, as receitas aumentariam, o governo geraria superávits e não reverteria os recursos em áreas sociais ou investimentos. Um cálculo feito pelo economista Felipe Salto mostra que, se a regra for aplicada ao longo de 20 anos, o país chegará a gerar um superávit de 6,3% do PIB — o dobro do nível considerado adequado.

Nas áreas sociais, o temor é que a PEC limite os recursos para a saúde e a educação, piorando a qualidade dos serviços oferecidos à população. Esses gastos têm um piso que varia conforme as receitas do governo e que passará a ser vinculado à inflação. “Nada impede que os parlamentares possam direcionar mais recursos para essas áreas”, diz Fabio Klein, economista da Tendências Consultoria.

Em outros países, a regra se torna mais flexível à medida que a economia melhora. Na Austrália, que adotou o teto em 2009 com a crise mundial, a despesa só pode crescer até 2% em termos reais, mas esse nível pode subir quando o resultado primário atingir 1% do PIB ou a economia voltar a crescer conforme o potencial. “Após sete anos, a situação ainda é frágil, e o governo gasta mais do que arrecada”, diz John Wanna, professor de ciências políticas na Universidade Nacional da Austrália. “Mas poderíamos estar muito pior sem o limite.”

Com a medida proposta, o governo está mudando a Constituição para ter mais liberdade de escolha de onde vai gastar. Nesse processo, um dos desafios é enfrentar a defesa de interesses individuais. A Procuradoria-Geral da República questionou a constitucionalidade da proposta, argumentando entre outras coisas que ela comprometeria a alocação de recursos para o combate à corrupção. Juízes federais alegam que a contratação de novos magistrados vai ser afetada e discutem como proteger o Judiciário dos cortes que deverão vir.

Alguns países já encontraram maneiras de controlar o jogo de interesses. Na Holanda, o teto de gastos é fixado em um acordo dos partidos no poder, mas existe um conselho fiscal independente que monitora a execução das despesas. “Os políticos sempre têm uma tendência a elevar os gastos de curto prazo e a produzir déficits, por isso é importante ter o teto e fazer seu constante monitoramento”, diz Wim Suyker, líder do programa de finanças públicas do conselho fiscal holandês.

Sozinha, a PEC também não fará milagres. O governo precisa alterar a fórmula de reajuste de 14 itens do orçamento para conseguir cumprir o teto. Isso inclui mudar a regra de correção de aposentadorias e pensões, ou seja, depende de uma reforma da Previdência. A equipe de Temer cogita também rever os salários e os benefícios de novos servidores.

Se tudo convergir para um Estado mais comedido, o Brasil poderá seguir no longo prazo novamente o exemplo do Peru, que abandonou o limite em 2013. Lá, o objetivo era que a dívida sobre o PIB não superasse 30% — hoje está em 24%. “Eles deixaram a regra de lado porque não precisavam mais dela”, diz Estevão, do FMI. Mas estamos longe, bem longe disso. Aqui, é hora de limitar a gastança.

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