Teresópolis (RJ) - Na localidade de Santa Rita, a cerca de 20 quilômetros do centro, a estrada continua interrompida e permite a passagem apenas de pessoas a pé que percorrem de 8 a 14 quilômetros levando mantimentos, remédios e ajuda. (Vladimir Platonov/ Agência Brasil)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h40.
Pouco antes de deixaR o Palácio do Planalto e voltar para São Bernardo do Campo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa arrancada final na coleção de revelações, ensinamentos e máximas que pretendeu deixar para a história, disse que era “gostoso” sair do governo num momento em que, segundo ele acha, os Estados Unidos, a Europa, o Japão e o resto do mundo desenvolvido estão “em crise” — enquanto o Brasil, abençoado pelos oito anos de sua administração, desliza, como um cisne branco em noite de lua, no mar imenso da prosperidade, do bem-estar e do sucesso.
Bem-aventurados, portanto, os brasileiros que receberam a graça de estar vivos enquanto ele presidiu o país. Mesmo os de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, que acabam de sepultar mais de 600 familiares mortos nos deslizamentos de terra provocados pelas últimas chuvas? Eles também, é claro — embora talvez não tenham, num momento duro como este, a isenção e a tranquilidade necessárias para perceber a sorte que é viver num país tão gostoso como o Brasil que o expresidente nos legou.
É óbvio que, com um pouco mais de calma, vão entender que a culpa, mais uma vez, é da chuva, e só dela, como está demonstrado tão bem pelas tragédias desse tipo que se repetem ano após ano. Todas, sem nenhuma exceção, só aconteceram porque choveu; está na cara que não teriam acontecido se tivesse feito sol. Que diabo, então, o governo pode fazer a respeito? Achar que o poder público tem alguma responsabilidade nessa situação é puro preconceito — no fundo, coisa de quem não se conforma com a existência de um governo voltado para os pobres etc.
A desgraça que castigou o estado do Rio de Janeiro na semana passada é mais uma demonstração deprimente do abismo que separa o Brasil dos governantes, onde se diz que estamos vivendo num paraíso invejado pelo resto do mundo, do Brasil dos brasileiros, onde há Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo, chuvas e uma infinidade de outros inconvenientes de ordem prática. Não há sinal, aparentemente, de mudanças nessa escrita.
Calamidades como a do Rio — e também, embora com custo humano menor, de São Paulo e outros lugares — são consequência direta de um fato indiscutível: o Estado brasileiro não cumpre o seu dever de proteger a vida e a propriedade dos cidadãos. Faz isso, no caso, ao recusar-se a planejar e a executar, com um mínimo de seriedade e competência, medidas rudimentares de prevenção a acidentes naturais. A autoridade pública, porém, não admite que esteja obrigada a adotar essas medidas — não na dimensão que seria indispensável.
Ao contrário, está convencida de que já faz muito, e que as tragédias são consequência dos excessos da natureza ou, pior ainda, da irresponsabilidade das vítimas, que insistem em construir onde não devem. É claro que, enquanto continuar pensando desse jeito, os desastres vão se repetir até o Dia do Juízo Final. As chuvas, com 100% de certeza, continuarão a cair. Sua intensidade continuará fora do controle de presidentes, ministros e governadores.
As pessoas continuarão a construir onde bem entenderem, enquanto as autoridades continuarem se negando a cumprir sua obrigação básica de impedir que isso aconteça. (Acham normal proibir que alguém construa, por exemplo, no meio da Esplanada dos Ministérios; mas consideram-se incapazes, ou desobrigadas, de mexer uma palha para não deixar que bairros inteiros se pendurem em encostas ameaçadas de vir abaixo a qualquer momento.)
Num país que arrecadou 1,2 trilhão de reais em impostos, como foi o caso do Brasil em 2010, os governantes não deveriam ter o direito de abrir a boca para se justificar. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, por exemplo, revelou ao público que “obras não se constroem em um dia”. É uma pena que Sua Majestade o Rei da Espanha não estivesse por aqui. Seria uma grande oportunidade para ele repetir sua inesquecível pergunta ao coronel Hugo Chávez: “Por que não te calas?”