Revista Exame

Pelo "capitalismo de compadrio" de Putin nem Lenin esperava

Cem anos após a revolução que tentou acabar com a propriedade privada, a Rússia vive nova fase estatizante - sob um tipo próprio de capitalismo

Praça vermelha, em Moscou: 12ª maior economia do mundo, a Rússia é fortemente dependente do setor de petróleo e gás (Danita Delimont/Getty Images)

Praça vermelha, em Moscou: 12ª maior economia do mundo, a Rússia é fortemente dependente do setor de petróleo e gás (Danita Delimont/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 10 de agosto de 2017 às 05h30.

Última atualização em 10 de agosto de 2017 às 05h30.

O historiador egípcio-britânico Eric Hobs­bawm (1917-2012), um dos mais brilhantes inte­lectuais de sua geração, pro­pagava que o século 20 fora moldado por um fato central — a Revolução Russa, ocorrida em  outubro de 1917. No livro A Era dos Extremos, Hobsbawm justificou: “Ela produziu o mais formidável movimento revolucionário da história moderna. Apenas 30 ou 40 anos após a chegada de Lenin à Estação Finlândia, em Petrogrado [hoje São Petersburgo, cidade onde o líder bolchevique desembarcou ao retornar do exílio], um terço da humanidade se achava vivendo sob regimes derivados dos Dez Dias Que Abalaram o Mundo”, escreveu o historiador, citando o título do clássico livro do jornalista americano John Reed.

Cem anos depois, o peso da revolução ainda se faz sentir. Seu impacto já não está associado aos contingentes que mobiliza ou à área geográfica que alcança. Nem aos choques — não raro, dramáticos — que provoca na vida das pessoas. Esse tipo de efeito desvaneceu. Mas a essência da engrenagem montada a partir de 1917 ainda move, em grande medida, a própria Rússia. “Os russos dizem em tom de anedota que as coisas no país mudam a cada três décadas para, depois de 300 anos, voltarem a ser o que eram”, diz o economista Guilherme da Nóbrega. “Ou seja, ali, mudanças ocorrem, mas a base dificilmente se altera.”

A Rússia, hoje, embute uma contradição — e é assim, enviesada, que se insere na cena global. Por um lado, mantém a eminência de um gigante com um arsenal nuclear capaz de convocar o Juízo Final (são 1 790 “armas estratégicas”), além do poder para lançar o mundo em um conflito cibernético. Por outro, é frágil. Com a maior extensão territorial e a nona maior população, a Rússia é a 12a maior economia do mundo (o Brasil está em nono lugar), fortemente dependente de petróleo e gás. Metade da receita do orçamento russo provém de impostos sobre esses produtos. Calcula-se que a queda de 10% no preço do petróleo resulte num baque de 1% no produto interno bruto do país.

Para completar, apontam os críticos, o modelo econômico é regido por uma versão local do “capitalismo de compadrio”, fundado na corrupção endêmica. E esse é um tema bem conhecido dos brasileiros. Economias dessa estirpe seguem uma lógica extrativista. Poucos grupos, ora se compondo, ora em conflito, dominam o Judiciário, o Executivo e o Legislativo. Eles expropriam parte da renda nacional para si mesmos e distribuem a outra a seus parceiros. O resultado do acerto, à direita ou à esquerda, é a má qualidade da gestão pública e, acima de tudo, instituições disfuncionais.

Soldados bolcheviques em Moscou em 1917: a essência da engrenagem montada nessa época ainda move, em grande medida, a Rússia atual | Corbis/Getty Image

Esse é o pano de fundo. A Rússia debate-se para sair de uma crise que impôs uma redução de 2,8% do PIB em 2015 e mais 0,2% em 2016. A renda real caiu 13% em dois anos e meio, retornando aos níveis de 2009. Pouco mais de 19 milhões de russos, ou 13% da população, vivem abaixo da linha de pobreza. A origem do problema está na queda do preço do petróleo e nas sanções econômicas a que o país foi submetido após a anexação da Crimeia em 2014. Com a retomada no preço do óleo, as perspectivas melhoraram. A previsão é de crescimento de 1,4% em 2017, mas o cenário no médio prazo é de incertezas.

Nas últimas duas décadas, muitas expressões têm sido cunhadas para definir a essência do atual establishment russo. Algumas delas: “plutocracia” ou “cleptocracia” (rótulo dado pela pesquisadora americana Karen Dawisha no livro Putin’s Kleptocracy: Who Ows Russia?). Em reportagem publicada em maio, a revista New Yorker sugere o termo “feudalismo”. O epíteto mais adequado, contudo, talvez seja o mais óbvio: “putincracia”.

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Vladimir Putin, ex-camarada da KGB, antigo serviço secreto soviético, assumiu o poder na Federação Russa em 2000. Sua força política se deve a dois primeiros mandatos bem-su­cedidos. Quando assumiu a Presidência pela primeira vez, nadou de braçada em um longo ciclo de alta do petróleo. Se em 1998 o preço do barril beirava os 10 dólares, em julho de 2008 atingia quase 150 dólares. A maré boa durou até 2009, quando a crise mundial atingiu o país.

Na fase da bonança, Putin estancou mais de uma década de caos econômico, com produto interno bruto em queda e inflação estratosférica, acumulados nos governos de Mikhail Gorbachev e Boris Yeltsin (1985-1999), durante o fiasco da transição do comunismo para uma economia de mercado — ou algo parecido. De 1999 a 2008, os salários reais dos russos triplicaram e os indicadores de desemprego caíram pela metade. Nessa fase, a economia cresceu 7% ao ano, em média, quase dobrando em nove anos. Putin, desde então, conquistou uma aprovação popular que ainda hoje oscila entre 70% e 80%.

Enquanto a renda dos russos crescia, Putin reconstruiu a estrutura político-econômica do país, criando as bases de um “capitalismo de Estado” (o termo “capitalismo” entra aqui como coadjuvante). Na prática, observam economistas como o americano Clifford Gaddy e o sueco Anders Aslund, o país passou por uma reestatização. Putin criou um sistema em que os dirigentes do aparato estatal e os proprietários de empresas “apenas nominalmente privadas”, nota Gaddy, são meros “gerentes de divisão”. Putin é o chefe, o presidente executivo.

Para azeitar o modelo, houve uma troca de guarda na elite dominante, formada por um punhado de bilionários, os “oligarcas”. São eles que detêm as chaves das principais empresas, tanto estatais como “privadas”, em setores estratégicos como os de energia, minérios, bancos e mídia. Essa, na verdade, é a segunda geração de magnatas russos. A primeira formou-se à sombra de Boris Yeltsin, beneficiando-se da mais desastrosa privatização da história. O processo, descrito no livro Sale of the Century (“A liquidação do século”, numa tradução livre), da jornalista canadense Chrystia Freeland, resultou numa monumental concentração de poder econômico e no surgimento na cena internacional (e nas listas de biliardários) de nomes como Boris Berezovsky e Mikhail Khodorkovsky.

O líder russo despachou essa turma para longe. Berezovsky exilou-se em Londres, onde morreu em 2013. Khodorkovsky, que chegou a ser o homem mais rico da Rússia, foi preso por sonegação e levado à Sibéria em 2003. Deixou a cadeia, anistiado, dez anos depois. “Putin até aceitou que os oligarcas da primeira geração tocassem seus negócios, mas não admitiu que interferissem na política”, diz Lenina Pomeranz, professora na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo.

Enquanto esses personagens caíam, outros subiam no tablado. Um deles é o empresário da construção civil Arkady Rotenberg, apelidado de “o rei das encomendas estatais”. Trata-se de um velho amigo de Putin. Ambos frequentavam a mesma academia de judô aos 12 anos. Há indicações de que Arkady e seu irmão Boris realizaram obras nos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi, em 2014, no total de 7 bilhões de dólares, o equivalente a tudo que foi gasto nos Jogos de Vancouver, em 2010. A dupla também prestou serviços à Gazprom, o gigante estatal de gás. Em 2007, construiu gasodutos no Ártico que teriam custado o triplo do valor normal. Obras para a Copa do Mundo de 2018, como os estádios, também levantam suspeitas.

O processo de “caça aos oligarcas desobedientes”, observa Angelo Segrillo, professor de história contemporânea da USP, no livro De Gorbachev a Putin, de 2015, foi fundamental para a reestatização da economia. Os ativos das petrolíferas Yukos, que pertencia a Khodorkovsky, e Sibneft, de Berezovsky e Roman Abramovich, outro supermagnata, mas que se manteve obediente ao poder central, passaram a ser controlados pelo Estado. O mesmo ocorreu com emissoras de TV, como a ORT e a NTV. Antes disso, seus donos eram, respectivamente, Berezovsky e Vladimir Gusinsky, um crítico da Guerra da Chechênia. A “vertical de poder” promovida por Putin teve forte impacto no país. O economista Anders Aslund estima que o peso do setor estatal no PIB russo tenha inflado de 35%, em 2005, para 70%, em 2015. Um problema, alerta Aslund, que foi acentuado pela ausência de governança nas estatais, aí incluídos colossos como a Gazprom e a petrolífera Rosneft.

O fato é que a Rússia nunca atravessou a ponte que a levaria a ser uma economia de mercado, ainda que a União Soviética tenha derretido em 1991. Dadas as peculiaridades do “antigo regime”, somente um maluco poderia imaginar que a transição seria simples — ou mesmo viável. Isso porque as marcas do sistema soviético eram o centralismo autocrático e a propriedade “estatal” dos meios de produção. E essas bases tiveram de ser erguidas do zero a partir de 1917. Não havia experiência histórica que lhes desse suporte. Marx, Engels e companhia nunca forneceram orientações práticas sobre como operacionalizar o modelo. Por isso, foi apenas a partir da década de 30, sob a foice e o martelo de Josef Stalin, que ele ganhou contornos definitivos.

Na União Soviética, tudo girava em torno do Partido Comunista e do Estado. Entrelaçados, formavam um só elemento. Os integrantes do PC preen­chiam, de cima a baixo, os cargos do governo. Os diretores das estatais também eram indicados pela cúpula partidária. Foi esse esquemão que deu origem à nomenklatura, a elite dominante na sociedade soviética.

Os planos quinquenais definiam a base do sistema (o primeiro data de 1928). Eles abrangiam toda a economia. E “toda”, aqui, quer dizer exatamente isto: “toda”. O Comitê de Planejamento, o Gosplan, determinava as metas econômicas. Estas eram desmembradas pelos ministérios e outras instâncias governamentais. As empresas limitavam-se a cumpri-las. Não entravam em contato com compradores ou fornecedores. As transações nem sequer envolviam dinheiro. As companhias mantinham uma conta em um banco estatal, que funcionava como câmera de compensação. Em vez de lidar com cheques, executava  débitos e créditos das relações comerciais. O banco também liberava recursos para investimentos se as metas fossem cumpridas. “No sistema capitalista, o que induz a atividade é o lucro”, diz a professora Lenina, da USP. “No socialista, isso não acontecia. O que se buscava era o cumprimento das metas, fossem quais fossem.”

À medida que foi se tornando complexa, essa máquina desabou. A causa mortis? Ineficiência. Prova disso está na inovação. Os soviéticos foram os primeiros a colocar um satélite artificial em órbita, o Sputnik, em 1957. No mês seguinte, lançaram o Sputnik 2, cuja passageira era a cadela Laica. Em 1961, mandaram Yuri Gagarin passear em torno da “Terra azul”, no Vostok  1. Mas toda essa expertise jamais foi levada às ruas. A União Soviética tinha a pesquisa de base, conseguia aplicá-la em áreas estratégicas, mas não contava com um mercado para dar capilaridade a essas invenções. Em suma, faltavam correias de transmissão da tecnologia para a sociedade.

Construção do estádio de Volgogrado para a Copa de 2018: por lá, também não são raras as obras públicas sob suspeita de superfaturamento | Ruslan Shamukov/AFP Photo

Fantasmas do velho modelo ainda rondam a política externa. As relações de Putin com o Ocidente geram desgaste e isolamento. Começaram a ruir em 2003, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque. Agravaram-se com as “revoluções coloridas” (Geórgia, Ucrânia e Quirguistão), no quintal da Rússia. Desandaram de vez com a anexação da Crimeia. Atualmente, com o escândalo em torno da suposta ligação entre o governo russo e a campanha eleitoral de Donald Trump à Casa Branca, assumiram um tom conspiratório, policialesco, como se tivessem atrás da “cortina de ferro”. É por isso que, não sem exagero, alguns analistas falam em um retorno da Guerra Fria.

No front interno, Putin também enfrenta novos problemas: protestos contra a corrupção e a retração da economia (que, segundo o historiador Vasily Klyuchevsky, segue uma tendência percebida desde o século 19: “O Estado fica gordo; e as pessoas, magras”). As manifestações são capita­nea­das pelo líder de oposição Alexei Nalvani, um advogado e blogueiro. Um dos símbolos da grita é um pato de borracha. Ele faz alusão a um documentário de Navalni, no qual o primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev, é acusado de corrupção. O vídeo mostra uma das propriedades do político na qual, no meio de um lago, surge a casinha de um pato de estimação. Medvedev nega as acusações.

Stephen Kotkin, professor na Universidade de Princeton e especialista em história soviética, vê nas políticas russas, tanto interna quanto externa, um erro de origem. Num artigo publicado em 2016 na revista Foreign Affairs, ele ataca a visão de Putin e da “camarilha” que o cerca. Diz o acadêmico: “O que a Rússia precisa para competir e garantir um lugar estável na ordem internacional é um governo transparente e responsável; um verdadeiro serviço público; um Parlamento de verdade; um Judiciário profissional e imparcial; mídia livre e profissional; e uma repressão vigorosa e não política sobre a corrupção”. A receita, como se vê, caberia como uma luva em outros países. 

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