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Estilo | Pode trabalhar de chinelo?

O dress code corporativo está mais informal, isso é fato. A questão agora é entender até onde vai a flexibilização da vestimenta no escritório

 (Billions/Divulgação)

(Billions/Divulgação)

Havia um tempo em que era muito fácil entender as regras de vestimenta do mundo corporativo. Para as mulheres, terninho e sapato de bico fino baixo. Para os homens, costume completo. Nos altos escalões, quem queria impressionar apelava para grifes mais caras. Para elas, tailleur Yves Saint Laurent e escarpim Chanel. Para eles, terno Brioni, gravata Hermès e loafer Ferragamo.

Mas acontece que aquele tempo, para muita gente, estava conjugado no pretérito imperfeito. No presente do indicativo, esses códigos já não são imperativos. Novos valores vêm sendo ditados pela geração dos jovens empreendedores do Vale do Silício. O símbolo de status, hoje, não passa mais necessariamente por um belo nó Windsor. Quase tudo está em xeque e é passível de questionamento. Na base de tudo, ainda parecendo resistir, estão os pés. Melhor dizendo, os dedos de fora.

Chinelos podem ser considerados a última fronteira do dress code nas empresas, principalmente entre os homens. Camisetas, calças de moletom e até bermudas já são toleradas, dependendo do segmento. Sandálias, dificilmente. A Havaianas quer romper essa barreira. No início de setembro, a marca que é sinônimo de categoria começou uma campanha para convencer as companhias a liberar o uso do chinelo.

Elenco da série Billions: de camiseta e tênis, Bobby Axelrod pode se tornar símbolo de uma geração | Divulgação

“Estamos em contato com mais de 50 empresas interessadas em se tornarem Havaianas friendly”, afirma Fernanda Romano, diretora global de marketing da Alpargatas, controladora da marca, fazendo referência ao nome da campanha. “Vamos agora combinar ações nos escritórios parceiros. Queremos que todos possam desfrutar tanto quanto nós do conforto no trabalho. Nosso objetivo é que o casual day vire every day.”  O exemplo vem de dentro. A Alpargatas, claro, autoriza o uso do chinelo para os cerca de 500 funcionários em sua sede no bairro do Morumbi, em São Paulo.

A primeira parceira da Havaianas nessa campanha foi a empresa de tecnologia SAP, da qual, aliás, a Alpargatas é cliente. O anúncio da adesão foi feito ao vivo durante o SAP Brasil Now, evento sobre inovação com dois dias de duração e mais de 500 painéis e 16.000 participantes, realizado em setembro.

“Nossos funcionários podem se vestir da forma como acharem melhor”, diz Cristina Palmaka, presidente da SAP Brasil. “Essa flexibilização vem acompanhando uma mudança importante dentro de nossa companhia. Nos seis anos em que estou aqui, passamos a atender muitos clientes menores ou da nova economia, como Nubank e iFood. Formalidade é algo que não combina com eles.”

Para Cristina, o despojamento das vestimentas está em linha com os valores da empresa. “Trabalho remoto faz parte de nossa rotina. Já fiz reuniões enquanto minha filha tinha aula de natação. É preciso focar o que é importante, o resultado.” A fabricante de celulose Klabin e a empresa de educação Kroton também aderiram à campanha da Havaianas, assim como a startup Gupy, de recrutamento e seleção com uso de inteligência artificial.

Pela abrangência, a campanha quase pode ser considerada um caso de marketing de causa, que busca proporcionar impactos positivos na sociedade. Existe, claro, uma preocupação de mercado. No ano passado, a Havaianas vendeu 240 milhões de sandálias, sendo 212 milhões no Brasil e o restante no exterior. É difícil encontrar quem não tenha alguns pares no armário, quase sempre para ser desfilados na praia ou em momentos de lazer. “É o mais democrático dos calçados. Queremos expandir sua ocasião de uso”, diz Fernanda Romano.

Não vai ser uma missão tão simples, como sugere um passeio pela Brigadeiro Faria Lima, epicentro da cultura corporativa de São Paulo. Pela avenida, circulam muitos barbudos de camiseta e tênis Allbirds, egressos das mais de 20 startups e dos coworkers instalados nas proximidades. Mas boa parte da frequência ainda é de executivos de camisa azul, calça cinza de alfaiataria e sapatos fechados tipo oxford ou derby.

“Uma coisa é a teoria, o que está no papel. Outra coisa é a vida real”, afirma Ricardo Almeida, o alfaiate predileto de executivos e políticos. “A roupa não revela mais ou menos capacidade. Mas não dá para dizer que não existe preconceito, que um funcionário não é avaliado pela aparência. Quem não tem contato com o público pode ficar mais à vontade. Mas quem costuma atender clientes e participar de um ambiente corporativo precisa estar mais alinhado.”

A liberação do dress code varia de acordo com o segmento. Mas mesmo na área financeira, uma das mais tradicionais, a discussão está na ordem do dia. Bradesco e Itaú já aboliram o uso da gravata. Na B3, a Bolsa de Valores de São Paulo, o traje casual permite até shorts — os vetos são apenas para camiseta regata e de time de futebol.

Em março deste ano, a direção do Goldman Sachs enviou uma diretriz a todos os seus escritórios com a seguinte mensagem: “Dado que os locais de trabalho estão indo para um caminho de ambientes mais casuais, este é o momento certo de mudarmos para um código de vestimenta mais flexível”. Fez, porém, uma ressalva: “Queremos que os clientes se sintam confortáveis e confiantes em nossa equipe. Vista-se de maneira consistente com suas expectativas”.

Nos meses de verão, o JP Morgan baixa uma norma parecida, mas encontra resistência dos próprios funcionários. “Aqui na City todos se vestem de maneira muito alinhada, gravata ou gravata-borboleta, lenço no bolso. Parece um editorial de moda”, diz uma advogada que trabalha no escritório do banco em Londres. “No calor as pessoas dispensam a gravata, mas vão de camisa. Camisa polo, só na sexta-feira.”

No mundo da ficção, grandes investidores usam até camiseta de banda de heavy metal e tênis Puma de camurça. Estamos falando de Bobby Axelrod, protagonista de Billions. Eric Daman, diretor de figurino da série, visitou escritórios de fundos de hedge para montar o personagem. “Vi sócios circulando de jeans e camiseta. O clima é casual, poucos usam terno”, disse Daman ao The Wall Street Journal. O contraponto de Bobby é o procurador Charles Rhoades Jr., sempre em ternos bem cortados. Apesar da diferença no visual, os trajes dos dois adversários podem custar cifras semelhantes. Um dos agasalhos usados por Bobby era, na verdade, um cashmere da Loro Piana de 2 300 dólares, como revelou o figurinista. É um sinal de status, mas para entendidos.

Billions pode se tornar o espelho de uma geração movida a propósito e quebra com a forma como o mundo corporativo sempre foi apresentado nas telas. A série Mad Men retratou o rigor com que os publicitários se exibiam nos anos 50. Gordon Gekko, impecavelmente vestido em Wall Street, representava a essência da cultura materialista dos yuppies da década de 80. O filme A Grande Aposta mostrou os responsáveis pela crise financeira de 2008. E como eles se vestiam? De terno e gravata, claro.

Os trajes refletem os valores de cada época. Isso vale para homens e para mulheres. Se na primeira metade do século passado Coco Chanel desenhou peças para ser usadas sem espartilho e com liberdade, Yves Saint Laurent proporcionou poder ao criar o smoking feminino nos anos 60. No atual questionamento do dress code corporativo, sobrou até para o salto alto, símbolo maior de feminilidade.

A atriz Yumi Ishikawa lançou neste ano uma campanha no Japão contra o uso do salto. Muitas empresas japonesas, como a funerária em que ela trabalhava, preveem a obrigatoriedade desse tipo de sapato para as mulheres. Yumi publicou um post com fotos dos pés machucados e reclamando da dor causada por calçados pouco confortáveis. Em um dos inúmeros compartilhamentos, alguém inventou a hashtag #KuToo, inspirada no movimento #MeToo (em japonês, kutsu é “sapato” e kutsuu é “dor”). Yumi então recolheu 30 000 assinaturas contra a exigência do salto e enviou uma petição ao Ministério do Trabalho pelo fim da norma. Por enquanto, o conservadorismo falou mais alto: inicialmente o ministro japonês se manifestou contrário à ideia. Imagine se elas estivessem pedindo para usar chinelos. 

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