Revista Exame

Coronavírus força empresas a se modernizar e priorizar as pessoas

A distância forçada obriga empresas a se modernizar na marra. Quem já estava preparado saiu na frente

Escritório da Braskem, em São Paulo: mais de 1.000 funcionários em home office durante a quarentena   (Germano Lüders/Exame)

Escritório da Braskem, em São Paulo: mais de 1.000 funcionários em home office durante a quarentena (Germano Lüders/Exame)

Mariana Desidério

Mariana Desidério

Publicado em 9 de abril de 2020 às 05h15.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 14h47.

Assim que a covid-19 desembarcou no Brasil, no final de fevereiro, o banco digital Nubank mandou os funcionários para ca­sa. Agora, todos os 2.600 colaboradores trabalham remotamente — inclusive os fundadores Cristina Junqueira (que já estava fora, em licença-­maternidade) e David Vélez. Para garantir boas condições de trabalho em uma situação tão dura, o banco enviou computadores, monitores e até cadeiras aos escritórios caseiros.

Fechou parcerias com aplicativos de exercícios físicos que dão aula à distância, tem realizado treinamentos sobre como equilibrar vida pessoal e profissional e também estimulado o uso de seu programa interno de assistência, que conta com psicólogos, advogados e consultores financeiros. A preocupação se estende aos clientes.

O Nubank montou um fundo de 20 milhões de reais para custear atendimento médico e psicológico remoto por vídeo e bancar pedidos de supermercados e restaurantes. Quem está com dificuldade para pagar a fatura do cartão de crédito pode negociar juros reduzidos e a prorrogação do vencimento. A postura tem uma explicação objetiva, de acordo com Vélez, que também preside o banco: “Uma crise força as empresas a testar seus valores mais importantes. Funcionários e  clientes vão se lembrar de como a empresa se comportou durante os tempos difíceis, e nenhum investimento em marketing poderá mudar essa percepção depois”.

Cristina Junqueira, do Nubank: a empresária sai às 17 h do trabalho para dar atenção à família | Germano Lüders

É impossível, neste início de abril, estimar quando a pandemia será domada e o país começará a sair da paralisia, provavelmente contando milhares de mortos, outro tanto de desempregados e com negócios de todos os portes quebrados. Mas empresas como o Nubank apostam que seu estilo de gestão será decisivo para atravessar a tempestade e alcançar o outro lado. Não basta que o negócio sobreviva — o que já é um  enorme desafio. Sua conduta nestes tempos extremos determinará se, ao final da pandemia, estará maior ou menor. A EXAME ouviu nos últimos dias dezenas de empreendedores, executivos, funcionários e estudiosos do mundo dos negócios para mostrar que a pandemia intensificou as exigências e deve mudar definitivamente o capitalismo. O século 21 chegou.

David Vélez, do Nubank: a empresa criou um fundo para pagar compras e consultas aos clientes | Germano Lüders

No Nubank, Junqueira e Vélez fazem questão de dar o exemplo. Ele acabou de ser pai pela terceira vez e está se dividindo entre o trabalho e a família. Ela, mãe de duas filhas, uma com 5 anos e a outra com 2 meses, tradicionalmente sai do trabalho todo dia às 17 horas para buscar a mais velha na escola. Quando a segunda filha nasceu, entrou em licença-maternidade. Proporcionar condições para a mulher conciliar todos os seus papéis é parte do pacote de benefícios intangíveis que o banco digital oferece para atrair e reter funcionários competentes e que acreditam em sua filosofia. “Se estão em uma empresa que não leva em conta suas necessidades, os bons profissionais vão embora. Não tenho dúvida de que essa visão é condição essencial para atingir a excelência que a gente quer no trabalho”, afirma Junqueira. Nos últimos dias, ela fez pequenas pausas na licença para ajudar a coordenar a estratégia de resposta da empresa.

O Nubank é campeão também de diversidade entre seus funcionários — o que impulsiona a inovação. O pragmatismo e o alto nível de exigência ajudaram o banco digital brasileiro a se tornar a maior fintech (empresa de tecnologia financeira) da América Latina e podem fazer a diferença na prova de fogo a que o setor está sendo submetido com a pandemia. As fintechs nasceram e cresceram no ambiente de liquidez farta dos últimos anos e agora precisam aprender a operar na carestia. O Nubank diz que se encontra em situação financeira sólida para enfrentar a crise: gera caixa operacional desde 2017, não depende de novos aportes de capital para pagar as despesas mensais e encerrou 2019 com mais de 13 bilhões de reais em caixa. No ano passado, teve receita de 2,1 bilhões de reais e prejuízo de 313 milhões de reais por causa dos investimentos feitos para manter o crescimento acelerado, condição para as companhias de tecnologia se manterem no jogo. O plano era seguir nesse ritmo em 2020, porém a covid-19 pode forçar a uma reavaliação da tática de guerra. Menos na área que o banco digital considera mais importante: por ora, o Nubank afirma que as contratações de funcionários previstas serão mantidas e não há previsão de demissões.

Foram as empresas de tecnologia que conseguiram entender e efetivamente atender aos desejos de mais qualidade de vida e propósito que estavam latentes no mercado de trabalho no início dos anos 2000. Lideradas por jovens, com um método de operação ágil e mentalidade inovadora para romper padrões corporativos estabelecidos, acabaram com as hierarquias, dando voz aos funcionários. O movimento começou no Vale do Silício, na Costa Oeste dos Estados Unidos. A empresa de tecnologia Alphabet, dona do Google, com sede na Califórnia, incentiva o funcionário a definir sua rotina tanto quanto possível. O lema que norteia as decisões em um ambiente de autonomia é: faça a coisa certa. Na empresa de entretenimento via streaming ­Netflix, o funcionário pode ter férias ilimitadas, mas é cobrado para ter alta performance. A migração dos colaboradores para o trabalho remoto em decorrência da covid-19 vem testando o discernimento dos funcionários — e a empatia dos líderes — em todo o Brasil. É uma situação que já vinha, aos poucos, fazendo parte do cotidiano. As aulas de ioga dadas na empresa passaram para a internet. Com a quarentena, crianças e bichos de estimação apareceram de vez nas reuniões de trabalho virtuais (e deveriam ser encarados com naturalidade). Há algumas semanas, a gerente de recursos humanos do Google Brasil, Carol Azevedo, que fica baseada em São Paulo, precisou interromper uma reunião porque o filho de uma colega se machucou. “Não é condescendência. É uma cultura que acredita que o funcionário tem senso de responsabilidade e vai fazer o melhor que pode”, afirma a executiva. Na fintech brasileira Ebanx, a autonomia dos funcionários também é a regra. Independentes mas não sozinhos: para minimizar a sensação de solidão que o distanciamento forçado pela covid-19 traz, a fintech está realizando happy hours virtuais com a equipe.

Essa filosofia vinha se espalhando mesmo pelos setores tradicionais da economia. “As pessoas estão cada vez mais escolhendo onde querem trabalhar com base em critérios como ter empregadores que incentivem a conciliação entre o trabalho e a família”, diz Jeffrey Pfeffer, professor na universidade americana Stanford e autor do livro Morrendo por um Salário. Na crise global causada pela covid-19, é justamente a necessidade urgente de adotar o trabalho remoto que está mostrando qual empresa já entendeu o recado ou não. No ano passado, 38% das empresas no Brasil encorajavam o chamado home office. Por causa da pandemia, a parcela subiu para 72% em março, segundo pesquisas da Mercer Marsh Benefícios e da Mercer Consultoria. Mas 22% relataram dificuldades em adotar a prática por falta de estrutura como ferramentas em rede. Entre as empresas que oferecem home office e jornada flexível, aproximadamente 15% só aderiram às práticas devido às contingências impostas pelo novo coronavírus. “O momento desafiou as empresas e mudou a postura dos líderes. Agora, a maior parte das companhias que não tinha regras para o trabalho remoto pensa em manter o home office após a pandemia porque é van­tajoso para todos”, diz Rafael Ricarte, líder de produtos de carreira da Mercer. Em 93% dessas empresas, foi percebida a melhora na qualidade de vida do funcionário com o novo arranjo.

Natura, em São Paulo, e Ebanx (abaixo), em Curitiba: ações para manter o bem-estar dos funcionários | Germano Lüders

Foto: Divulgação

A migração para o home ­office é uma grande oportunidade para reforçar a relação de confiança entre a empresa e o funcionário, que também precisa ajustar sua rotina familiar para desempenhar­ bem suas funções. “Se o gestor confia que o funcionário está executando o melhor que pode e no horário correto, mesmo fora do escritório, o grau de estresse de ambos é menor,  e o clima e a produtividade melhoram”, diz Betania Tanure, diretora da consultoria de gestão que leva seu nome. O brasileiro é dedicado. No país, 7% da população trabalha mais de 50 horas semanais, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Fica em 25 em um ranking de 40 nações. 

A cinquentenária fabricante de cosméticos Natura foi uma das empresas que precisaram correr para ampliar o programa de home office por causa da quarentena. Desde 2015, permitia aos funcionários do escritório que trabalhassem de casa uma vez por semana, além de autorizar que variassem o horário de entrada e saída em até 4 horas, facilitando a marcação de compromissos pessoais em horário comercial. “Estudávamos estender o home office para outros dias da semana, mas fomos obrigados a fazer isso sem testes e rapidamente desenvolver ferramentas que melhorassem a qualidade de vida e de trabalho do profissional”, diz Marcos Milazzo, diretor de remuneração e benefícios da Natura. A empresa vem se preocupando em ajudar os colaboradores a manter uma rotina próxima à do escritório. Os exercícios laborais comandados por instrutores especializados são transmitidos pelo Instagram. Depois de receber dos funcionários pedidos de dicas para administrar o tempo e as atividades com os filhos em casa, a equipe que coordena os berçários nas unidades da Natura passou a promover transmissões online para auxiliar os pais e realizar sessões virtuais de contação de histórias.

Feira livre em São Paulo: os trabalhadores informais não têm rede de proteção na crise | Germano Lüders

Os benefícios do trabalho remoto não se restringem aos funcionários, a suas famílias e às empresas. Ecoam por toda a sociedade. Reduzir a necessidade de deslocamento dos colaboradores ajuda a reduzir o estresse, que é um problema de saúde pública, e tem impacto econômico. Pelos cálculos do pesquisador Guilherme Vianna, da Quanta Consultoria, o Brasil perde cerca de 267 bilhões de reais por ano com os congestionamentos, que roubam um tempo que poderia ser usado em produção e geração de renda — para não falar de estudos e atividades que melhoram a qualidade de vida da família. Ao saber que alguns funcionários perdiam até 2 horas e meia no trajeto entre casa e escritório, João Paulo Pacífico, fundador da securitizadora Grupo Gaia, instituiu em janeiro um auxílio-aluguel de 1.000 reais para que funcionários com até determinado salário pudessem morar a no máximo 1 hora de distância da sede da empresa, na Vila Olímpia, zona sul de São Paulo. Já a petroquímica brasileira Braskem permite que os funcionários de departamentos administrativos façam home office ou trabalhem de qualquer uma das unidades da companhia. Para estimular a prática, a sede da empresa, na capital paulista, passou por uma reforma e foi reinaugurada em janeiro com capacidade para apenas 70% dos funcionários. “Se todos forem para lá no mesmo dia, não haverá lugar suficiente”, diz Marcelo Arantes, vice-presidente de pessoas, comunicação e desenvolvimento sustentável da Braskem. Como já havia a política, bastou uma rápida reunião entre os diretores para decretar o trabalho de casa durante a quarentena para os colaboradores administrativos. Uma foto do escritório vazio da empresa abre esta reportagem.

Votação da reforma trabalhista em 2017: a mudança na lei facilitou a adoção de horários flexíveis | Antonio Cruz/Agência Brasil

Tão valorizado atualmente pelos funcionários quanto o trabalho remoto e a flexibilidade de jornada, e tão relevante quanto fortalecer a resistência contra crises como a atual, é o aumento da diversidade — a começar pela equidade de gênero. Nessa área, as regras para o perío­do posterior ao nascimento dos filhos funciona como principal indicador de qualidade da política de recursos humanos de uma empresa. Muitas companhias vêm esticando a licença-maternidade e a licença-paternidade para além do mínimo definido em lei — quatro meses para elas e cinco dias corridos para eles. A consultoria e auditoria multinacional PwC, que tem 171 anos de história e 225.000 funcionários espalhados pelo mundo, concede seis meses às novas mães e dois meses aos novos pais. Na volta da licença, todos os profissionais têm direito a trabalhar em jornada reduzida até o filho completar 1 ano.

Escritório da Netflix: férias ilimitadas e alta cobrança por performance | Divulgação

Para dar oportunidades iguais a homens e mulheres, a fabricante de bebidas Diageo, dona de marcas como a brasileira Ypióca, de cachaça, e a russa Smirnoff, de vodca, concede uma licença-paternidade de seis meses desde maio de 2019. O período é equivalente ao oferecido às mulheres, com a diferença de que os homens podem sair de licença em até um ano após o nascimento ou a adoção da criança. Até o momento, 15 pais já usaram o benefício no Brasil. Um deles é Vagner Sales, gerente de vendas da Diageo na Bahia, que escolheu ficar fora durante os seis primeiros meses da filha, nascida em março. Tem sido uma experiência muito distinta da que teve quando nasceu seu primogênito, há sete anos, quando Sales se ausentou do trabalho por apenas três dias. “Desta vez, senti um temor igual ao das mulheres de perder o cargo por ficar fora, mas meus gestores me tranquilizaram. Se o equilíbrio de gênero é uma premissa como a Diageo vem dizendo, as práticas não podem ser diferentes”, diz o gerente.

Elisa Pasculli, funcionária do Google: aulas de ioga online para os colegas | Divulgação

Mas há um enorme contingente de brasileiros que não contam com nenhuma rede de proteção: os autônomos e informais. Neste ano, até fevereiro, 43 milhões de profissionais se encontravam nessa condição, o equivalente a 40,6% da força de trabalho do país. Essa parcela dos trabalhadores está praticamente estável desde 2018, depois de subir de 38,7%, em 2016, para 39,6%, em 2017, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O levantamento não captou ainda a devastação que a pandemia vai causar no mercado de trabalho, evidenciando mais a situação precária em que esses brasileiros vivem no momento.

Avenida JK, em São Paulo: a quarentena acabou com o trânsito da cidade | Germano Lüders

Para tentar amenizar um pouco a perda de renda das famílias que dependem do trabalho informal, o Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, anunciou o pagamento emergencial de 600 reais durante três meses para os autônomos — taxistas, diaristas, vendedores ambulantes etc. Especialistas internacionais já preveem que uma das consequências da crise do novo coronavírus será a reavaliação dos vínculos informais entre entregadores de comida e motoristas com os aplicativos que os conectam aos consumidores. As plataformas de transportes Uber e 99 e a de alimentos iFood criaram fundos para dar ajuda financeira a seus parceiros que precisarem se afastar por suspeita de contaminação pela covid-19. Novas ações poderão ser necessárias à medida que a crise se acirrar. É natural que novas e velhas práticas de gestão de recursos humanos coexistam nas grandes transições econômicas. Mas é consenso no mundo corporativo que colaboradores satisfeitos apresentam melhor desempenho, segundo Paulo Sardinha, presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos. “Empresas com cultura avançada têm mais retorno em produtividade e engajamento. Não fazem isso por caridade, mas porque sabem que haverá um retorno no final”, afirma.

Pessoas usam máscaras em Wuhan, na China: a pandemia já matou 65.000 no mundo | Noel Celis/AFP

Não é fácil para nenhuma empresa medir em números o impulso que as políticas de recursos humanos modernas dão a seus resultados. Metas adequadas ao ramo de atividade devem ser estabelecidas com clareza, sob pena de criar distorções e um clima negativo na equipe — o contrário do que é almejado. Se, para uma companhia, alta produtividade significar excesso de horas trabalhadas e for recompensada com remuneração variável agressiva, podem ser premiados não os melhores funcionários, mas os que lidam melhor com a pressão. Em um momento dra­mático como o atual, que, a despeito de todo o apoio dos empregadores, demanda um grande esforço dos funcionários para manter as atividades, companhias de todos os portes poderão medir pelo nível de engajamento da equipe o efeito de suas políticas. O melhor retorno a esperar será a sobrevivência. A travessia não tem data para terminar. 

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