Dan Erickson, criador da série Ruptura, da Apple TV+, sucesso mundial (Frazer Harrison/Getty Images)
Repórter de POP
Publicado em 23 de janeiro de 2025 às 06h00.
Última atualização em 27 de janeiro de 2025 às 17h40.
Se oferecessem a você uma forma de evitar o trabalho por 8 horas diárias, a partir de um implante no cérebro que dividisse a personalidade, uma pessoa somente para o ambiente corporativo e outra para a vida pessoal, você toparia?
Quem nunca sonhou com o equilíbrio perfeito entre vida pessoal e profissional certamente não vivenciou um ambiente corporativo. Essa discussão ficou ainda mais intensa depois da pandemia, com o trabalho remoto e a volta do trabalho presencial, e com o crescimento das redes e da inteligência artificial.
'Ruptura': 2ª temporada estreia nesta sexta e terá episódios semanais; veja o calendárioO equilíbrio entre vida pessoal e profissional é também o tema de Ruptura (Severance, no título original), série criada por Dan Erickson e dirigida por Ben Stiller, cuja a segunda temporada estreou no dia 17 de janeiro.
Lançada em 2022 pela Apple TV+, a trama acompanha Mark Scout (interpretado por Adam Scott) e seus colegas — Dylan (Zach Cherry), Irving (John Turturro) e Helly (Britt Lower) —, participantes de um programa da Lumon Industries (uma empresa fictícia) que separa, de forma literal, suas identidades de trabalho e de casa por meio de um implante cerebral, em um processo denominado “ruptura”.
‘Ruptura’: série retorna com Gen Z, nova liderança no escritório e adições no elencoA produção convida o público a imaginar a ética e a moral da possibilidade de um controle perfeito de duas personalidades no mesmo cérebro, que não se conhecem e, portanto, não se completam.
A série virou tema de conversa em escritórios mundo afora e alcançou 97% de aprovação no site Rotten Tomatoes, que mensura a qualidade de séries e filmes. Recebeu ao todo 14 indicações na 74a edição do Primetime Emmy Awards, maior premiação da TV no mundo.
A mente por trás da produção é Dan Erickson, roteirista e produtor americano. Em 2022, após o sucesso da primeira produção, Erickson foi reconhecido pela revista Time como um dos 100 líderes emergentes que estão moldando o futuro e definindo a próxima geração de liderança.
Em dezembro de 2024, ele viajou a São Paulo com o elenco de Ruptura para participar da CCXP, maior convenção de cultura pop do mundo, e concedeu a seguinte entrevista à EXAME.
De onde surgiu a inspiração para a série? Você teve alguma experiência que o levou a criar o programa?
Quando eu me mudei para Los Angeles, trabalhei em uma série de empregos administrativos, sendo o primeiro deles em uma fábrica de portas. Eu trabalhava no escritório no andar de baixo, onde basicamente cuidava de catálogos com todas as partes das portas e tudo mais. As pessoas lá eram adoráveis, mas eu não gostava do que fazia. Certo dia, enquanto ia para o trabalho, me peguei desejando poder avançar até o final do expediente, ter o trabalho concluído, mas sem precisar vivê-lo, para simplesmente poder voltar para casa. Isso me fez perceber que provavelmente muitas pessoas também têm esse desejo ao entrar no trabalho pela manhã. Mas também é algo perturbador de desejar, porque, basicamente, você está pedindo por menos vida. E o caráter inquietante disso me levou a pensar que poderia ser uma história. Naquele dia, praticamente não trabalhei; fiquei escrevendo ideias para esse programa. Nos meses seguintes, trabalhei em alguns outros empregos de escritório. Eu acabava pedindo demissão ou sendo demitido, e conseguia outro emprego. Cada um deles trouxe um detalhe novo ou um novo ângulo para essa ideia. Escrevi o piloto ao longo de alguns meses.
Quando você fez essa crítica ao trabalho — porque é uma crítica, de certa forma —, quais foram os limites que você impôs entre o real e o absurdo?
Acho que as pessoas ficariam surpresas com quão pouco precisei exagerar na absurda cultura dos escritórios e na vida corporativa. Em um dos lugares onde trabalhei, os detectores de fumaça quebraram. Então, parte do meu trabalho era andar pelo escritório uma vez por hora, entrar em todas as salas e garantir que nada estivesse pegando fogo. Por um tempo, eu fui literalmente um detector de fumaça humano. E esse é o tipo de coisa que, se você colocasse em um roteiro, as pessoas achariam inacreditável. Elas pensariam que é algo exagerado demais, que talvez precisasse ser suavizado. Mas esse tipo de coisa acontece o tempo todo em um ambiente corporativo. É apenas uma questão de notar a absurda realidade dessas situações e conseguir traduzi-las para uma história.
Existem outras séries, como The Office, que abordam o ambiente de trabalho de forma bem humorística. Em Ruptura, o humor é mais “ácido”, porque a temática, ainda que absurda, é muito palpável. Você pensou em fazer um drama?
A série é uma mistura de vários gêneros diferentes. Chegou a me ocorrer que poderia fazer isso como uma comédia mais maluca, com episódios curtos de meia hora. Mas fui inspirado por outras produções de que eu gostava, como Twin Peaks, Quero Ser John Malkovich e O Show de Truman. Isso me fez pensar que queria fazer algo que tivesse humor, mas tratasse o tema com mais seriedade. Também queria explorar a tristeza no núcleo dessa ideia. Por que as pessoas escolheriam fazer isso consigo mesmas, dividir sua própria consciência?
Na sua opinião, se a ruptura fosse real, ela poderia ser saudável para o ambiente de trabalho de alguma forma?
Não acho que poderia ser saudável. E, honestamente, algo que me tira o sono é o medo de que alguém veja a série e pense: “Ei, deveríamos realmente inventar isso”. Espero que nunca aconteça. Entendo o impulso. De novo, tudo começou como uma fantasia que eu mesmo tive, sobre não precisar vivenciar o trabalho. Mas um dos temas principais da série é que, no final das contas, é mais saudável e melhor para nós sermos pessoas completas. É importante abraçarmos todas as partes complicadas de nós mesmos e da nossa vida, porque podemos crescer com elas e nos tornar mais fortes.
A primeira temporada foi gravada durante a pandemia e lançada em 2022, quando as coisas começaram a voltar ao “normal”. De lá para cá, o ambiente corporativo mudou: muitas pessoas saíram do home office e retornaram ao trabalho presencial, algo que também aconteceu no Brasil. Isso influenciou a segunda temporada?
É engraçado porque, claro, nós não sabíamos que a pandemia estava por vir quando escrevi e desenvolvemos a série. Mas isso deu ao programa um contexto completamente novo, especialmente por causa do trabalho remoto — e aí chega, mais uma vez, essa vontade de não sentir o tempo passar, que motivou toda a temática da série. A ideia de as pessoas conseguirem fazer seu trabalho de casa, via Zoom ou outra ferramenta, à primeira vista parece algo positivo para os trabalhadores. Por outro lado, também rompeu ainda mais a barreira entre trabalho e vida pessoal. De repente, você pode fazer seu trabalho de qualquer lugar, e seu chefe sabe disso. Antes, quando você saía do escritório às 5 da tarde, ele não podia incomodá-lo. Agora, mesmo que não deva, ele sabe que pode. Acho que essa é uma das razões pelas quais a série ressoou tanto com as pessoas, especialmente no momento em que foi lançada.
Na série, o relacionamento entre os trabalhadores é um tema ardente e delicado. Também é assim na vida real. Como você enxerga essa faceta, em ambas as realidades?
A ideia de uma “família no trabalho” é algo muito complicado. Pode oferecer grande conforto e até salvação, ao permitir que você se conecte com as pessoas no trabalho que estão passando pelas mesmas coisas que você. Isso cria a sensação de que estão todos juntos nessa. Vemos isso na série: nesse mundo frio e estéril, há um coração humano pulsante no centro, representado por esse grupo de quatro pessoas que precisam apoiar uns aos outros. Ao mesmo tempo, a ideia de uma “família no trabalho” pode ser usada de forma tóxica e controladora, especialmente quando há um desequilíbrio de poder. Quando você é levado a acreditar que aquilo é uma família e deve estar feliz por fazer parte dela, deve ser grato, mas não recebe o mesmo em troca das pessoas no comando, a dinâmica é invertida. É esperado que você dê tudo de si, como faria por sua família, mas não recebe o mesmo nível de respeito em troca.
Já são duas temporadas de Ruptura, e o roteiro representa o ambiente de trabalho das formas mais absurdas possíveis. Você já consegue definir o que seria o “trabalho perfeito”, que tanta gente sonha em ter?
É uma ótima pergunta, e acho que, se eu tivesse uma resposta fácil para isso, a série seria muito mais curta. Já teria até acabado. Certamente me sinto extremamente sortudo por ter o trabalho que tenho, onde posso expressar minha criatividade e fazer algo que eu faria de bom grado, mesmo sem receber por isso. Mas, ao mesmo tempo, também luto com o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal o tempo todo. Penso sobre a série quando estou em casa, com amigos, com a família ou tentando dormir. É algo com que eu lido diariamente e, em alguns aspectos, sinto que só saberei como encerrar Ruptura completamente quando eu mesmo conseguir resolver melhor esse problema para mim.
Se você tivesse a chance, passaria pela ruptura?
Não, acho que não. Por algumas razões. Eu realmente amo o meu trabalho agora, e não há nada na minha vida profissional ou pessoal que eu sinta vontade de evitar vivenciar. Mesmo que seja difícil e desafiador, é algo que me faz crescer de uma forma positiva. Além disso, acredito que até mesmo as coisas difíceis nos fazem crescer. Precisamos estar dispostos a abraçar esses desafios para nos tornarmos mais plenamente humanos.