Revista Exame

omo uma marca de tênis virou símbolo global de desejo — sem gastar um centavo com publicidade

Sem publicidade, estoque nem investidores, a franco-brasileira Veja cresce e atrai celebridades ao se firmar como uma marca cult que une materiais ecológicos, impacto social e luxo

Luxo consciente: com design minimalista e foco em impacto social e ambiental, a Veja faturou cerca de 1,79 bilhão de reais em 2024 (Veja/Divulgação)

Luxo consciente: com design minimalista e foco em impacto social e ambiental, a Veja faturou cerca de 1,79 bilhão de reais em 2024 (Veja/Divulgação)

Juliana Pio
Juliana Pio

Editora-assistente de Marketing e Projetos Especiais

Publicado em 26 de junho de 2025 às 06h00.

Desde que os tênis deixaram as quadras para ocupar ruas, escritórios e passarelas, a publicidade passou a ser um dos motores da chamada cultura sneaker (expressão em inglês usada para designar esse tipo de calçado). Campanhas milionárias, slogans marcantes e contratos com atletas e celebridades ajudaram marcas como Nike, Adidas e Puma a criar não só produtos, mas estilos de vida. Do Just do it (“apenas faça”) ao tênis das três listras e à chuteira do Pelé, tudo é embalado por narrativas de performance, estilo e pertencimento. Nesse mercado, como em tantos outros em que o desejo é cuidadosamente fabricado, chamar a atenção é quase sempre pré-requisito para existir. Quase. A franco-brasileira Veja, lançada no Brasil com o nome Vert, escolheu outro caminho.

Reconhecida pelo “V” nas laterais de seus modelos, a marca leva ao pé da letra o sentido original da palavra “sneaker”, derivada do verbo inglês to sneak, que significa “mover-se de forma silenciosa”. Fundada há cerca de 20 anos pelos franceses Sébastien Kopp e François-Ghislain Morillion, a Veja nunca investiu em publicidade — nem mesmo agora, com a abertura de sua primeira loja na América Latina, em São Paulo. Ainda assim, cresce a dois dígitos e mantém uma base fiel, incluindo celebridades como Kate Middleton, Meghan Markle, Pedro Pascal e nomes brasileiros. Na capital paulista, os tênis aparecem em estilos variados, dos Faria Limers, que circulam pela zona sul, onde estão sedes do mercado financeiro, aos Ceciliers, moradores e habitués da região de Santa Cecília, no centro. No site da marca, os preços vão de 590 a 1.200 reais.

Sébastien Kopp e François-Ghislain Morillion: eles fundaram a Veja depois de verem de perto as falhas da indústria da moda — e decidiram fazer diferente (Veja/Divulgação)

“A alma do negócio são o projeto e a realidade por trás da marca”, diz Kopp. A ideia surgiu em 2003, após uma auditoria social em fábricas na Ásia, África e América do Sul. Ao testemunharem condições de trabalho precárias, os fundadores decidiram repensar os rumos de uma indústria que na época vivia o auge da fast fashion. Inspirados pela ­AlterEco, marca francesa de alimentos orgânicos e comércio justo, decidiram aplicar o modelo à cadeia de produção de um dos produtos mais simbólicos da geração e da paixão pessoal: o tênis. Em 2004, escolheram o Brasil para instalar a produção, atraídos pelas matérias-primas disponíveis e pela legislação trabalhista local. De lá para cá, mergulharam em regiões como a Amazônia, onde conheceram famílias extrativistas que produzem borracha de forma sustentável, e o Ceará, com agricultores que cultivam algodão orgânico.

Além de priorizar a transparência nas comunicações, a Veja segue a “política dos zeros”, com base em quatro pilares: zero investidor, para garantir crescimento orgânico e foco no comércio justo e agroecologia; zero estoque, para evitar produção acelerada e respeitar os ciclos naturais; zero dívidas, que assegura liberdade financeira alinhada aos valores da marca; e zero publicidade, direcionando recursos a preços justos e inovação em processos e materiais. “Prefiro valorizar quem extrai a borracha nativa ou quem trabalha na fábrica. Isso importa mais do que pagar milhões a uma estrela do esporte. A publicidade pode ter sido a alma do negócio nos anos 1980 e 1990, e esse mundo ainda existe. Mas, para mim, soa ultrapassado”, diz Kopp. Ele afirma que grandes marcas destinam até 70% do custo de um tênis à publicidade, e só 30% a materiais e produção. “A Veja segue na contramão e investe na própria cadeia produtiva.”

Vida longa: incentivo ao reparo e à assistência para prolongar o uso dos tênis (Veja/Divulgação)

A empresa faturou 280 milhões de euros em 2024 — cerca de 1,79 bilhão de reais —, alta de 14% sobre 2023. Segundo os fundadores, pagaram até quatro vezes mais que a média de mercado pela borracha usada nos solados. Foram 900 toneladas compradas de 20 associações com 2.800 famílias extrativistas. Também adquiriram 250 toneladas de algodão orgânico de 1.500 famílias no Brasil e no Peru, com contratos fechados diretamente com as associações no início de cada safra.

A marca lança duas coleções por ano, adaptadas a cada hemisfério. Até a Primavera-Verão 2025, todas as linhas principais, exceto a performance, terão forros de poliéster feito com PET reciclado, usado desde 2015. Sem rastreabilidade no mercado, a empresa criou sua própria cadeia com a Rede de Catadores do Sul e Sudoeste de Minas Gerais. Em 2024, o projeto envolveu 13 associações e 200 pessoas, que coletaram 120 toneladas de PET — cerca de 6 milhões de garrafas.

O primeiro lançamento da Veja, em 2005, teve 5.000 pares. Hoje, a marca produz mais de 3,5 milhões por ano, número ainda modesto diante de concorrentes que fabricam centenas de milhões. A produção segue princípios do comércio justo e depende de matérias-primas como borracha extraída de forma sustentável no Norte do Brasil, algodão agroecológico do Nordeste e Peru, e couro curtido com menos químicos, proveniente de propriedades certificadas do Sul do Brasil e do Uruguai. Os calçados são vendidos em mais de 100 países. A produção é majoritariamente brasileira, com fábricas no Rio Grande do Sul e no Ceará, além de uma unidade em Portugal. A empresa mantém escritórios no Brasil e bases em Paris, Nova York e Seul. Desde a criação, lançou mais de 30 modelos, incluindo coleções unissex e running, alinhadas à demanda crescente.

Conexão Brasil-Paris

Em Paris, a reportagem visitou o escritório da Veja, em Montmartre, que funciona como uma extensão do Brasil. Instalado em um antigo prédio que já abrigou a gráfica do Partido Comunista, o espaço traz referências brasileiras, como letreiros em neon do artista Kleber Matheus na entrada e fotos de Oscar Niemeyer feitas por Ludovic Carème, que decoram a sala de reunião. Cerca de 300 funcionários trabalham ali, entre brasileiros e estrangeiros que falam ou aprendem português em aulas oferecidas pela própria empresa, refletindo a importância do Brasil — o terceiro maior mercado da marca.

“Desde 2015, investimos em divulgar nossa cadeia produtiva. Jornalistas e influenciadores visitam o Acre e outras regiões para conhecer uma realidade distante do cotidiano urbano”, diz Kopp. “Muitas pessoas estão ativas na internet, mas poucas sabem como é o cultivo do algodão, o impacto dos agrotóxicos ou a origem dos produtos que consomem. É isso que queremos revelar.”

No escritório parisiense, a Veja mantém equipes administrativas, como e-commerce e design, mas não tem um grande departamento de mar­keting, ao contrário de outras marcas do setor. A comunicação global é feita por uma equipe de 30 pessoas, que cuidam da imprensa, das redes sociais e ativações pontuais, sem uso de mídia paga. Na América Latina, a área é liderada por Fernanda Almeida, que aposta em experiências que geram engajamento e conteúdo orgânico.

“Buscamos conectar produtos a vivências reais”, afirma. Recentemente, o lançamento de um tênis de trilha incluiu caminhadas por rotas urbanas pouco conhecidas em São Paulo. “Os convidados participaram ativamente, usando o produto.” Com um orçamento que reflete o tamanho da área, diz Almeida, a estratégia é formar brand advocates, pessoas que promovam a marca espontaneamente. “Comunicamos de forma autêntica e sensorial, criando verdadeiros brand lovers no Brasil e no exterior.”

De Vert para Veja

Com design minimalista e atemporal, a Veja aposta há mais de 15 anos em colaborações para fortalecer sua imagem e inovar. Parcerias com grifes, artistas, designers, clubes de corrida e cidades como Berlim e São Paulo permitem testar materiais e novas ideias. “As collabs duram de meses a dois anos e sempre associam uma cadeia produtiva, como o PET reciclado na parceria com a Live!”, diz Jordanne Green, responsável pelo design. Entre os nomes que já participaram como colaboradores estão o estilista Alexandre Herchcovitch e o grafiteiro pernambucano Derlon Almeida.

A estratégia ajudou a consolidar a marca no Brasil, que até março do ano passado usava o nome Vert por registro. Presente desde 2004, só começou a vender no país em 2013, depois de se firmar na Europa e nos Estados Unidos. Com a resolução do impasse, adotou o nome Veja no Brasil, convidando o consumidor a “olhar além do produto”. De lá para cá, toda a coleção passou a ser comercializada localmente, inclusive colaborações internacionais que, embora produzidas no país, não eram vendidas por aqui.

Avessa à publicidade tradicional, a marca conquista público de forma orgânica, o que fortalece sua imagem. No ano passado, uma foto do filho do tenista Rafael Nadal — patrocinado pela Nike — usando tênis da Veja em Roland Garros ­chamou a atenção. “Fruto do propósito e da qualidade do produto”, diz Sébastien Kopp. Segundo ele, a empresa investe todos os recursos no projeto e mantém vínculo direto com a cadeia produtiva. “É uma abordagem humana, com base em relações de longo prazo. Temos produtores conosco há 20 anos — isso toca as pessoas.”

O luxo do propósito

A Veja se consolidou como marca cult ao unir compromisso socioambiental e sofisticação em um mercado altamente competitivo. Transparente, detalha fornecedores, práticas trabalhistas, contratos e certificações em seus canais. Para muitos consumidores, o tênis com “V” virou símbolo de consciência ambiental, informação e bom gosto — um luxo com propósito, que explica o hype.

Para Ulisses Zamboni, consultor e chairman da agência Santa Clara, a estratégia diferencia a Veja de concorrentes commoditizados, como Nike e Adidas, e dialoga com os valores das gerações Alpha e Z. “Marcas contemporâneas constroem comunicação com base no engajamento da comunidade, oferecendo produtos e narrativas alinhados a temas relevantes”, diz Zamboni. Collabs, eventos exclusivos e ações de experiência, estratégias herdadas do universo do luxo, substituem a publicidade tradicional e reforçam o valor e a inovação da marca. Patagonia, AllBirds e Alo Yoga seguem caminho semelhante, numa lógica conhecida como community ou lifestyle marketing (“marketing de comunidade” ou “estilo de vida”). “É quando a marca deixa de ser apenas uma empresa e se transforma em um movimento”, explica.

O desafio, segundo Marcus Nakagawa, professor na ESPM, é ganhar escala num mercado em expansão. A Euromonitor projeta que, até 2029, a categoria de calçados inspirados em esportes deve dobrar no Brasil, de 6,4 bilhões para 12,2 bilhões de reais. Aqui incluem marcas como Veja, Converse e Vans, além de calçados esportivos com apelo fashion. “Ao incorporar compromissos ambientais e sociais, a Veja responde a estudos que mostram consumidores dispostos a pagar mais por produtos sustentáveis e alinhados ao ESG”, afirma Nakagawa. Globalmente, o segmento deve saltar de 426 bilhões para 572 bilhões de reais entre 2024 e 2029. “Todas as empresas terão de prestar contas. Com inteligência artificial, drones e registros visuais, rastrear a cadeia produtiva será mais fácil. É questão de tempo e regulamentação, o que vai pressionar as marcas a se diferenciarem.”

Na Veja, o melhor marketing talvez seja justamente não fazer mar­keting. “Somos a pior marca nisso, e está tudo bem. Preferimos investir em projetos com propósito, não em storytelling”, afirma Kopp. A marca reconhece que nenhum tênis é totalmente sustentável, mas adota medidas para mitigar impactos ambientais de um dos setores mais poluentes da indústria da moda. “Nunca quisemos ser perfeitos, isso é impossível. Seguimos melhorando, mesmo que o consumidor não perceba ou não valorize todos os detalhes desse esforço”, diz François Morillion, mostrando que a autenticidade muitas vezes é a base mais forte para um negócio de sucesso.

*Juliana Pio, de Paris (A jornalista viajou a convite da Veja)


ESTREIA NA AMÉRICA LATINA

Loja da Veja, em São Paulo: produtos e serviço de reparo de tênis (Veja/Exame)

A Veja inaugurou sua primeira loja na América Latina em junho, na Rua Oscar Freire, em São Paulo, duas décadas após sua fundação e pouco mais de um ano depois de aposentar o nome Vert no Brasil. Com 600 m2, a unidade vai além do varejo: funciona como espaço de ativações sustentáveis, seguindo o conceito das outras nove lojas da marca. A proposta se alinha à ideia dos “terceiros espaços”, termo do sociólogo Ray Oldenburg para lugares que não são nem casa nem trabalho, mas ambientes de convivência que reforçam o senso de comunidade. “Utilizamos esses espaços para romper barreiras e promover eventos e colaborações”, diz Sébastien Kopp. A loja também oferece serviços de conserto e limpeza de tênis de qualquer marca, incentivando a economia circular. Desde 2020, mais de 45.000 pares foram reparados globalmente. A primeira unidade do projeto surgiu em Darwin, Bordeaux, com foco em inovação social e ecológica. Lá, há venda de tênis com defeitos e ponto de reciclagem. Em Paris, a General Store oferece restauração, protótipos exclusivos e produtos de marcas com valores éticos. Para celebrar a inauguração e os 471 anos de São Paulo, foi lançada a edição limitada V-90 São Paulo Mon Amour, com 471 pares numerados e o número 011 bordado, referência ao DDD da cidade. A Veja também ampliou seu portfólio com sandálias e prevê uma nova collab com a Catarina Mina, especializada em moda artesanal.


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