Revista Exame

Parreiras ao sol

O aquecimento global está interferindo no que está dentro de sua taça

East Sussex, Inglaterra: o sul do país tem recebido cada vez mais produtores da região francesa de Champagne (Alamy/Fotoarena)

East Sussex, Inglaterra: o sul do país tem recebido cada vez mais produtores da região francesa de Champagne (Alamy/Fotoarena)

Tânia Nogueira

Tânia Nogueira

Publicado em 10 de setembro de 2020 às 06h00.

Da Idade Média a 1987, a colheita de uvas na Borgonha começava perto do dia 28 de setembro. Dois dias para a frente, dois dias para trás. Mas sempre na mesma época. A partir daí, a data começou a ser antecipada. Hoje, as uvas atingem o ponto ideal de maturação cerca de um mês antes. A mudança está registrada em um estudo da União Europeia de Geociências publicado no periódico Climate of the Past e confirma o que os produtores de vinho no mundo todo já sabem: as mudanças climáticas estão alterando os vinhos que bebemos.

“Ao contrário de certos presidentes, eu acredito nas mudanças climáticas”, diz o italiano Angelo Gaja, renomado produtor de barbarescos e barolos, no Piemonte, e brunellos di Montalcino e supertoscanos, na Toscana, trazidos para o Brasil pela Mistral. “As mudanças climáticas se transformaram numa questão política, mas nós que trabalhamos com agricultura vemos isso no dia a dia. A gente vê as plantas brotando mais cedo, as secas fora de época, as tempestades violentas.”

Há mais de uma década Gaja vem introduzindo biodiversidade em seus vinhedos para proteger a terra contra a erosão e trazer vida de volta ao solo. O resultado são vinhedos lindos, onde as árvores convivem com tipos diferentes de flores, abelhas, borboletas e pássaros. E, segundo ele, gerando uvas mais saudáveis. “As plantas precisam ser resilientes para resistir às mudanças que estão por vir”, diz. A fé na força de suas uvas, no entanto, não o impede de prever uma revolução. “Os vinhos deste século serão muito diferentes daqueles do século passado.”

Já são, em muitos quesitos. Com o calor as uvas tendem a concentrar mais material fenólico e açúcar. Rendem vinhos mais encorpados e alcoólicos. No próprio Piemonte, por exemplo, hoje é mais comum encontrar vinhos com teor alcoólico mais elevado do que há 30 anos. Os taninos estão mais maduros, resultando em vinhos mais prontos e fáceis de tomar desde o início. Mudanças na vinicultura nem sempre são para pior.

Há quem menospreze o risco das alterações do clima. “Nos próximos 20 anos, não vejo ameaça importante”, diz Alor Lino, proprietário da importadora Anima Vinum, especializada em vinhos da Borgonha. “Na Borgonha, os vignerons [vinhateiros] estão adotando melhores práticas no cultivo e na vinificação, obtendo excelente equilíbrio e leveza nos vinhos acabados. Por enquanto, acredito mais em melhorias do que em riscos.”

Nem todos concordam. “Veja a safra de 2003 na França, por exemplo”, diz o francês Cédric Grelin, diretor de produto da importadora PNR Group. “Logo que foi lançada, achavam que seria a melhor safra de todos os tempos. Foi um ano muito quente. Hoje os vinhos dessa safra não estão tão bons quanto se imaginava. Falta acidez. O calor acaba com a acidez, e a acidez é a espinha dorsal de um vinho.”

Algumas iniciativas tentam desacelerar o processo. Desde 2017 acontece o Tasting Climate Change, evento que reúne palestras de especialistas em mudanças climáticas e profissionais da indústria do vinho. No ano seguinte, a cidade do Porto, em Portugal, foi sede da conferência internacional Climate Change Leadership, que teve o ex-presidente americano Barak Obama como maior estrela e tratou das relações entre vitivinicultura e mudanças climáticas. Em 2019, os grupos Família Torres, da Espanha, e ­Jackson Family Wines, dos Estados Unidos, fundaram o Wineries for Climate Action, com foco na redução da pegada de carbono da indústria do vinho.

Borgonha, França: nas últimas três décadas, a época da colheita de uvas foi antecipada em cerca de um mês (Alamy/Fotoarena)

Produtores de uvas no mundo todo estão investindo em tecnologia. Clones mais resistentes, sistemas de irrigação, sistemas de poda que mantêm folhas fazendo sombra sobre as uvas e várias outras técnicas. “Mas a falta de invernos rigorosos também é um problema”, diz Grelin. “A planta não descansa como deveria.” Grelin acredita que a solução passará por encontrar novas castas que se adaptem ao clima.

Algumas variedades, tanto brancas quanto tintas, se dão melhor no calor do que outras. O engenheiro agrônomo Mauro Zanus, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho, explica que variedades de ciclo vegetativo mais curto (aquelas que costumam ser colhidas mais cedo), como a pinot noir, têm maior dificul­dade de se adaptar a climas quentes. “Quando faz um pouco de calor, a variedade de ciclo mais curto brota muito cedo”, diz Zanus. “Muitas vezes ainda no inverno. Aí vem uma geada e mata o broto.”

Mudar as variedades plantadas em uma região representa um custo financeiro significativo em qualquer parte do mundo. Em países do Novo Mundo, como Brasil, Chile ou Argentina, porém, o problema é menor do que na Europa, onde os vinhos de cada região têm um estilo muito definido. “O que está em risco é a tipicidade dos vinhos”, diz Zanus. São séculos de cultura que vão por água abaixo. No ano passado, o sindicato de produtores de Bordeaux e Bordeaux Supérieur aprovou estudar a introdução de sete novas castas entre as variedades permitidas, algumas delas estrangeiras: touriga nacional, marselan, arinarnoa, castets, alvarinho, petit manseng e liliorila.

Fiorde de Luster, Noruega: a região oeste do país escandinavo tem recebido cada vez mais vinícolas (Alamy/Fotoarena)

Buscar terrenos mais frescos, com menor exposição solar ou mais altitude, é outra solução. Em Mendoza, na Argentina, os vinhedos estão avançando para o alto na Cordilheira dos Andes. Na Borgonha, o topo das montanhas, que costumava ser desprezado por ser muito frio, está produzindo os deliciosos Hautes-Côtes de Beaune e Hautes-Côtes de Nuit.

E no Brasil? A cultura por aqui ainda é muito recente e os vinhos do Brasil ainda estão formando sua tipicidade. Mudaram muito nesses anos, mas é difícil dizer se a causa é o aquecimento global. Não será surpresa, no entanto, se um dia as vinícolas brasileira tiverem de se instalar no Chile. Ou quem sabe na Argentina?


(Arte/Exame)

1. Champanhe inglês
A viúva Clicquot deve estar se remexendo no túmulo. Cresce o número de casas de champanhe que produzem espumantes na antes gelada Inglaterra. A maison pioneira foi a Vranken-Pommery. O Louis Pommery England Brut, em parceria com a inglesa Hattingley Valley, leva uvas de Hampshire, Essex e Sussex. Não vem para o Brasil.

2. Escandinávia temperada
A Escandinávia sempre foi fria demais para o cultivo de uvas, mas hoje diversas vinícolas estão instaladas lá. “Com as mudanças, devemos ver mais vinícolas por estes lados”, diz Sven Moesgaard, da vinícola Skaersogaard Vin, em Almind, no oeste da Dinamarca. Entre seus vinhos, que não são exportados para o Brasil, está o premiado espumante Don’s.

3. Litoral do Alentejo
O Alentejo tem se tornado uma região cada vez mais quente. Aumenta a procura por vinhedos por lá, só que em zonas mais úmidas. Antes considerado um terroir menos interessante por ser mais frio do que o interior, o litoral tem sido procurado. A vinícola Cortes de Cima, cujos vinhos são trazidos para o Brasil pela Adega Alentejana, produz na costa brancos como Cortes de Cima Alvarinho, feito com 100% de uvas da Vila Nova de Milfontes.

4. Ice wine da Transilvânia
O ice wine é um vinho licoroso, feito de bagos de uvas congelados na videira. Nesse processo, a uva perde água e concentra açúcar. Em 2019, nenhuma das 13 regiões vinícolas da Alemanha teve temperatura baixa para produzir essa categoria. Na Áustria, o produtor Gerhard Kracher, da vinícola Kracher, cujos vinhos são importados pela Grand Cru, só conseguiu produzir seu tradicional ice wine, o Eiswein Welschriesling, em quatro safras. Por esse motivo, fez uma parceria com a vinícola romena Liliac, com a qual está produzindo o Transylvanian Ice Wine.

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