Revista Exame

Para a Natura, é mudar ou mudar

Depois de tanto zelo para não trair as vendedoras, a Natura acabou sendo a traída da história

Fábrica da Natura: as revendedoras não estão satisfeitas  (Germano Luders/Exame)

Fábrica da Natura: as revendedoras não estão satisfeitas (Germano Luders/Exame)

DR

Da Redação

Publicado em 9 de novembro de 2015 às 17h21.

São Paulo — Quando a manicure paulista Valdenice Souza decidiu revender produtos de beleza, em 2006, fez uma pesquisa com suas clientes para identificar as marcas preferidas. Feita a enquete, não teve dúvidas: passou a andar para tudo que é lado com catálogos das fabricantes de cosméticos Natura e Avon, líderes absolutas do mercado de vendas diretas de cosméticos no país.

Por um tempo, funcionou bem: nos melhores meses, ela ganhava até 1 300 reais no novo negócio. Mas, nos últimos dois anos, algo começou a mudar. As clientes passaram a pedir opções mais baratas — e Valdenice teve de oferecer catálogos de outras três empresas: a americana Jafra, a brasileira Abelha Rainha, especializada na classe C, e O Boticário.

“As clientes cansam de produtos parecidos e pedem mais opções de preço também”, diz. Casos como o de Valdenice viraram um pesadelo para a Natura, maior fabricante de cosméticos do Brasil. Para entender o motivo, basta multiplicar as mudanças recentes vividas por Valdenice por 1,3 milhão, o número total de “consultoras” de vendas da Natura no Brasil.

O americano Alan Kennedy, por décadas o responsável pela área comercial da Avon, dizia que o fundamental no mercado de venda direta é convencer as vendedoras — as consumidoras vêm em segundo lugar, segundo ele. Por isso, as empresas sempre evitaram confronto com as revendedoras.

Naturalmente, sua estratégia de vendas acabava um tanto engessada — vender em outro canal seria uma traição que poderia colocar tudo a perder. A fidelidade às consultoras fez com que a Natura abandonasse pelo menos cinco projetos para diversificar as vendas nos últimos anos. Conselheiros e diretores sempre concluíram que não queriam comprar essa briga.

Mas, enquanto a Natura ficava imobilizada, o mercado mudou. Hoje, quem está dando cada vez menos bola à Natura são as próprias revendedoras. “Temos de admitir claramente que hoje nós compartilhamos o canal com outras empresas”, disse Roberto Lima, presidente da Natura, em teleconferência com analistas no fim de outubro. “Temos de reconquistar a preferência das consultoras.”

Ou seja: depois de tanto zelo para não trair as vendedoras, a Natura acabou sendo a traída da história. A oferta de produtos disponíveis para quem quer revender cosméticos só faz crescer. Em cinco anos, o número de empresas vendendo cosméticos e itens de higiene pessoal porta a porta mais que dobrou no Brasil. Já são mais de 300.

Há seis anos, 70% das consultoras vendiam apenas Natura e Avon, se­gundo uma estimativa da consultoria DirectBiz. Hoje, 70% delas vendem mais de três marcas antes irrelevantes ou inexistentes, como Di Brescia, Eudora, Hinode, Inspiração, Jafra, Jequiti ou Racco.

A Natura começou a ter concorrência de empresas que também têm a sustentabilidade como apelo, como a Naturais da Amazônia e a Nação Verde. Resultado: a participação da Natura na venda direta de itens de beleza e higiene pessoal caiu de 37% para 28% desde 2010. A receita média de cada revendedora diminuiu 8% só no último trimestre, acentuando a queda do último ano.

Como a Natura não tem outro canal de vendas relevante, esse recuo pesa nos resultados. A receita no Brasil caiu 6% nos primeiros nove meses do ano. “Um milhão de vendedoras é um diferencial importante, mas o modelo está cansado”, diz Guilherme Assis, analista do banco Brasil Plural. Hoje, a Natura se vê diante de um desafio duplo: reconquistar as vendedoras e tirar de vez do papel os planos de diversificação.

A tarefa é tão complexa que os três principais acionistas e cofundadores da Natura, Guilherme Leal, Luiz Seabra e Pedro Passos, reaproximaram-se do dia a dia da empresa — em especial Passos, o mais novo dos três, que é o presidente em exercício do conselho de administração. O presidente, Roberto Lima, ex-presidente da Vivo, conseguiu bons resultados na administração do dia a dia.

Diminuiu as despesas em 15% neste ano e negociou com empresas de telefonia um pacote para as consultoras, para muni-las com aparelhos novos que processem pagamentos com cartão de crédito ou débito. Também foi o principal promotor de um novo projeto de vendas em farmácias. “Lima deu uma oxigenada importante na empresa.

Mas a mudança cultural à frente é tão grande que pode exigir novas mudanças, com maior participação dos acionistas”, afirma um executivo próximo à empresa. A Natura não deu entrevista. Por escrito, negou qualquer mudança.

As mudanças 

Fato é que pela primeira vez os conselheiros da Natura chegaram ao consenso de que a companhia precisa cortar a dependência das consultoras e entrar de cabeça nas vendas “multicanal”. Em setembro, a empresa começou um teste de vendas em farmácias. Colocou os produtos da linha Sou, de preços mais baixos, em 30 pontos da Droga Raia nas cidades paulistas de Campinas, Valinhos e Vinhedo.

A experiência serviu para reforçar o que estudos internos já indicavam: a marca perdeu força principalmente com as revendedoras, mas não com o consumidor. EXAME apurou que a empresa decidiu abrir lojas próprias já em 2016, com foco em jovens das classe A e B, que hoje não são a prioridade das consultoras.

A Natura mapeou 200 shoppings voltados para essa classe de renda e está cruzando dados de vendas e de concentração de vendedoras por região e de renda. Ao contrário do que aconteceu com a Rede Natura, um canal de venda online criado em 2014 e que é intermediado pelas consultoras, as lojas não terão a participação delas. Além disso, a empresa continuará investindo na internacionalização da marca.

As vendas fora do Brasil cresceram 26% no ano passado — e, com o mercado doméstico estagnado, já respondem por 40% do faturamento da Natura. Em paralelo, a Natura tenta reconquistar as vendedoras desiludidas. A maior reclamação delas é que a Natura não ouve suas sugestões sobre ajustes no processo de vendas.

A empresa impõe um valor mínimo de pedidos de 300 reais para a revendedora, o dobro do que pede O Boticário (a paulista Hinode, por exemplo, não tem valor mínimo). Enquanto não atingir esse volume, a vendedora não pode fazer novos pedidos — azar da cliente que comprou um batom no início do mês e vai ficar mais tempo sem o produto.

A remuneração da consultora é de 30% do valor do produto, na média de mercado, mas a americana Mary Kay, que avança nas classes A e B, oferece descontos que fazem com que a revendedora chegue a ganhar 40% do valor. Como reação, além de oferecer mais tecnologia às vendedoras, a Natura começou a fazer um estudo detalhado sobre as carências de sua rede.

A empresa está identificando regiões em que há excesso ou carência de oferta e que tipo de produto oferecer. Assim, poderá instruir vendedoras especializadas em segmentos de clientes. Na rede de lojas, a Natura quer diminuir o atrito com as revendedoras por um sistema que identifica o consumidor — se aquele cliente já compra com uma revendedora, ela pode ganhar promoções para manter a clientela.

É um caminho sem fim. Novas marcas continuam chegando ao país, como a francesa Jeunesse, que comprou a marca de suco Monavie Mynt em março deste ano e vai transformar os revendedores de sucos em consultores de beleza e saúde. A fabricante de cosméticos multinacional Coty comprou, em novembro, a divisão de cosméticos da brasileira Hypermarcas e também deve acirrar a briga no varejo.

Enquanto isso, analistas preveem que o lucro da Natura vai continuar a encolher no Brasil. Nos últimos três anos, o resultado total caiu de 874 milhões de reais para 593 milhões. “Ainda não temos evidências suficientes de que a companhia terá sucesso na transição de venda direta para multicanal”, diz Fabio Monteiro, analista do BTG, em relatório. Mas a empresa tem pontos a seu favor.

A Natura não está endividada como centenas de grandes empresas brasileiras — sua dívida equivale a 1,1 vez a geração de caixa. A empresa tem folga para fazer ajustes — com a revisão de investimentos, gastos e gestão do capital de giro, a geração de caixa livre saltou de 33 milhões de reais, no ano passado, para 649 milhões, neste ano.

O desemprego no Brasil ainda pode voltar a atrair o interesse das consultoras pela venda direta. Mas, em tempos de consumo multicanal, a Natura precisa convencer não só as vendedoras mas, principalmente, os consumidores de que é a melhor opção entre as centenas de concorrentes. Até o fechamento desta edição, eram 311 — e contando.

Texto atualizada em 9/11/2015 com correção de informação sobre a empresa Jafra

Acompanhe tudo sobre:BelezaCosméticosDiversificaçãoEdição 1101EmpresasEmpresas abertasEmpresas brasileirasIndústriaindustria-de-cosmeticosNatura

Mais de Revista Exame

Invasão chinesa: os carros asiáticos que chegarão ao Brasil nos próximos meses

Maiores bancos do Brasil apostam na expansão do crédito para crescer

MM 24: Operadoras de planos de saúde reduzem lucro líquido em 191%

MM 2024: As maiores empresas do Brasil