Revista Exame

Conselhos fiscais são uma boa ideia (que não sai do papel)

Como a criação de um conselho independente para avaliar a política fiscal, adotado em países como Canadá e Chile, pode melhorar a gestão das contas do governo

Navios da marinha canadense: segundo o conselho fiscal do país, é mais barato renovar a frota nos Estados Unidos (Jacek Szymanski/EXAME)

Navios da marinha canadense: segundo o conselho fiscal do país, é mais barato renovar a frota nos Estados Unidos (Jacek Szymanski/EXAME)

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Da Redação

Publicado em 29 de abril de 2014 às 19h13.

São Paulo - Tem sido uma tarefa ingrata acompanhar as projeções econômicas oficiais e os dados sobre as contas públicas no Brasil. De uns tempos para cá, as estimativas do governo para os principais indicadores quase nunca estão de acordo com a realidade. Basta lembrar as previsões do ministro da Fazenda, Guido Mantega.

No início de 2013, ele afirmou que o produto interno bruto cresceria de 3% a 4% no ano. O prognóstico provou ser superestimado: a economia do país se expandiu 2,3%. Nos dois anos anteriores, o ministro já havia se notabilizado por previsões ainda mais longe do alvo. Também parece não ter fim a inventividade para encontrar formas de cumprir metas que, sem um truque ou outro, não seriam atingidas.

De acordo com o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central, a inclusão de receitas não recorrentes e outros artifícios permitiram ao governo anunciar um superávit primário — a economia feita para pagar encargos da dívida pública — de 1,9% do PIB em 2013. “Sem acréscimos indevidos, como adiantamentos ao Tesouro de dividendos de estatais, o superávit seria só de 1,1%”, diz Schwartsman. 

A situação poderia ser diferente se o Brasil já tivesse constituído um conselho fiscal, espécie de agência pública independente com a missão de acompanhar e avaliar a gestão das contas do governo. Lá fora, os conselhos são conhecidos como budget watchdogs, ou “cães de guarda do orçamento”.

Embora tenham surgido há quase 70 anos — o mais antigo foi criado na Holanda em 1945 —, esses guardiões dos cofres públicos começaram a se disseminar com mais força após a crise financeira de 2008. De lá para cá, foram criados 14 dos 29 conselhos hoje atuantes.

Os conselhos não mandam nos governos — eles apenas funcionam como observador crítico e como fomentador de propostas para melhorar a gestão fiscal. A palavra final, portanto, continua sendo do governante. Mas as críticas acabam surtindo efeitos importantes.

Afinal, trata-se de um órgão formado por especialistas em gestão pública com independência de ação — por isso mesmo, geralmente os membros são indicados pelos parlamentos, não pelo Executivo. Um dos mais recentes é o do Chile, que formou seu conselho em 2013 com cinco especialistas independentes.

“Após a crise, cresceu a pressão das sociedades e dos mercados para que os governos tenham políticas fiscais realistas e façam previsões mais precisas”, diz Teresa Curristine, economista sênior para a área fiscal do Fundo Monetário Internacional e autora de um estudo sobre os conselhos.

No Brasil, tanto no governo quanto no Congresso Nacional, pouca gente parece se comover com o tema. A Lei de Responsabilidade Fiscal, em vigor desde 2001, previu a formação de um conselho para colaborar na análise das políticas fiscais. Um projeto de lei para regulamentar a criação do órgão está parado na Câmara dos Deputados há 14 anos.

“Nos últimos anos, ninguém em Brasília deu prioridade para levar esse projeto adiante”, afirma o economista Paulo Rabello de Castro, sócio da RC Consultores. “Com o conselho fiscal, o país ganharia um corpo técnico capaz de fazer uma crítica institucional à gestão pública.”

Rabello de Castro é um dos mentores do Movimento Brasil Eficiente, criado por 70 entidades da sociedade civil para promover a reformulação tributária. Seus integrantes já pediram apoio ao ministro Guido Mantega para tirar o conselho do papel.

“Até agora não tivemos resposta”, diz Rabello de Castro. O Movimento Brasil Eficiente presta consultoria ao relator do projeto, o deputado federal Manoel Junior (PMDB-PB). A intenção é deixá-lo pronto para ir a votação no plenário da Câmara ainda neste ano.

A experiência internacional mostra que a sociedade quase sempre sai ganhando com a constituição de conselhos fiscais. Teresa Curristine, do FMI, verificou aumentos de 0,3% a 1,5% do PIB no resultado primário dos governos em países que adotam conselhos.

Ela chegou a essa conclusão depois de analisar os dados de 1990 a 2011 de 58 paí­ses, metade dos quais manteve conselhos fiscais ao longo do período. As projeções econômicas — fundamentais para o planejamento de empresas e investidores — também melhoraram.

O caso do Canadá é exemplar. Até 2008, quando os canadenses criaram seu conselho, o governo costumava errar as estimativas da arrecadação de tributos por uma margem média de 0,7% do PIB. Hoje, as previsões acertam praticamente no alvo. “Um conselho eficiente faz soar o alarme quando a política fiscal começa a dar errado”, afirma Teresa. “Isso obriga os governos a fazer projeções mais próximas da realidade.”

O conselho também pode se transformar numa consultoria para ajudar o governo a usar o dinheiro de forma mais eficiente. Recentemente, ao analisar um programa de renovação da frota da Marinha canadense, o conselho demonstrou que os novos navios de guerra podem custar 20% menos se, em vez de ser encomendados a empresas instaladas no Canadá, forem construídos em estaleiros americanos. 

Não há um único modelo para orientar a criação de um conselho fiscal. Alguns países optaram por formar agências públicas independentes. Outros o mantém ligado ao poder legislativo ou a órgãos como bancos centrais e departamentos de estatística.

O ponto em comum para um bom funcionamento é garantir autonomia diante das pressões governamentais — um risco sempre presente nesse tipo de trabalho. Recentemente, os vigilantes das contas públicas americanas enfrentaram uma situação difícil.

No início do ano, eles divulgaram um estudo mostrando que a proposta do presidente Barack Obama para aumentar o salário mínimo de 7,25 para 10,10 dólares por hora poderia causar desemprego. Segundo Douglas Elmendorf, presidente do conselho americano, a medida poderia provocar o fechamento de 500 000 postos de trabalho até o fim de 2016.

“Após a divulgação desses dados, membros do governo passaram a questionar sistematicamente a qualidade do trabalho realizado pelo conselho”, diz Philip Joyce, professor de finanças da Escola de Políticas Públicas de Maryland e autor de um livro sobre o conselho americano.

Numa situação dessas, é essencial que os conselheiros não se sintam vulneráveis nem ameaçados. Não está claro, no caso do projeto brasileiro, como a independência seria garantida. Mas esse é um aspecto que precisa ser especialmente cuidado se um órgão do tipo for adotado aqui, onde o governo não abre mão de mandar nas agências.

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