Revista Exame

Onde as máquinas (ainda) não tem vez

Em um ambiente dominado pela inteligência artificial, as habilidades humanas farão a diferença — para isso, o desafio das empresas é treinar as pessoas

Hospital Albert Einstein: o auxílio de robôs otimiza o tempo das cirurgias (Ricardo Correa/Exame)

Hospital Albert Einstein: o auxílio de robôs otimiza o tempo das cirurgias (Ricardo Correa/Exame)

Desde o início de abril, o agendamento de cirurgias no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, ficou mais ágil. O uso de uma ferramenta de inteligência artificial facilitou a comunicação das diversas áreas envolvidas em operações médicas, como as que cuidam da esterilização, da farmácia e da preparação das salas de cirurgias. A expectativa é que, com base no histórico da atividade de cada cirurgião, o tempo de espera seja reduzido e o hospital aumente sua capacidade diária de operações, realizando de três a quatro intervenções a mais, sem a necessidade de ampliar a estrutura física ou de pessoal.

A solução traz um novo desafio para os gestores do hospital: com a tecnologia cada vez mais presente, os profissionais farão menos tarefas técnicas e deverão se dedicar mais a práticas que exijam capacidades comportamentais. “O funcionário sempre vai ser o chancelador daquilo que a inteligência artificial oferece”, diz Sidney Klajner, presidente do Albert Einstein. “O trabalho médico, por exemplo, vai se concentrar na inteligência emocional, no relacionamento com pacientes e familiares.” Para isso, o hospital tem feito treinamentos em diversos setores, abordando temas como humanização, bioética e melhora na experiência do paciente.

A iniciativa de desenvolver habilidades humanas vai ao encontro de um estudo recente da consultoria Accenture. A pesquisa examina os potenciais de mudança no modo de trabalho em diversas profissões e sugere as competências que serão mais demandadas dos trabalhadores nos próximos dez anos. Na análise, a otimização do trabalho atual é considerada sob dois aspectos: automação, quando a função pode ser totalmente feita por máquinas; e aumento do tempo, quando a função é apenas auxiliada pela tecnologia. “Se não conseguirmos preparar a força de trabalho com novas habilidades, poderemos perder muitas oportunidades”, diz Armen Ovanessoff, diretor do braço de pesquisas da Accenture. Ele afirma que o Brasil pode deixar de ter um acréscimo anual de 1,7% do PIB até 2028 caso a mão de obra não seja capacitada para as novas exigências. Para o conjunto de países do G20, o risco de perda projetada no período é de até 11,5 trilhões de dólares se as pessoas não forem devidamente preparadas.

De acordo com o estudo, quatro habilidades serão mais demandadas no futuro em todos os setores e cargos: raciocínio complexo, criatividade, inteligência socioemocional e percepção sensorial. A lista tem pontos em comum com um estudo do Fórum Econômico Mundial sobre as competências esperadas para 2020, no qual também são citados conhecimentos como gestão de pessoas, resolução de problemas complexos e capacidade de negociação. “São competências cada vez mais importantes, mas que não podem ser treinadas em escolas”, afirma Ovanessoff. “Você não se torna criativo só lendo e estudando. É preciso ter experiências, fazer o treinamento no próprio trabalho.”

A capacitação para esse futuro ainda incerto é um desafio enorme. “É difícil prever os empregos do futuro, assim como há alguns anos era inimaginável pensar em Airbnb, Uber ou impressora 3D”, diz Marcus Ronsoni, diretor da Sociedade Brasileira de Desenvolvimento Comportamental, cujo foco é evitar o desperdício do potencial humano nas organizações. Segundo Ronsoni, uma das certezas é que vivemos num ambiente Vuca (sigla em inglês para “volátil, incerto, complexo e ambíguo”), termo recentemente incorporado ao vocabulário corporativo. No Brasil, o treinamento nas novas habilidades ainda é incipiente, mas algumas empresas já enxergam a questão como uma prioridade — e buscam soluções de acordo com suas realidades.

Para a Volkswagen do Brasil, por exemplo, a ausência de habilidades humanas mostrou suas consequências em uma situação não relacionada com a tecnologia. Com um bom número de gestores mais velhos, a montadora percebeu choques geracionais entre eles e os funcionários mais jovens. “A geração anterior era mais subserviente: o gestor dava ordens e o subordinado aceitava”, diz Marcellus Puig, líder de recursos humanos da empresa na América do Sul. “Hoje, a cultura deve ser mais aberta, menos hierárquica, com reconhecimento de trabalho e aceitação de críticas pelos gestores.”

Para solucionar o problema, a Volkswagen investiu no treinamento de competências humanas com o apoio da tecnologia. Desde outubro do ano passado, os gestores recebem um vídeo em realidade aumentada acompanhado de um texto que aborda temas como inovação, aproximação da chefia com os integrantes da equipe ou importância de receber feedbacks dos subordinados. A leitura é uma preparação para uma rodada de conversa presencial, quando os participantes dividem suas impressões sobre o texto e compartilham casos que ocorreram em suas equipes. O impacto da ação é mensurado pelo “barômetro de opinião”, uma pesquisa de clima que tem confirmado a eficiência desse tipo de iniciativa.

Apesar da importância que os gestores têm dentro de uma equipe, os treinamentos em habilidades comportamentais não devem ficar restritos às lideranças. “Precisamos de perfis mais transversais em todos os cargos”, diz Gustavo Leal, diretor de operações do Senai. “Os funcionários poderão até ser contratados pelo perfil técnico, mas a manutenção de seu emprego vai depender muito de suas competências em termos de atitude.” Em um contexto de indústria 4.0, Leal enxerga um operário de chão de fábrica exposto a um ambiente tecnológico e digital, tendo de interpretar dados e tomar decisões de forma mais complexa e menos braçal do que ocorre atualmente.

Fábrica da Volkswagen: treinamento para evitar o conflito de gerações | Divulgação

A Nestlé, do setor de alimentos, é uma das empresas que têm promovido o treinamento das competências humanas entre funcionários de todos os níveis hierárquicos. “Existem programas voltados para líderes, mas também trabalhamos com pessoal administrativo, aprendizes, estagiários e operários das fábricas”, diz Marco Custódio, vice-presidente de recursos humanos da Nestlé. “Isso vale para a estratégia de segurança e saúde, quando o trabalhador deve ter a iniciativa de usar equipamentos de proteção ou identificar e alertar riscos, por exemplo.” A Nestlé passou por um reposicionamento em 2018 e decidiu estimular quatro características nos funcionários: espírito de dono (ter autonomia), transparência (comunicar qualquer tema com clareza), colaboração (não trabalhar de maneira isolada) e olhar para fora (fazer comparações com o mercado para mudar atitudes internas). Alguns profissionais recebem treinamentos específicos. Os vendedores, por exemplo, aprendem técnicas de comunicação não violenta e de tomada de decisão.

Em alguns casos, o investimento na formação dessas características é feito antes mesmo da contratação, em dinâmicas com universitários e alunos de cursos técnicos. “Hoje, mais de 70% das empresas de grande porte não levam mais em conta o nome da faculdade para selecionar seus talentos. Elas estão mais dispostas a treiná-los”, diz Sofia Esteves, fundadora da consultoria Cia de Talentos. Sofia participou da criação de um grupo de 14 empresas que decidiram se unir para realizar atividades de desenvolvimento socioemocional com 5.000 universitários. Entre os temas abordados estão o autoconhecimento, a visão de negócios e a empatia. “Essas empresas investem financeiramente em jovens, mesmo sem a garantia de que eles se tornarão seus funcionários.”

Linha de produção da Ambev: foco em fases distintas da carreira | Germano Lüders

Na fabricante de bebidas Ambev, uma das empresas participantes do grupo, o treinamento de estudantes não anula as ações educativas dos funcionários atuais. “Capacitamos os trabalhadores em competências humanas com foco mais individual, adaptando os currículos para o momento da carreira de cada pessoa”, diz Daniel Spolaor, diretor de gente e gestão da Ambev. No primeiro ano de empresa, os jovens líderes passam pelo Learning, sob mentoria de gestores mais experientes. Com dois ou três anos de casa, o funcionário cursa o Managing, aprendendo, por exemplo, a comunicar-se de maneira mais assertiva. Desde o ano passado, a Ambev trabalha temas mais ligados ao campo das emoções — entre os conteúdos abordados estão a “escuta ativa” e a “comunicação de verdades difíceis”. “A escuta ativa ajuda o líder a extrair dos funcionários, de forma clara, os problemas da equipe, deixando a rotina de trabalho mais tranquila”, diz Spolaor. “Normalmente, os times que passam por esse treinamento trabalham mais à vontade e apresentam melhor desempenho.”

Fora do Brasil, uma das tendências de desenvolvimento de competências é a formação contínua de mentores internos. A plataforma da startup suíça Coorpacademy permite esse tipo de prática, criando cursos moldados para empresas com base em um catálogo de 20 habilidades comportamentais, incluindo agilidade, sensibilidade cultural e gestão de tempo. “Nosso foco é nas competências humanas, porque elas são as únicas que vão durar”, diz Antoine Poincaré, líder de operações internacionais da plataforma, frisando que, com a velocidade da evolução tecnológica, os treinamentos técnicos tendem a ter validade cada vez menor.

No sistema da Coorpacademy, o primeiro funcionário de uma empresa a fazer o treinamento interage com a máquina, que propõe desafios e é aprimorada com o uso da tecnologia de aprendizado de máquina. Quando o curso termina, o funcionário vira um treinador e é ele quem passa a interagir com os próximos mentorados. É uma relação ainda virtual, mas muito mais humana. “Aprender online era algo muito solitário, mas, para ensinar competências sociais, precisamos de ferramentas que possibilitem trocas entre as pessoas”, diz Poincaré. Afinal, mesmo com o avanço da inteligência artificial, a tecnologia deve se moldar aos objetivos das pessoas.

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