Revista Exame

Odebrecht virou símbolo de "corrupción" na América Latina

Casos de corrupção envolvendo a Odebrecht estão causando frisson na América Latina. Só no Peru, 3 ex-presidentes são suspeitos de receber propina

Protesto em Lima: 
a Odebrecht admitiu ter pago 29 milhões de dólares em propinas no Peru 
entre 2005 e 2014 (Guadalupe Pardo/Reuters)

Protesto em Lima: a Odebrecht admitiu ter pago 29 milhões de dólares em propinas no Peru entre 2005 e 2014 (Guadalupe Pardo/Reuters)

FS

Filipe Serrano

Publicado em 10 de abril de 2017 às 05h55.

Última atualização em 10 de abril de 2017 às 10h41.

São Paulo — A rodovia Interoceânica, no Peru, é uma das obras de engenharia mais complexas e caras já feitas no país. A estrada tem 2 600 quilômetros, quase a mesma distância entre São Paulo e Recife, e liga o litoral peruano à fronteira com o Brasil, cortando a Cordilheira dos Andes. A obra custou mais de 3 bilhões de dólares e era para ser um símbolo da integração regional sul-americana e uma rota para produtos brasileiros até o Oceano Pacífico. Hoje, no entanto, a rodovia está no centro daquele que é considerado por analistas o maior escândalo de corrupção da história do Peru por sua repercussão política. O ex-presidente Alejandro Toledo, que governou entre 2001 e 2006, é suspeito de ter recebido 20 milhões de dólares da construtora brasileira Odebrecht em troca de vantagens na licitação da rodovia. Dos cinco trechos da Interoceânica, dois pertencem ao consórcio do qual a construtora brasileira faz parte. A Justiça peruana já autorizou a prisão preventiva do ex-presidente e suspendeu o pagamento de sua pensão vitalícia. Toledo nega as acusações. Como ele vive nos Estados Unidos, enfrenta agora um processo de extradição.

O caso do Peru é o exemplo mais visível até agora do terremoto político que a Lava-Jato tem provocado na América Latina. Desde que a Odebrecht admitiu ter distribuído 788 milhões de dólares em propinas em 12 países de 2001 a 2016, promotores da região têm ido na jugular da empresa brasileira. Os pagamentos ilícitos foram usados para obter contratos em mais de 100 projetos. Sem contar a propina paga no Brasil, 386 milhões de dólares foram destinados a nove países da América Latina. Na Colômbia, o chefe de campanha do atual presidente, Juan Manuel Santos, já admitiu ter recebido um financiamento irregular de 400 000 dólares da Odebrecht durante a campanha para a eleição de 2014. E o ex-vice-ministro de Transporte do governo de Álvaro Uribe foi preso acusado de receber 6,5 milhões de dólares da construtora. Na Argentina, integrantes dos governos de Néstor e Cristina Kirchner são suspeitos de participar do esquema da Odebrecht. No Panamá — onde a empresa reconheceu ter desembolsado 59 milhões de dólares em propinas —, dois filhos do ex-presidente Ricardo Martinelli são acusados de receber 6 milhões de dólares da construtora. As investigações mostram, de um jeito impressionante, como o modelo de corrupção aprimorado pela Odebrecht no Brasil se espalhou pelo continente.

O Peru é, até agora, o epicentro do terremoto latino-americano que amea-ça a Odebrecht. Três ex-presidentes são acusados de receber pagamentos irregulares da empresa brasileira. O caso mais recente é o de Alan García, suspeito de ter favorecido a Odebrecht na construção de dois trechos da Linha 1 do metrô da capital, Lima. No fim de março, o Ministério Público peruano abriu uma investigação contra García, que governou o país entre 2006 e 2011. O ex-ministro de Transportes Enrique Cornejo também está sendo investigado. Já o ex-presidente Ollanta Humala (2011-2016) é suspeito de receber uma doação ilegal de campanha por parte da construtora. Em depoimento, o ex-diretor executivo da Odebrecht no Peru, Jorge Barata, disse que, em 2011, entregou 3 milhões de dólares à ex-primeira-dama Nadine Heredia, mulher de Humala. O dinheiro seria destinado à campanha eleitoral daquele ano, segundo o executivo. Até o atual presidente, Pedro Pablo Kuczynski, que foi ministro da Economia no governo Toledo, foi ouvido pelos investigadores como testemunha. “Já tivemos muitos casos de corrupção no Peru, como o do ex-presidente Alberto Fujimori. Mas o que surpreende no caso da Odebrecht é que a corrupção era sistemática e atravessou todos os últimos governos”, diz o deputado Víctor Andrés García Belaunde, um dos principais integrantes da comissão parlamentar que investiga o caso no Congresso.

Grandes projetos

A Odebrecht admitiu ter pago 29 milhões de dólares em propinas no Peru para garantir sua contratação em obras públicas. Os contratos renderam à companhia 143 milhões de dólares em lucros de 2005 a 2014. O período coincide com uma fase de ouro para a companhia. Segundo dados do governo, nessa época, a Odebrecht obteve 19 contratos públicos no país vizinho, entre grandes estradas e linhas de metrô. De todos os projetos, o maior é a construção do Gasoduto Sul Peruano, com 1 100 quilômetros. A obra é avaliada em 7 bilhões de dólares. A Odebrecht tem 55% do consórcio responsável pela construção e pela operação do gasoduto, ao lado da espanhola Enagás (25%) e da peruana Graña y Montero (20%). A construtora brasileira vinha tentando vender sua participação desde o ano passado, mas a negociação emperrou quando o conteúdo do acordo de leniência veio a público em dezembro. Com tantos problemas, nenhum credor se arriscou a emprestar dinheiro para a obra, e o consórcio perdeu o prazo para levantar um financiamento de 4 bilhões de dólares necessário para tocar o projeto. Diante da situação, o governo peruano rompeu o contrato com o consórcio. Um novo leilão deve ser realizado. A Odebrecht tem direito a receber de volta 80% do valor investido, mas ninguém sabe quando esse dinheiro vai cair na conta.

O gasoduto representava 10% de toda a carteira de obras da construtora Odebrecht — ou seja, o valor dos projetos contratados, em andamento ou não, que a Odebrecht tem a receber. O gasoduto não é a única obra afetada. Em reação às denúncias, o governo da Colômbia cancelou o contrato de construção e concessão da Rota do Sol 2, uma rodovia de 528 quilômetros que liga a região central do país ao litoral do Caribe. A obra era avaliada em 1,7 bilhão de dólares.

O enrosco latino-americano é uma péssima notícia para a Odebrecht. Até setembro, mais da metade da carteira de obras da construtora — ou 12 bilhões de dólares — estava na América Latina (excluindo o Brasil). As dívidas relativas a todos os projetos somam aproximadamente 3,26 bilhões de dólares. Assinar acordos de cooperação com outros paí-ses latino-americanos, assim como ela fez no Brasil, é uma prioridade para garantir a continuidade dos projetos e a participação em novas licitações. Na República Dominicana, a empresa aceitou colaborar nas investigações e pagar uma reparação de 184 milhões de dólares. O acordo aguarda homologação da Justiça. Na Colômbia, no Peru e no Panamá, a Odebrecht assinou acordos de colaboração preliminares. “A empresa terá de fazer acordos nesses países para recuperar a carteira de obras. Esse é o desafio mais importante hoje”, diz Marcos Schmidt, analista sênior e vice-presidente da agência de avaliação de risco Moody’s para a América Latina. A Odebrecht afirma que espera assinar todos os acordos até mea-dos deste ano e adicionar novos contratos à carteira de obras ainda em 2017.

A questão mais difícil é lidar com a reação política, por definição imprevisível. As revelações de pagamento de propina fizeram a Odebrecht virar símbolo de corrupção para a população dos países prejudicados, o que pressiona os governantes a tomar medidas duras contra a empresa. No Peru, o governo publicou um decreto que proíbe empresas que fizerem acordos de leniência de remeter receitas, lucros ou dinheiro da venda de ativos para o exterior até que as multas sejam pagas. Além disso, uma reforma na lei de licitações perua-na feita às pressas incluiu um trecho que proí-be qualquer empresa que tenha admitido participar de esquemas de corrupção no país ou no exterior de participar de novas licitações. “Se o país- não der condições para a Odebrecht conseguir contratos, ela não vai conseguir pagar a multa e, eventualmente, vai fechar a subsidiária, e o caso vai entrar numa disputa judicial sem fim”, diz Alexandre Garcia, diretor da agência de classificação de risco Fitch.

Outros países também adotaram medidas drásticas. O Panamá proibiu a contratação da empresa em novos projetos. No Equador, o presidente Rafael Correa — que está de saída — disse que bloquearia a contratação da construtora em projetos federais. É uma reação bem diferente do que se via no passado, quando a companhia era saudada pelos políticos. Quando a obra da Rodovia Interoceânica foi lançada na cidade da Amazônia peruana de Puerto Maldonado, em setembro de 2005, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um de seus habituais discursos grandiloquentes. “O povo do Peru terá muito mais orgulho de um presidente que não teve medo de gastar dinheiro em uma região tão distante como esta”, disse na ocasião. Estava se referindo a Alejandro Toledo — que, 11 anos depois, se juntaria ao time de ex-presidentes latino-americanos que lutam para não ser presos.

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