Revista Exame

O último reduto petista: até quanto durará a fidelidade à esquerda?

A região foi a única onde Fernando Haddad teve mais votos do que Jair Bolsonaro e os governadores da esquerda foram reeleitos. Isso vai continuar?

Bairro de Salvador: o Nordeste tem 27% da população brasileira em idade ativa, mas estão ali 60% dos desalentados, os que desistiram de procurar trabalho (Marco Aurélio Martins/Exame)

Bairro de Salvador: o Nordeste tem 27% da população brasileira em idade ativa, mas estão ali 60% dos desalentados, os que desistiram de procurar trabalho (Marco Aurélio Martins/Exame)

DR

Da Redação

Publicado em 25 de outubro de 2018 às 05h50.

Última atualização em 25 de outubro de 2018 às 05h50.

Na comunidade quilombola de paus altos, localizada na zona rural  do município baiano de Antônio Cardoso, Manoel de Brito Filho, de 58 anos, polvilha farinha de tapioca num grande tacho quente para preparar o tradicional quitute beiju. Enquanto limpa as migalhas com uma vassourinha de folhas, justifica seu voto “com muito orgulho” no PT. Ele é um dos eleitores que deram ao petista Fernando Haddad quase 84% dos votos da cidade de 12.000 habitantes no primeiro turno da eleição presidencial. Faz cerca de 15 anos, no início do primeiro governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que a comunidade em que Brito Filho mora passou a ter água, energia elétrica e acesso a programas de incentivo à produção agrícola familiar e de transferência de renda, como o Bolsa Família. “Agora temos cisternas, antes bebíamos água no açude, junto com os bois, com os sapos. Acordava às 4 da manhã para não ter de competir com os animais”, diz.

O retrato de Antônio Cardoso é o de muitos municípios do Nordeste, única região que deu vitória a Haddad no primeiro turno. Por lá, a memória do crescimento nos governos Lula e no primeiro mandato de Dilma Rousseff permanece viva para os moradores. Na cidade, distante 145 quilômetros de Salvador e vizinha de Feira de Santana, cerca de 70% dos habitantes vivem na zona rural. A situação melhorou, mas está longe da que desfruta a maioria dos brasileiros. De acordo com dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, apenas 5% da população ocupada de Antônio Cardoso tem um emprego com carteira assinada (ante 38% da média nacional) e metade da população vive com renda mensal de meio salário mínimo (ante 36% no restante do país). Na cidade, 2 258 famílias recebem o Bolsa Família. Muitos são beneficiários de mais de um programa social do governo federal, como o Minha Casa, Minha Vida e o Garantia Safra, que ressarce o produtor caso ele perca metade da colheita, com seca ou infestação por pragas. O município também é o único do país onde a maioria da população — pouco mais da metade — se declarou negra no último censo populacional em 2010.

A Região Nordeste foi a mais beneficiada pela queda da inflação desde o Plano Real, pelos programas de redistribuição de renda e pela melhora na educação por meio de iniciativas tanto do governo de Fernando Henrique Cardoso, que nivelou os gastos por aluno e criou incentivos para que os municípios ampliassem a educação fundamental, quanto da gestão Lula, por meio do Bolsa Família, que estabelece metas de comparecimento escolar. Atualmente, dos quase 14 milhões de famílias que recebem o auxílio, que varia de 39 a 372 reais por mês, dependendo do número de filhos, quase metade está no Nordeste. “Esses incentivos foram fundamentais para ampliar a qualificação da mão de obra na região mais pobre do país, gerando impactos positivos no crescimento econômico”, diz o economista Alexandre Rands, da consultoria pernambucana Datamétrica.

De 2000 a 2010, o produto interno bruto per capita do Nordeste cresceu a uma taxa média de 3,1% ao ano, ante 2,2% da média brasileira. Na Região Sudeste, a mais rica do país, o ritmo de crescimento foi de 1,8%. Em 2015, no início da crise econômica, o PIB per capita do Nordeste chegou a 15.000 reais, um crescimento real de 34% em relação a 2002 — no Brasil, o aumento médio foi de 25%.

Durante os anos de prosperidade da era lulopetista, a distância que o Nordeste guardava do restante do país parecia que estava finalmente diminuindo. Mas, se a região foi a que mais se beneficiou nos 13 anos de PT no governo federal, também foi o lugar que mais sofreu com a atual crise, legado da gestão Dilma. “Quando a recessão começou, o Nordeste estava passando por uma reestruturação da economia”, afirma  Rands. A crise não só afugentou os investimentos privados como fez o governo cortar os gastos públicos, responsáveis por grande parte dos orçamentos locais, fazendo com que o impacto da retração fosse ainda maior na região.

Um estudo da Tendências Consultoria mostra que o percentual de famílias que vivem em extrema pobreza cresceu em quase todos os estados do país nos últimos quatro anos. A piora mais acentuada se deu no Nordeste. No Maranhão, 12% das famílias viviam abaixo da linha da pobreza no ano passado, o pior resultado do país. Bahia, Sergipe e Piauí foram os estados com o maior índice de aumento da pobreza extrema. O desemprego, que já era maior na região do que na média do Brasil mesmo durante os anos de crescimento econômico, subiu ainda mais. Hoje está em 14,8%, a taxa mais alta do país. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada revela que, apesar de a região abarcar 27% da população brasileira em idade ativa, estão ali 60% dos desalentados, aqueles que desistiram de procurar trabalho.

Numa região onde a economia evolui a passos lentos e os programas governamentais são uma das principais fontes de sustento da população de baixa renda, o eleitor pobre é pragmático: o medo de perder o que já existe é muito maior do que a esperança de uma vida melhor em forma de promessa eleitoral. Para piorar, na região de Antônio Cardoso, faz cinco meses que não chove e o abastecimento de água depende de caminhões-pipa. No dia anterior à visita da reportagem de EXAME, uma das cisternas de Paus Altos foi abastecida por um desses caminhões e os moradores foram de jegue encher seus galões. Quando isso não acontece, a saída é usar a água enlameada de alguns dos pequenos açudes para, pelo menos, tomar banho e lavar roupa.

O município é banhado pelo Rio Paraguaçu, mas a maioria das casas não recebe água — são equipadas com cisternas, que armazenam água da chuva. Agora, uma obra do governo do estado, comandado pelo PT há 12 anos, com previsão de término no ano que vem, prevê abastecer diretamente 80% das casas na área urbana. É uma obra que, se concluí-da, deve manter o domínio petista em Antônio Cardoso — o prefeito da cidade, Toinho Santiago, também é do partido. No Nordeste, apenas 66% dos domicílios urbanos recebem água diariamente, enquanto a média nacional é de 87%.

A lembrança dos anos de bonança com Lula é o principal motivador do voto em Antônio Cardoso e em outros municípios nordestinos. A figura do ex-presidente foi um ímã para puxar votos na campanha de Fernando Haddad no primeiro turno. “Enquanto no restante do país Bolsonaro conquistou votos com base nos valores, no Nordeste o PT venceu pela racionalidade do eleitor, que avalia qual candidato vai atender de forma mais imediata às suas necessidades econômicas”, diz Antônio Jorge de Almeida, professor de pós-graduação de ciência política na Universidade Federal da Bahia e autor do livro Como Vota o Brasileiro.

O PT reelegeu, em primeiro turno, seus governadores na Bahia, no Piauí e no Ceará, além de governadores aliados no Maranhão, em Pernambuco e em Alagoas. Agora no segundo turno, o PT disputa diretamente no Rio Grande do Norte, com Fátima Bezerra. Em Sergipe, Belivaldo Chagas (PSD), líder das pesquisas, declarou apoio a Haddad, apesar de seu partido ter optado pela neutralidade na disputa presidencial. O PSB de seu adversário, Valadares Filho, também apoia o candidato petista à Presidência.

Manoel de Brito Filho, da cidade de Antônio Cardoso, na Bahia: assim como ele, oito em cada dez eleitores por lá votaram em Fernando Haddad | Marco Aurélio Martins

Na Bahia, a coligação do atual governador,  Rui Costa, formada por 14 partidos, venceu em primeiro turno com 75% dos votos válidos. Costa saiu vitorioso em 414 das 417 cidades baianas e em todas as zonas eleitorais de Salvador, sendo escolhido até por empresários que, em âmbito nacional, optaram por Bolsonaro. Já seu principal adversário, o ex-prefeito de Feira de Santana José Ronaldo (DEM), ganhou apenas em Feira, Itapetinga e Buerarema — estas duas últimas também deram vitória a Bolsonaro, que superou Haddad em somente seis municípios da Bahia. Segundo analistas e políticos, o sucesso eleitoral de Rui Costa se deve a feitos de sua gestão, como o aumento de obras de infraestrutura — o metrô de Salvador é a mais citada — e a construção de hospitais e policlínicas.

Mas um amplo acordo com partidos do centrão, estratégia que o PT nacional reluta em adotar, é um dos trunfos do partido no Nordeste. Em Alagoas, o PT apoiou a candidatura de Renan Filho, do MDB, ao governo. Renan foi reeleito com 77% dos votos. Na Bahia, o principal nome da oposição, o atual prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto, desistiu de concorrer ao governo dada a força da máquina política montada por Costa — durante a campanha, ele teve o apoio de 352 prefeitos. Sua aliança, que inclui legendas do PDT, de Ciro Gomes, ao Podemos, de Álvaro Dias, elegeu 42 dos 63 deputados estaduais. “Na Bahia, incorporamos a base da política de aliança, diferentemente do que acontece no Sul e no Sudeste. Montamos uma estratégia para ganhar a eleição e não governar sozinhos”, afirma o sindicalista Everaldo Anunciação, presidente do PT na Bahia.

Fortalecida nas urnas, essa frente de centro-esquerda poderá conseguir  o que hoje parece ser improvável: obrigar Bolsonaro a uma aproximação com os governos de petistas e aliados na região. “Se eleito, Bolsonaro terá de fazer o movimento em direção a esses estados caso cogite uma reeleição ou queira repetir nas eleições municipais o bom desempenho do PSL no pleito deste ano”, diz o analista político Thiago Vidal, da consultoria Prospectiva. “Criar atrito nesses estados seria ruim política e eleitoralmente para o novo presidente e seu partido.”

O primeiro aceno já veio. Bolsonaro declarou em campanha que vai criar o 13o salário para os beneficiários do Bolsa Família. Por ora, o capitão reformado do Exército inspira temor. “Bolsonaro só fala em arma, isso não resolve”, afirma a agricultora Mailine de Carvalho Silva, de 26 anos. Ela recebe o Bolsa Família há dois anos e afirma que, com o benefício, compra material escolar e livros para a filha — coisa que seu pai não pôde fazer por ela quando era criança. Mailine sempre votou no PT, menos na eleição de 2014, já que não gostava do estilo de Dilma de governar. Como a maioria dos moradores da cidade, no próximo domingo vai de 13 “pelas propostas do partido”. “Depois do que Lula fez para nós, a gente está devolvendo pelo voto”, afirma o funcionário público Edimario Gomes, filiado ao PT há 12 anos. O tempo dirá se a fidelidade à esquerda vai perdurar.

Acompanhe tudo sobre:BahiaBolsa famíliaFernando HaddadJair BolsonaroPT – Partido dos TrabalhadoresRegião Nordeste

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda