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Veto à fusão entre Kroton e Estácio revela transformação no Cade

O Cade surpreendeu o mercado ao vetar a fusão entre as empresas de educação Kroton e Estácio.

Sala da Kroton (Germano Luders/Exame)

Sala da Kroton (Germano Luders/Exame)

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Letícia Toledo

Publicado em 13 de julho de 2017 às 05h51.

Última atualização em 13 de julho de 2017 às 19h58.

São Paulo — Na última década, os executivos dos dois maiores grupos de ensino superior do país, Kroton e Estácio, acostumaram-se a visitar a sede do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em Brasília. Nesse período, a Kroton comprou 23 concorrentes; e a Estácio, 17 — em transações que foram analisadas e aprovadas pelo Cade. Um ano atrás, as duas empresas resolveram se fundir para criar um gigante que teria 1,5 milhão de alunos, faturamento de 8 bilhões de reais e cerca de 20% do mercado de ensino superior no Brasil — em alguns cursos, a concentração passaria de 45%.

Dado o tamanho da nova empresa, a expectativa era que o Cade exigiria que ela vendesse negócios para reduzir sua participação de mercado, mas que aprovaria a fusão.  O órgão, vale lembrar, é o mesmo que aprovou a fusão da Brahma com a Antarctica para criar a megacervejaria Ambev, com seus 70% de participação de mercado.

De 2012 para cá, o Cade vetou apenas oito fusões dos cerca de 2.600 negócios que analisou. O tempo foi passando, o Cade foi exigindo mais informações sobre a futura companhia, e executivos e advogados de Kroton e Estácio começaram a achar que o gato havia subido no telhado. Até que, no dia 28, o tribunal do órgão rejeitou o pedido de fusão por seis votos a um.

De onde veio essa reversão? O fato de o julgamento ter sido o primeiro após o envolvimento do Cade na delação do empresário Joesley Batista, dono do grupo J&F, levantou suspeitas de que os conselheiros do órgão tenham adotado uma postura mais rígida para mostrar que não estão “a serviço” das grandes empresas.

Na delação, Batista afirma ter pagado propina ao ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR) para obter uma decisão favorável no Cade — queria que a Petrobras fornecesse gás por um preço mais baixo para a termelétrica EPE, da J&F. O caso não foi analisado pelo Cade, e as denúncias ainda estão sendo investigadas pela polícia. Seria curioso, já que o veto à fusão, por definição, também beneficia um punhado de empresas, notadamente as concorrentes.

Mas, teorias da conspiração à parte, advogados, ex-conselheiros do Cade, executivos de empresas e analistas ouvidos por EXAME afirmam que a decisão deve ser interpretada como um sinal inequívoco de que o Cade que aprova tudo ficou no passado. E que, certa ou errada, a nova postura afetará a vida de centenas de empresas que querem crescer comprando outras.

A mudança na postura do Cade vem sendo construída há anos. Começou em 2012, quando a nova lei da concorrência deu ao Cade a prerrogativa de analisar as fusões e aquisições antes que as empresas começassem a unir as atividades de fato. Até 2012, as empresas já iam integrando suas operações mesmo antes de saber se o Cade aprovaria o negócio. Comprometiam-se apenas a criar condições para a reversão caso o negócio fosse desfeito. “O custo econômico de desfazer toda uma operação integrada poderia ser mais alto para a sociedade do que os prejuízos gerados pela alta concentração”, diz o advogado Ricardo Gaillard, sócio do escritório Souza Cescon.

Na prática, se não houvesse um grande absurdo, a tendência seria aprovar as operações, segundo especialistas. Foi o que aconteceu na análise da fusão entre as empresas de alimentos Sadia e Perdigão, em 2009, que criou a BRF, grupo que chegaria a ter de 70% a 90% de participação em alguns segmentos, como o de lasanhas congeladas (ou mais de 20% em 15 dos 21 principais segmentos em que atua).

O Cade aprovou a fusão com restrições, como a proibição de venda de alguns produtos da Perdigão por até cinco anos. “Se a fusão da Sadia com a Perdigão acontecesse hoje, é muito possível que a decisão fosse de uma reprovação”, diz o advogado Olavo Zago Chinaglia, conselheiro do Cade entre 2008 e 2012 — ele votou a favor da fusão. O Cade não divulga estatísticas sobre os casos aprovados e rejeitados antes de 2012. Um dos poucos rejeitados foi a compra da fabricante de doces Garoto pela multinacional Nestlé em 2002.

O ganho de experiência também tem tornado o Cade mais rígido. Os conselheiros do órgão — um grupo de sete profissionais escolhidos pelo presidente da República com mandato de quatro anos — dizem estar aprendendo com os próprios erros do colegiado no passado. Um exemplo: ao aprovar a compra da fabricante de pastas de dentes Kolynos pela Colgate em 1995, o Cade proibiu a venda de produtos da Kolynos por quatro anos.

A Colgate, então, criou a marca Sorriso, em tudo igualzinha à marca vetada — assim, perdeu menos mercado com a restrição. O Cade usou a “lição” ao julgar a criação da BRF: além de suspender a venda de produtos da Perdigão, proibiu que a companhia criasse outra marca. Mas ficou a sensação de que os remédios não estavam sendo tão eficazes quanto se pretendia.

O histórico da Kroton

O que pesou mais na rejeição da união entre Kroton e Estácio foram as pendências em outra grande fusão da Kroton: com a Anhanguera, em 2014. O Cade pediu que a nova empresa, um gigante com 1 milhão de alunos, vendesse ativos, mas as vendas atrasaram. Com isso, o Cade ainda não conseguiu avaliar se as contrapartidas foram suficientes — e precisava desse resultado  para analisar a nova fusão. “Existe ainda uma operação em implementação e que está sendo sobreposta por outra”, afirmou em seu voto Gilvandro de Araújo, um dos conselheiros que vetaram a fusão.

Fusões e aquisições que deem origem a empresas com participação de mercado superior a 20% costumam ser consideradas preocupantes pelo Cade. Isso, nos dias atuais. No passado, como se sabe, a coisa era bem mais frouxa. “Não considero que o Cade esteja mais rígido. O que há é um aprimoramento das decisões”, diz Alexandre Barreto, presidente do Cade.

Advogados que atuam em processos no Cade estão mudando a forma de se relacionar com o órgão. “Tenho recomendado aos clientes que já apresentem uma proposta de contrapartidas desde o início. É preciso ser mais realista hoje”, diz a advogada especializada em direito concorrencial Leonor Cordovil.

Um dos próximos casos na lista para julgamento é a venda da distribuidora de combustíveis Alesat à concorrente Ipiranga. O parecer da superintendência-geral do Cade — que recebe todos os casos de fusão e tem o poder de aprová-los ou encaminhá-los para análise do conselho, com um parecer —  foi tão duro quanto o apresentado na fusão da Kroton com a Estácio. A superintendência informou que a fusão causa “preocupações concorrenciais” e que, “à primeira vista”, não há “remédios adequados” para resolver as distorções. O prazo para julgamento é 16 de agosto.

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