Revista Exame

Como o estado americano de Utah exercita seu talento de atrair talentos

Como o pequeno estado de Utah persegue a estratégia de seduzir gente capacitada — que tem feito sua economia crescer acima da média americana

Salt Lake City, capital de Utah: belezas naturais e custo de vida razoável ajudam a atrair profissionais (Foto/Getty Images)

Salt Lake City, capital de Utah: belezas naturais e custo de vida razoável ajudam a atrair profissionais (Foto/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 8 de novembro de 2018 às 05h48.

Última atualização em 8 de novembro de 2018 às 05h48.

Você pode não ser capaz de apontar o estado de Utah no mapa dos Estados Unidos, mas já deve ter visto as formações rochosas espetaculares do Monument Valley em algum bangue-bangue clássico de John Ford, como cenário de um planeta distante em 2001 — Uma Odisseia no Espaço ou numa das cenas mais memoráveis da carreira de Tom Cruise: o agente Ethan Hunt escalando um rochedo sem equipamentos de segurança na sequência de abertura de Missão Impossível 2. É provável que você conheça a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, também conhecida como Igreja Mórmon. Essa denominação cristã tem sua sede na capital de Utah, Salt Lake City, e os mórmons representam 60% da população do estado.

Ali também estão algumas das mais badaladas estações de esqui dos Estados Unidos, e todo mês de janeiro, no auge do inverno, Park City reúne a indústria cinematográfica mundial durante o Festival de Cinema de Sundance. Mas, nos últimos anos, Utah vem ganhando outro tipo de reconhecimento: o de uma economia que deu certo. Em vários indicadores econômicos e sociais, o estado sobressai na comparação com potências bem maiores e mais ricas, como a Califórnia, ou de mais renome, como o Massachusetts, que abriga a Universidade Harvard e o MIT. Utah, com seus pouco mais de 3,1 milhões de habitantes, está entrando para o mapa econômico mundial — e tem exemplos a dar ao Brasil.

O símbolo maior da transformação de Utah é a área conhecida como Silicon Slopes (pistas de silício), numa referência às estações de esqui do estado e ao primo Vale do Silício, na Califórnia. Mas o Silicon Slopes é mais do que uma marca bem sacada. O polo conta com cerca de 6.500 startups — o mesmo que o Brasil inteiro, com uma população 70 vezes maior, segundo a StartupBase, serviço da Associação Brasileira de Startups. Quatro delas já se tornaram unicórnios, apelido de empresas avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares (no Brasil, só três atingiram a marca).

Duas startups, Pluralsight e Domo, lançaram ações na bolsa neste ano e juntas valem quase 3,5 bilhões de dólares. Uma terceira, a Qualtrics, iniciou um processo de abertura do capital que deve ser o maior do estado. O site Crunchbase, que acompanha investimentos em startups, dá a Utah o sexto lugar no ranking de capital de risco investido por habitante. Desde 2010, o estado foi eleito seis vezes o melhor para fazer negócio pela revista Forbes. “Temos apoio governamental e regulamentações limitadas”, diz A. Scott Anderson, presidente do banco Zions Bank e colunista do jornal Deseret News. “Um dos principais elementos desse ambiente favorável aos negócios é o florescimento dos fundos de capital de risco.”

Funcionários na sede da Qualtrics: crescimento de 40% ao ano, e dando lucro | Kim Raff/The New York Times/Fotoarena

Anderson aponta a importância de um programa estabelecido há mais de uma década pelo ex-governador Jon Huntsman Jr., republicano como a maioria dos políticos eleitos no estado. A Iniciativa Utah de Pesquisa, Tecnologia e Ciência foi lançada em 2006 e se concentrou na criação de centros de pesquisa e na atração de talentos de ponta para as duas grandes universidades locais, a Universidade de Utah e a Utah State University. O plano era transformar ideias promissoras nascidas no meio universitário em negócios viáveis. Apesar da recessão que viria dois anos depois, a semente estava plantada. Depois de algumas correções de curso, a expectativa é que, nos próximos 15 anos, os 383 milhões de dólares investidos pelo programa gerem mais de 540 milhões em financiamento de pesquisas, além de 1,3 bilhão de dólares em investimentos em startups. No Brasil, os investimentos em startups triplicaram nos últimos dois anos, segundo a Associação Latino-Americana de Private Equity e Venture Capital, mas no acumulado chegaram a apenas dois terços desse valor: 859 milhões de dólares.

O incentivo estatal foi chave para que Utah se tornasse um centro cada vez mais importante para os fundos de capital de risco — uma peça crucial para o sucesso da inovação. Desde que acabou a recessão do fim da década passada, os investimentos de risco em empresas do estado cresceram 450%, mais do que o dobro da média dos Estados Unidos. A Qualtrics, produtora de software usado para fazer pesquisas com clientes e funcionários, foi fundada em 2002 por Ryan Smith e seu pai em Provo, uma das cidades que formam o Silicon Slopes. Durante os primeiros dez anos de vida, longe dos holofotes apontados para o Vale do Silício, a empresa cresceu organicamente. Mas, de 2012 para cá, a Qualtrics recebeu 400 milhões de dólares em três rodadas de investimento, e isso lhe garantiu recursos para continuar crescendo a taxas de 40% ao ano — e dando lucro, o que não costuma ser prioridade para empresas de software de olho na bolsa.

Mais ciência

A maioria das startups nativas do estado está voltada para os clientes corporativos ou atua em segmentos muito especializados, e portanto não são nomes reconhecidos pelo público. Isso não quer dizer que os gigantes do mundo digital não estejam prestando atenção na região. No final de maio, o Facebook anunciou a instalação de um data center de 100 milhões de dólares na cidade de Eagle Mountain. O governo ofereceu 150 milhões de dólares em renúncias fiscais, algo que certamente facilitou a decisão do Facebook — mas em troca a empresa vai entregar 100 milhões de dólares em obras de infraestrutura, como estradas, energia e telecomunicações. O objetivo é alargar a oeste o corredor do Silicon Slopes, que tem cerca de 100 quilômetros e margeia a estrada interestadual que corta Utah de norte a sul.

Grandes empresas de tecnologia têm metas agressivas de novas contratações, e simplesmente não há como atingi-las no hipercompetitivo Vale do Silício. A Adobe, que produz programas de computador, como o Photoshop, começou em março as obras para dobrar sua presença no Silicon Slopes (a Adobe se estabeleceu em Utah com a aquisição da empresa de análise de audiência online Omniture). Os futuros escritórios da Adobe vão abrigar 1.000 novos funcionários.

O número de formandos em ciência da computação nas universidades de Utah mais do que dobrou de 2000 a 2016, e 8,6% dos empregos do estado têm a ver com tecnologia, uma proporção próxima à da Califórnia (9,1%). Em termos absolutos, o número é pequeno, pelo tamanho da população. Atrair talentos de fora é fundamental. “Se contratássemos todos os engenheiros formados pelas universidades do estado todos os anos, ainda assim não seria suficiente. E somos só uma empresa”, disse numa entrevista recente Mike Maughan, um dos diretores da Qualtrics.

O Brasil sofre do mesmo mal em grau muito maior. O número de graduados no país tem aumentado, mas apenas 17% optam por áreas tecnológicas, ante 24% nos 34 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, taxa ainda considerada insatisfatória. Uma consequência é que o Brasil tem apenas seis engenheiros para cada 1.000 habitantes, segundo o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia. Nos Estados Unidos e no Japão, a proporção é da ordem de 25 para 1.000. Na área de tecnologia, um estudo do IDC, instituto de pesquisas especializado no setor, estima em 161.000 o déficit de profissionais.

Enquanto não se prepara mão de obra suficiente, uma solução é importar. O Brasil tem feito o oposto. A crise econômica expulsou milhares de profissionais bem formados para outros países. Mesmo se contiver o êxodo de brasileiros e investir na formação de pessoal, ainda seria aconselhável atrair gente talentosa. O governo sabe disso: os ministérios das Relações Exteriores, da Justiça e do Trabalho formaram um grupo com a missão de editar uma portaria com medidas para atrair pessoas talentosas para o Brasil.

Trata-se de um desdobramento da lei de imigração aprovada no ano passado. Mas o processo é lento. O Itamaraty fez consultas a outros países para conhecer as melhores práticas em atração de profissionais qualificados. Um dos lugares que podem servir de exemplo é Utah. Suas empresas são engajadas nisso. No site da Qualtrics, uma página traz depoimentos de funcionários sob o título “Por que morar (e trabalhar) em Utah?”

Universidade de Utah: um espaço de apoio a empreendedores incentiva a criação de startups | Divulgação

Fotos de estações de esqui e da família fazendo trilhas no Grand Canyon podem pesar na decisão, mas é por outro motivo que os engenheiros americanos estão decidindo, em grande número, se mudar para lá. Os salários podem ser mais altos no Vale do Silício, mas viver no Silicon Slopes é muito mais barato: um levantamento do centro de estudos Tax Foundation coloca o estado na 28a posição no ranking de custo de vida mais baixo nos Estados Unidos. A Califórnia fica em 47o lugar entre os 50 estados. O preço médio das residências na baía de São Francisco é de 940.000 dólares, quatro vezes a média nacional. Uma pesquisa da organização empresarial Bay Area Council indicou que 46% dos moradores da região querem sair dali nos próximos anos por causa do custo de vida, do trânsito e dos impactos negativos da desigualdade econômica.

Apesar de ferozmente republicano e 90% branco — um contraste com a liberal e democrata Califórnia —, Utah é surpreendentemente liberal em certos aspectos. Há leis que proíbem discriminação sexual no trabalho e na oferta de moradia. O estado também adotou políticas de redução de danos em relação a usuá-rios de drogas, em vez de simplesmente tentar resolver o problema com a polícia. Segundo um levantamento do site BuzzFeed News publicado em abril, autoridades do Partido Republicano de 49 estados haviam feito ataques públicos ao Islã. A única exceção foi Utah. Não é pouca coisa em um país cuja política tem sido tomada pelo ódio.

A paulistana Thaís Nigri Rutledge mora em Provo e trabalha na Qualtrics há quase cinco anos, como executiva de contas. Thaís é mórmon, foi morar em Utah para aprender inglês e acabou ficando por lá. “É uma região conservadora, mas há lugares muito mais conservadores nos Estados Unidos”, diz ela. “O senso de comunidade é um valor importante por aqui, e numa conferência recente da igreja fomos lembrados que já fomos perseguidos um dia.” Utah foi fundado em mea-dos do século 19 por mórmons exilados dentro de seu próprio país, o que explicaria a tolerância para com imigrantes, refugiados e, de modo geral, todos aqueles que pensam de maneira diferente.

A região de Silicon Slopes não é a única a tentar emular o sucesso mitológico — até aqui inigualável — do Vale do Silício. No início do milênio, Nova York se gabava de um certo Beco do Silício, mas a promessa não vingou (talvez o nome infame tenha contribuí-do para isso). A cidade acabou concentrando startups de mídia digital, mais por vocação natural, já que as grandes empresas do setor já têm sede em Manhattan. Boston e arredores continuam sendo um centro importante em biotecnologia e robótica, e o Arizona, vizinho a Utah, tem a maior frota de carros autônomos em circulação no país. Numa economia em que o capital humano é primordial, Utah tem apostado na formação e na atração de profissionais qualificados. Tem dado certo lá. Pode dar certo aqui.

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