Revista Exame

Na Smiles, o sorriso amarelou

A Smiles foi à bolsa em 2013 e virou uma campeã de rentabilidade. Agora, sua controladora, a Gol, quer o negócio de volta

Avião da Gol: a Smiles tem contratos com 50 empresas parceiras | Cadu Rolim/Fotoarena /

Avião da Gol: a Smiles tem contratos com 50 empresas parceiras | Cadu Rolim/Fotoarena /

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Denyse Godoy

Publicado em 25 de outubro de 2018 às 05h48.

Última atualização em 25 de outubro de 2018 às 05h48.

A Smiles, administradora do programa de fidelidade da companhia aérea Gol, pode ser uma espécie de vítima do próprio sucesso. A Smiles foi separada da companhia-mãe em 2013, com o lançamento de ações na bolsa de valores. A oferta rendeu 1,1 bilhão de reais utilizados na compra antecipada de passagens da Gol. De lá para cá, as receitas da Smiles mais que triplicaram, para 1,8 bilhão de reais no ano passado — o lucro cresceu 266% e 2,8 bilhões de reais foram pagos aos acionistas em dividendos acumulados durante cinco anos. Era tanto dinheiro que os controladores da Gol, dona de 53% do negócio, começaram a se perguntar se não era o caso de voltar a ser donos de 100%.

No dia 14 de outubro, a Gol anunciou que a Smiles voltará a ser uma subsidiária numa data ainda não divulgada. As ações da Smiles caíram 39% no dia seguinte ao anúncio da operação. Para a Gol, a expectativa de dinheiro novo no caixa foi o suficiente para deixar investidores eufóricos — as ações da companhia aérea subiram 23% desde então (até 22 de outubro). Mas, por trás da euforia, há uma série de questões não respondidas.

A primeira delas é como ficam os planos de longo prazo da Smiles, que tinha como meta ser o maior marketplace de turismo do Brasil. A diretoria executiva da Smiles só foi comunicada da intenção da Gol, controlada pela família Constantino, na noite do domingo 14 de outubro, junto com o envio de um comunicado à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão regulador do mercado financeiro. A pretensão é fazer uma reorganização societária para que a Smiles volte a ser uma unidade de negócio da Gol, dando aos sócios minoritários uma quantidade de ações na empresa resultante, que será listada no Novo Mercado da B3. Os valores e os termos da transação ainda serão definidos.

Segundo EXAME apurou, durante toda a semana que se seguiu ao anúncio, a perplexidade tomou conta da sede da Smiles, em Barueri, na região metropolitana de São Paulo. “A Gol informou que nada muda para os clientes, mas não disse como o negócio afeta a estratégia da plataforma”, diz Pedro Galdi, analista da corretora Mirae Asset.

A direção da Smiles não deu entrevista. Por e-mail, a diretoria da Gol disse ter “a forte convicção de que essa proposta minimizará ineficiências e gerará valor significativo aos acionistas do grupo” e que dará à Gol a capacidade de “crescer organicamente e sustentar o crescimento de longo prazo”. A companhia pretende manter uma diretoria separada para a Smiles, “para que ela busque todas as alternativas de crescimento que façam sentido”.

Deverá ser o fim de uma empresa com desempenho de dar inveja. Em 2017, a Smiles teve lucro líquido de 760 milhões de reais, o que significa 6,4 milhões para cada um dos 118 funcionários — o melhor índice entre as companhias abertas no mundo, de acordo com números da empresa de informações financeiras Bloomberg. Essa equipe administra uma base de dados de 14,6 milhões de clientes e se relaciona com 50 parceiros brasileiros e estrangeiros, entre companhias aéreas, locadoras de veículos e varejistas.

Embora 90% dos pontos trocados pelos clientes ainda tenham como objetivo a aquisição de passagens, a Smiles vinha investindo para ampliar as opções em outras áreas, uma tendência no mercado de fidelidade que vem ganhando novos competidores, como a Livelo, lançada em 2016 por Bradesco e Banco do Brasil. É um segmento que tem 120 milhões de contas no país e cresce 20% ao ano. “Calculamos que apenas 20% dos consumidores brasileiros usem programas de fidelidade, ante 70% em economias mais maduras”, diz Roberto Chade, presidente da Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização.

Ao ser reincorporada pela Gol, a Smiles pode perder a capacidade de entrar em novos nichos, abrindo espaço para a concorrência. Para a Gol, a decisão acompanha uma tendência de mercado. No início de setembro, a concorrente Latam anunciou a decisão de fechar o capital da Multiplus, a administradora do programa de fidelidade da brasileira TAM. Após oito anos de voo solo, a Multiplus será reincorporada pela Latam por meio de uma oferta pública de aquisição de ações e terá sua operação fundida com outras duas plataformas de recompensas da companhia aérea, a Latam Pass e a Latam Fidelidade. A Latam estima pagar aos minoritários 27,2 reais por papel da Multiplus, gastando 1,2 bilhão para a compra da fatia de 27% na administradora que ainda não detém. A Multiplus não concedeu entrevista.

A Air Canada, empresa que é um modelo mundial no mercado de fidelidade, em agosto comprou de volta por 345 milhões de dólares seu programa de milhagens Aeroplan, separado havia 35 anos em uma reestruturação corporativa que deu origem à administradora Aimia. Essa mesma administradora recusou em julho uma oferta de 180 milhões de dólares da AeroMexico para comprar de volta seu programa de fidelidade. No Brasil, a Azul e a Avianca mantêm seus programas de fidelidade como unidades de negócio.

Totem da Latam: a empresa vai recomprar seu programa de fidelidade Multiplus | Cesar Borges/Fotoarena

A razão primordial para essas transações é financeira. A administradora vende, à companhia aérea e aos demais parceiros, os pontos que são repassados para os clientes como benefício. Quando os consumidores desejam trocá-los por passagens ou outros produtos, a administradora usa os pontos como moeda para adquirir os prêmios. Nesse câmbio, existe uma diferença de preço que resulta no lucro da administradora. Sem o intermediário, a transação fica mais barata para a empresa aérea.

Além disso, dispensando os sócios minoritários, a companhia pode ficar com todo o lucro da operação da plataforma de recompensas, antes distribuídos como dividendos. E as aéreas estão num momento de especial necessidade de recursos devido à escalada do dólar e do preço do petróleo, a matéria-prima do querosene de aviação. No Brasil, a moeda americana chegou a avançar 27% no pico do ano, em setembro. No segundo trimestre deste ano, os ganhos antes de juros, impostos, depreciação e amortização da Latam caíram 16,3% em comparação ao mesmo período de 2017, para 244 milhões de dólares. Na Gol, o prejuízo cresceu 180% no segundo trimestre de 2018, para 1,3 bilhão de reais.

Segundo executivos do setor, a reincorporação da Smiles pode ser a última grande tacada do presidente executivo da Gol, Paulo Kakinoff, antes de concluir seu ciclo na companhia. Quando assumiu o comando em 2012, abrir o capital da Smiles foi um de seus primeiros atos. Sua gestão foi bem-sucedida em muitos aspectos. Na época da posse de Kakinoff, a Gol exibia taxa de ocupação de 70% e margem operacional negativa de 19,4%. Agora, a ocupação está em 78% e a margem é positiva, de 1,8%. Sua prioridade foi cortar custos, gerindo melhor a frota e a rede de voos, a fim de amortecer os efeitos negativos e cíclicos da alta do dólar ante o real e dos preços do petróleo.

Mas, em 2018, com o aumento no preço dos combustíveis, a dívida da empresa voltou a crescer, para 14 bilhões de reais. “A situação financeira da Gol apresentou melhora após a reestruturação da frota e com o aumento da racionalidade em todo o setor, o que tem possibilitado passar parte dos aumentos de custos aos preços das tarifas. Mas os momentos de alta do petróleo pressionam seus resultados”, diz Bruno Ferreira, analista da agência de classificação de risco S&P. A Gol tem nota B- na escala da agência, no nível especulativo — no qual o investimento é considerado arriscado. A Azul tem nota B+, dois degraus acima da Gol, e a Latam é classificada um degrau acima da Azul, como BB-.

Mas a transação com a Smiles pode até piorar as contas da Gol no curto prazo, já que ninguém sabe ao certo quanto vai custar para a companhia aérea. “Caso a Gol precise fazer um desembolso grande ou contrair mais dívida para levar a reestruturação adiante, o cenário pode deteriorar bastante”, diz Flávia Bedran, também analista da S&P. A julgar por essa perspectiva, tanto do lado das finanças quanto do futuro comercial da Smiles, a operação poderia, no fim, significar um tiro no pé da Gol.

Neste primeiro momento, estão sofrendo os acionistas minoritários da administradora de programas de fidelidade. Apesar de saber do risco de mudanças no relacionamento da plataforma com a empresa-mãe, os investidores ficaram especialmente desconfortáveis com as declarações do diretor financeiro da Gol, Richard Lark. Na conferência por telefone em que explicou a decisão da empresa, no dia 15, ele afirmou que o mercado vinha avaliando a Smiles por um montante que não condizia com a realidade e que esperava uma depreciação nos dias seguintes. “Metade da queda das ações naquele dia se deveu a essa afirmação. Estamos consultando nossos advogados para avaliar que atitude tomar”, diz James Gulbrandsen, gestor do fundo NCH Capital no Brasil, que vendeu parte de sua fatia na Smiles logo após o anúncio da mudança.

Desconfiando que Lark fez tais comentários para jogar o preço para baixo e assim conseguir um valor mais vantajoso na reincorporação, alguns investidores estão se juntando para processar a Gol e pedir reparação. (Leia mais, no quadro abaixo, sobre o crescimento do ativismo de investidor no Brasil.) A CVM vai abrir uma investigação a respeito. Ainda é cedo para dizer se alguém vai rir por último nessa operação. 


Pedro Parente, presidente da BRF: perdas podem virar alvo de processos | Germano Lüders

O LEVANTE DOS MINORITÁRIOS

Acionistas de empresas como Oi, Gafisa e Qualicorp questionam eventuais abusos dos controladores. Smiles e BRF podem ser os próximos alvos

A organização dos sócios minoritários da Smiles para questionar a operação de reincorporação da empresa de programas de fidelidade pela companhia aérea Gol é o mais recente capítulo de um movimento que tem ganhado força no mercado financeiro brasileiro: o ativismo.

Diante do que consideram ser abusos do acionista controlador na administração de companhias abertas, em atos que levam a perdas para as próprias empresas ou a danos ao patrimônio, os minoritários vêm abrindo processos cíveis ou recorrendo à arbitragem para defender seus direitos. “Antes, os pequenos acionistas tinham medo de enfrentar os majoritários, mas a cultura tem mudado no país. A onda moralizante que começou na política se espalhou para outros setores da sociedade”, diz Aurélio Valporto, vice-presidente da Associação dos Investidores Minoritários do Brasil.

O caso da Petrobras, que neste ano fez acordo nos Estados Unidos para pagar 3 bilhões de dólares (11,2 bilhões de reais) para compensar minoritários prejudicados pelo esquema de corrupção na estatal e enfrenta a mesma acusação na arbitragem no Brasil, foi um divisor de águas no mercado. “Os processos têm ganhado força porque, além dos investidores individuais, os gestores de fundos entenderam que têm o dever de defender o interesse dos cotistas”, diz André de Almeida, advogado que liderou o processo vencedor contra a Petrobras na Justiça americana.

Neste ano, os minoritários já se rebelaram contra o plano de reestruturação da Oi, a gestão da construtora Gafisa e a decisão da administradora de planos de saúde Qualicorp de pagar 150 milhões de reais ao fundador, José Seripieri Filho, para que o executivo não abrisse um negócio concorrente — o plano foi revertido após protesto da gestora XP Gestão.

Nos últimos dias, acionistas da empresa de alimentos BRF, dona das marcas Sadia e Perdigão e comandada pelo executivo Pedro Parente, começaram a consultar advogados sobre a possibilidade de pedir reparação pelas irregularidades mencionadas na Operação Trapaça, da Polícia Federal. Um grupo de investidores também está se movimentando para processar a acionista Odebrecht por perdas da Braskem relacionadas à corrupção na petroquímica.

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