Revista Exame

O sonho da riqueza está mais distante para o brasileiro

Consumidores mais pobres, dívidas e inadimplência em alta. Eis o dia a dia da crise. E estudos mostram que a renda deve continuar caindo

Bonança curta: a boa fase da economia, que permitiu a ascensão de famílias como os Cristoni, durou pouco  (Leandro Fonseca/Exame)

Bonança curta: a boa fase da economia, que permitiu a ascensão de famílias como os Cristoni, durou pouco (Leandro Fonseca/Exame)

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Da Redação

Publicado em 2 de fevereiro de 2016 às 13h26.

São Paulo — O padrão de vida do casal Luiz e Adna Ferreira Cristoni, visto na foto ao lado, deu uma arrancada em 2007, quando ambos tinham 26 anos. Naquele ano, Luiz decidiu largar o cargo de coordenador na empresa de atendimento telefônico Atento e trabalhar como corretor de imóveis.

As vendas de casas e apartamentos na cidade de São Paulo, onde a família mora, estavam crescendo — a alta foi de 30% naquele ano —, e Luiz ganhou dinheiro como nunca. Em pouco mais de um ano, conseguiu quadruplicar a renda da família, que, até então, era suficiente para pagar as contas do mês e olhe lá. Os Cristoni aproveitaram a boa fase para trocar os dois carros e investir em imóveis.

Numa época em que os preços só subiam, compraram três apartamentos ainda em construção e revenderam ao ficar prontos, com lucro. Como tudo parecia dar certo, o casal resolveu arriscar mais e abriu, em 2012, uma empresa especializada em analisar crédito e intermediar financiamento imobiliário. O negócio começou a funcionar em 2012 e o primeiro ano foi de crescimento.

Animados, eles decidiram se mudar com os filhos, hoje com 7 e 10 anos, para um apartamento maior. Em 2014, porém, com os primeiros sinais de desaquecimento da economia, o faturamento começou a cair — e, à medida que a crise avançou, os resultados só pioraram. Neste ano, as receitas já diminuíram 40%, e os Cristoni viram-se diante do drama de não ter como pagar a escola dos filhos.

Chegaram a avaliar a mudança para uma instituição pública, mas conseguiram negociar um desconto e decidiram manter os filhos na escola atual. Também cancelaram o telefone fixo, reduziram os planos de internet e dos celulares, pararam de ir a restaurantes e estão controlando no detalhe os gastos no supermercado.

Tudo isso ajudou, mas, se os resultados da empresa não melhorarem, eles cogitam trocar novamente de carro e de casa — agora, para economizar. “Estamos nos esforçando para passar por esta fase de maneira digna, mas não sabemos quando e como ela vai acabar”, diz Adna. Uma das grandes mudanças que aconteceram no país na última década foi o aumento da riqueza.

De 2000 a 2013, a renda per capita cresceu 35% em termos reais e chegou a 27 420 reais por ano. Com mais dinheiro no bolso, e farta oferta de crédito, os brasileiros passaram a consumir desenfreadamente, de roupas e celulares a automóveis e apartamentos. Como mostra a história dos Cristoni, novas empresas surgiram para atender a essa demanda, e isso sustentou a expansão da economia.

Atualmente, porém, vivemos os primeiros sinais de reversão da tendência. Em 2014, quando o crescimento do produto interno bruto caiu a zero, a renda per capita diminuiu 1% — e dificilmente a queda vai parar por aí.

Estudos feitos, a pedido de EXAME, pelas consultorias 4E e Tendências e pelo economista Jorge Arbache, da Universidade de Brasília, preveem uma redução real de 4% neste ano e de mais 2,5% em 2016.

Com um imbróglio na política que arrasta para baixo a economia, o país vive uma fase de perdas que deve ser prolongada, pois ninguém ainda conseguiu vislumbrar uma saída (leia as entrevistas com José Olympio Pereira, do banco Credit Suisse, e Barry Eichengreen, da Universidade da Califórnia, nas pág. 33 e 38).

De acordo com os estudos, apenas por volta de 2022 os brasileiros devem voltar a ter um nível de renda semelhante ao de 2013, o mais alto até então — isso se a economia crescer, no mínimo, 2% ao ano de 2017 a 2022, uma previsão que muitos economistas consideram otimista.

Se for levado em conta o efeito da variação cambial, a perda de renda é ainda maior e a recuperação deve demorar até o início da década de 2030. Em fenômeno que caracterizou o período de expansão da economia brasileira a partir de 2005 foi o encorpamento da classe C.

Segundo a consultoria Tendências, um total de 3,3 milhões de famílias brasileiras superou a marca de 2 000 reais de renda por mês e passou a integrar a chamada nova classe média de 2006 a 2012. Agora a consultoria prevê o movimento inverso: de 2015 a 2017, mais de 3 milhões de famílias devem decair da classe C e engrossar as classes D e E.

Se a previsão se confirmar, será o primeiro ano de aumento expressivo no número de pobres desde 2003. “A crise está prejudicando o desenvolvimento de toda uma geração”, afirma o economista Marcos Lisboa, presidente da escola de negócios Insper.

150 000 lojas fechadas

O aumento do desemprego e da inflação, dois dos indicadores mais perversos da crise atual, está na raiz desse empobrecimento. Quem está empregado convive com reajustes salariais mais baixos, muitos deles inferiores à inflação, e tem o poder de compra reduzido. Além disso, com juros mais elevados, ficou mais difícil financiar a aquisição de bens de valor mais alto, como eletrodomésticos, imóveis e veí­culos.

Todos os setores da economia já sentiram o baque, alguns em maior grau. Um dos mais prejudicados é o de automóveis. As vendas caíram 20% de janeiro a setembro e chegaram ao menor patamar desde 2007. Com isso, 691 revendedoras de veículos fecharam as portas. O que assusta é que esse número é uma fração de uma estatística mais ampla.

De acordo com a Confederação Nacional do Comércio, em razão da queda de 3% nas vendas do varejo, quase 150 000 lojas pararam de funcionar no país de janeiro a agosto. “Parece inevitável que 2015 seja o pior período do varejo brasileiro”, diz Fabio Bentes, economista-chefe da entidade. Muitas empresas estão se preparando para isso.

Com uma redução de 15% nas receitas e de 70% no lucro neste ano, a revendedora de eletroeletrônicos Via Varejo, dona das marcas Casas Bahia e Ponto Frio, demitiu 11 000 funcionários — um sexto do que tinha — e, apenas nos últimos três meses, fechou 31 lojas.

“As empresas estão se ajustando a um nível de consumo menor, que será a realidade daqui para a frente”, afirma Gustavo Oliveira, analista do setor de varejo do banco UBS. Os economistas começam a se questrionar sobre como a atual recessão po­de ser comparada a outros momentos da história. A estimativa média indica uma retração de 3% do PIB neste ano e de 1,4% em 2016.

Se parar por aí, essa queda “perde” para outros momentos, co­mo a crise do governo Collor. Mas um destaque nesse ranking a crise de hoje já tem: a única vez em que o PIB caiu por dois anos seguidos foi em 1930 e 1931, como consequência da queda da bol­sa de Nova York em 1929. Diante des­se cenário, são pouquíssimas as empresas que estão investindo.

Mesmo que quisessem investir, muitas empresas encontrariam dificuldades para bancar os projetos. Os financiamentos do ­BNDES caíram 25% neste ano. Os bancos comerciais também estão emprestando menos, cobrando juros mais elevados e exigindo mais garantias. Captar recursos no exterior ficou mais arriscado em razão da instabilidade do câmbio.

Além disso, os investidores estão sumindo da Bovespa. Desde 2010, o valor de mercado das companhias abertas caiu 40% em termos reais, o que significa uma diminuição de 1,2 trilhão de reais, segundo um levantamento da empresa de informações financeiras Economatica.

Quando isso começa a acontecer, o efeito é o desalento — os empresários deixam de acreditar no próprio negócio e passam a querer vendê-lo. “As empresas nos procuram para encontrar soluções para sobreviver à crise. Mas esse é um processo desgastante. Muitos empresários acabam achando melhor vender”, diz Marcos Nogueira Simões, sócio da Jequitibá, consultoria que assessora empresas de médio porte.

Até o primeiro semestre do ano, a Jequitibá recebia cinco sondagens de clientes por mês, e a maioria queria comprar concorrentes. Hoje são cerca de 20 consultas mensais — e 18 delas são de empresários querendo vender.

Outro levantamento da Economatica mostra que a rentabilidade média das companhias de capital aberto caiu de 14,3%, em 2010, para 6,2%, neste ano — bem abaixo do que rende uma aplicação em título público. Um efeito do empobrecimento do país é a elevação da inadimplência.

Até agora, o impacto foi maior entre as companhias de grande porte, e isso é explicado, principalmente, pela Operação Lava-Jato e pelos cortes no plano de investimentos da Petrobras. Desde o início do ano, grandes empreiteiras envolvidas na Lava-Jato, como OAS, Galvão Engenharia e Schahin, pediram recuperação judicial e, assim, suspenderam temporariamente o pagamento de suas dívidas.

Segundo a empresa de informações de crédito Serasa Experian, o número de pedidos de recuperação judicial é recorde, e as grandes companhias representam 19% desse total, a maior proporção desde 2007. A Petrobras anunciou que vai diminuir seus investimentos em quase 80 bilhões de reais até 2019, o que arrasou o planejamento financeiro de milhares de fornecedores.

Dados do Banco Central mostram que os bancos privados foram bastante atingidos por esses problemas: a inadimplência das grandes companhias nessas instituições dobrou desde o fim de 2014 e chegou a 1,6% do total da carteira de crédito. Há diversas outras empresas em situação complicada no país, e sua capacidade de pagar os credores vai depender da extensão da crise.

Por ora, a previsão da maioria dos analistas é que a economia começará a se recuperar em 2017 e, se isso acontecer, é provável que a inadimplência das grandes companhias fique sob controle, na opinião de executivos de mercado.

“O problema é que, se a recessão durar mais do que o esperado, podemos ver um novo ciclo de calotes, porque a situação financeira de algumas empresas continua bastante difícil”, diz um analista de banco. Um caso dramático é o da incorporadora PDG, cuja dívida de 6,9 bilhões de reais equivale a três vezes e meia seu faturamento anual de 2014.

Para piorar, a empresa teve prejuízo neste ano. Em agosto anunciou a contratação do banco Rothschild para reestruturar a dívida, o que levou a agência de risco Moody’s a rebaixar sua nota.

A inadimplência também começou a aumentar entre as pequenas e médias empresas: subiu de 4% para 4,5% no primeiro semestre, e analistas e executivos de mercado acreditam que esse movimento esteja apenas no começo, porque a recessão deve prejudicar ainda mais o resultado desses negócios. A dúvida que permanece é como os consumidores vão se comportar.

Apesar de o desemprego ter aumentado, a inadimplência dos indivíduos está praticamente estável há um ano e meio, segundo os números do BC. Isso se deve às indenizações e ao seguro-desemprego recebidos pelos trabalhadores demitidos. “Essas reservas tendem a durar seis meses. Depois disso, começam a aparecer os problemas de pagamento”, diz Silvana Machado, presidente da consultoria A.T. Kearney.

São poucos os brasileiros que têm uma reserva financeira relevante. Uma pesquisa do site de planejamento financeiro GuiaBolso, feita com 75 000 pessoas, mostra que apenas 9% conseguem poupar parte da renda no fim do mês. Outra conclusão é que 36% estão recorrendo ao cheque especial. 

Puxada pelos calotes dos consumidores, a inadimplência geral do mercado deve crescer a partir de 2016, de acordo com especialistas. Na opinião dos analistas do banco Goldman Sachs, a taxa, que estava em 3,1% em setembro, pode chegar a 3,7% até dezembro do próximo ano — uma das mais altas em dez anos.

Para fazer a estimativa, o Goldman analisou a variação da ina­dimplência durante quatro períodos de desaceleração econômica desde 2001. A conclusão é que o nível de calote ­sobe à medida que a crise piora, e cai quando começa a recuperação. Um desses ciclos ocorreu após a crise de 2008 e teve curta duração — a inadimplência subiu por menos de um ano —, porque o PIB voltou a crescer rapidamente.

Agora tudo indica que a retomada vai demorar bem mais. Não são apenas a recessão e o desemprego que influenciam a capacidade de pagamento de empresas e consumidores. Os juros dos empréstimos têm papel determinante. Quando a inadimplência sobe, os bancos elevam os juros.

Fazem isso na tentativa de compensar o aumento do risco e não perder rentabilidade num momento em que precisam de recursos extras para fazer provisões e cobrir as perdas provocadas pelos calotes. Para os devedores, porém, essa é uma lógica perversa, porque seus custos sobem justamente quando eles mais precisam de ajuda para pagar as contas.

As taxas médias para empresas e consumidores aumentaram de 22% a 24% desde dezembro, e a alta foi ainda maior nas linhas de crédito sem garantias, como as de capital de giro e crédito pessoal. Entrar no rotativo do cartão de crédito, por exemplo, custa 414% ao ano.

“Empresas ‘com sobrenome’, com garantias a oferecer, geralmente conseguem renegociar e ficar livres de pelo menos parte do aumento dos juros. Mas a realidade para os pequenos negócios e para os consumidores é bem mais difícil”, diz o diretor de um grande banco.
O futuro da inadimplência preocupa porque o endividamento de empresas e consumidores cresceu bastante na última década.

Uma pesquisa do Centro de Estudos de Mercado de Capitais mostra que o total de dívida das companhias abertas corresponde a 81% do patrimônio, em média. Em 2005, a razão era de 56%. Com a crise, os bancos estão emprestando cada vez menos, o que dificulta a rolagem dessas dívidas.

Na estimativa dos analistas do banco Credit Suisse, a concessão de crédito, em termos reais, vai cair neste e no próximo ano. De acordo com o relatório de riqueza global, produzido anual­mente pela seguradora alemã Allianz, a dívida das famílias brasileiras aumentou 13% apenas em 2014.

Com isso, houve uma queda de 5% no total de recursos financeiros dessas famílias — entre os 50 países analisados pela Allianz, a queda só foi maior na Grécia.

A reação dos bancos

A reação dos bancos a esse cenário tem sido elevar as provisões destinadas a cobrir as perdas geradas pelos calotes. Bradesco e Santander, que divulgaram seus resultados do terceiro trimestre antes do fechamento desta edição, aumentaram o nível de provisões em relação aos créditos em atraso para o maior patamar desde 2005, segundo um relatório do banco Brasil Plural.

“Essas instituições claramente passaram a se preparar para um cenário de piora da inadimplência”, diz Eduardo Nishio, analista do Brasil Plural. Ao divulgar os resultados do Bradesco, Luiz Carlos Angelotti, diretor de relações com investidores do banco, diz que a alta das provisões dá mais “conforto” para atravessar a crise.

Uma vantagem dos grandes bancos privados é que eles reorganizaram as carteiras de crédito nos últimos três anos, após sofrer com o aumento da inadimplência em linhas como as de financiamento de veículos e crédito para pequenas e médias empresas. Depois disso, passaram a ampliar a concessão de crédito consignado e imobiliário, que têm inadimplência mais baixa.

A situação é mais delicada para os bancos de médio porte. O custo de captação dessas instituições é elevado, o que faz com que tenham de cobrar mais para emprestar — e, geralmente, isso significa conceder crédito a quem tem um risco maior de ficar inadimplente e, por isso, aceita pagar juros maiores. “O ambiente é desafiador, mas a crise econômica não é nenhuma surpresa.

Os bancos tiveram tempo para se preparar e, hoje, estão numa situação confortável em termos de provisões e liquidez”, diz Manoel Felix Cintra Neto, presidente da Associação Brasileira de Bancos, que representa as instituições de médio porte. “O que deve acontecer é uma queda na rentabilidade.”

Na opinião dos analistas do Credit Suisse, até mesmo bancões terão dificuldade de apresentar retornos superiores ao custo de captação nos próximos quatro anos. Ainda que não seja o único país emergente com problemas — por razões diferentes, o PIB da África do Sul, da China e da Colômbia tende a crescer menos neste ano —, o Brasil deve ser um dos mais prejudicados pela crise.

Estimativas do Fundo Monetário Internacional indicam que a renda per capita da China deve ultrapassar a do Brasil pela primeira vez em 2016 — em 2010, era menos da metade da brasileira. O FMI prevê ainda que os mexicanos serão mais ricos do que os brasileiros. A razão é o desempenho débil da economia projetado para os próximos anos.

Para o FMI, nosso PIB deve crescer, em média, apenas 0,9% ao ano até 2020, enquanto Chile, México e Colômbia terão média de 3%. “O que mais preocupa é que é difícil enxergar um caminho para o crescimento do Brasil no médio prazo”, diz o economista Jorge Arbache.

É comum que países de renda média, como o Brasil, passem por períodos acelerados de expansão econômica, elevando a renda da população e provocando um salto no consumo. Mas uma nação só se torna rica de fato se consegue transformar esses picos de crescimento em algo duradouro.

Um estudo do FMI que analisou 138 países entre 1955 e 2009 mostra que os principais problemas que impedem o desenvolvimento são gargalos de infraestrutura, excesso de regulamentações, governos inchados e falta de abertura comercial. Não por acaso, o Brasil conjuga todos esses quesitos — e a recessão atual só tornou o sonho de um país rico algo ainda mais distante.

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