Revista Exame

Onde mora o segredo da medicina de precisão? No DNA

O sequenciamento genético de grandes populações pode eliminar custos e garantir o melhor tratamento para cada paciente

Parque em Reyjavik, na Islândia: isolada e quase homogênea, a população do país teve seu genoma estudado | Ragnar Th. Sigurdsson/AGB Photo

Parque em Reyjavik, na Islândia: isolada e quase homogênea, a população do país teve seu genoma estudado | Ragnar Th. Sigurdsson/AGB Photo

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Da Redação

Publicado em 5 de julho de 2018 às 05h00.

Última atualização em 5 de julho de 2018 às 05h00.

No edifício de oito andares no centro de Cambridge, cidade da região metropolitana de Boston, onde estão instaladas a Universidade Harvard e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, quase 500 cientistas da empresa farmacêutica americana Amgen se dedicam a estudar no presente moléculas que podem trazer alívio no futuro para quem sofre dos mais diferentes males. Ali, há quem se concentre em entender os mecanismos da dor, como a da enxaqueca, os anticorpos para o combate de diversos tipos de câncer, as proteínas para o tratamento de doenças inflamatórias e do Alzheimer. Nos laboratórios, visitados pela repórter de EXAME — com o uso de um traje especial para evitar contaminação do ambiente —, o tempo dos pesquisadores é diferente: dez anos podem se passar facilmente entre os primeiros estudos moleculares e, na melhor das hipóteses, o lançamento de drogas que sejam efetivamente prescritas aos pacientes. Ainda assim, muitas tentativas fracassam no caminho. Para encurtar esse tempo e acertar mais alvos, os cientistas da Amgen estão debruçados sobre os dados genéticos gerados numa ilha a 4.000 quilômetros de Cambridge.

A Islândia, nação nórdica que passa boa parte do tempo abaixo de temperaturas glaciais, foi o primeiro país a ter o sequenciamento genético de quase toda a população, que descende basicamente dos vikings. Com 337.000 habitantes, mais da metade dos islandeses doou amostras de sangue à experiência que pode mudar a maneira como os genes influenciam a construção de novos remédios. Apenas 2.600 islandeses tiveram os genes 100% sequenciados. O mapeamento dos genes do restante da população, que registra baixíssimos índices de imigrantes, foi inferido com base em dados genéticos mais limitados e registros de árvores genealógicas. Dois gigantescos bancos de dados orientam as pesquisas: um contém as informações genéticas de metade dos adultos do país. O outro é composto do prontuário médico do sistema público de saúde. A empresa islandesa deCode, criada nos anos 90 pelo neurocientista e ex-professor da Universidade Harvard Kari Stefansson, foi que desenvolveu a tecnologia para juntar todas essas peças e encontrou variantes genéticas raras e comuns associadas ao risco de doenças. Em 2012, a Amgen comprou a deCode por 415 milhões de dólares e, de lá para cá, mergulhou nos dados dos islandeses. “Com a deCode, mais que ninguém no mundo, estamos aprendendo como as variações do DNA afetam o risco de doenças”, diz Elliott Levy, vice–presidente de desenvolvimento global da Amgen. Desde que a empresa islandesa foi comprada, a Amgen multiplicou por 5 a validação genética em seu port-fólio. Cerca de 75% das drogas em desenvolvimento têm forte apoio dos estudos genéticos. A empresa também descontinuou 5% de suas pesquisas em razão das informações genéticas vindas da Islândia. Um dos primeiros resultados foi a identificação de uma nova variante genética que diminuiu em 34% o risco de doenças do coração e derrame. A deCode descobriu que um em cada 120 islandeses tem uma mutação que inativa o gene ASGR1 e que essas pessoas têm níveis mais baixos do chamado colesterol ruim. A Amgen está testando opções terapêuticas que replicam o comportamento da variante genética.

Laboratório da Amgen, em Cambridge: 75% das drogas em desenvolvimento têm forte apoio de estudos genéticos | Anne Cusack/Los Angeles Times /Getty Images

Experiências como a da Amgen indicam o caminho para as novas gerações de medicamentos. E toda a indústria farmacêutica e de biotecnologia está na corrida. A sueco-britânica AstraZeneca lançou em 2016 um projeto para sequenciar os genes de 2 milhões de pessoas em dez anos. Um consórcio de cinco farmacêuticas, entre elas a Abbvie, a Biogen e a Pfizer, lançou um projeto em janeiro para desvendar os genes de 500 000 voluntários britânicos. Além das empresas, os países estão investindo no sequenciamento genético maciço das populações. Na China, a província de Jiangsu começou a sequenciar os genes de 1 milhão de pessoas para compor o primeiro banco genético do país. Em maio, os Estados Unidos abriram as inscrições para que 1 milhão de americanos compartilhem seu DNA e dez anos de hábitos de saúde com o governo, projeto que vai consumir 1,4 bilhão de dólares. As informações vão compor um banco de dados que compara a genética, o estilo de vida e o meio ambiente de diferentes grupos de pessoas. Com os dados, os pesquisadores creem que vão aprender mais sobre a razão de algumas pessoas escaparem de certas doenças e outras não. “Há 14 países fazendo sequenciamento de populações. Cinco das maiores economias estão investindo em projetos próprios, incluindo o Brasil”, diz Francis de Souza, presidente da americana Illumina, uma das principais fabricantes de sequenciadores genéticos do mundo. “Esperamos que outros países sigam os exemplos ao longo do tempo.” Isso deve impactar o mercado de sequenciamento genético, que movimentou 7 bilhões de dólares em 2016 e deverá chegar a 27 bilhões em 2023.

O uso dos genes no desenvolvimento de novos tratamentos começou após o Projeto Genoma Humano. A iniciativa, que levou dez anos até ser concluída em 2003 e consumiu 3 bilhões de dólares, fez o primeiro grande mapa genético de seres humanos. Com ele foi possível identificar que cada pessoa tem cerca de 22.000 genes — e não 40.000, como se imaginava na época. O Genoma Humano, hoje na 38a versão, serve de referência para todas as novas tecnologias de sequenciamento. O problema é que não contempla as variações dos genes que cada indivíduo pode ter — e é aí que residem as doenças. Há dois grupos de mutações. O primeiro é o das raras e fortes, que causam cerca de 10% das doenças. Uma vez identificada a mutação, os riscos são altos de um indivíduo desenvolver uma doença. A atriz americana Angelina Jolie descobriu que carrega a mutação do gene BRCA 1, que representa um risco de 87% de desenvolver câncer de mama e 50% de sofrer câncer de ovário. O diagnóstico levou a atriz a se submeter a uma cirurgia preventiva para retirada das mamas e dos ovários. Outro grupo de mutações é o das comuns, com intensidade fraca e moderada, que, associadas a fatores não hereditários, como dieta inadequada e falta de exercícios, causam grande parte das doenças, incluindo diabetes, doença renal crônica, Parkinson, Alzheimer e 90% dos tipos de câncer. “É por isso que a tendência global é fazer o sequenciamento genético de grandes grupos, na base dos milhões de indivíduos, para juntar evidências de como as mutações fracas atuam para que haja ou não uma doença”, diz Guilherme Yamamoto, médico geneticista e pesquisador da Universidade de São Paulo.

A nova miríade de informações que deverão chegar aos cientistas nos próximos anos finalmente dará escala à medicina personalizada. Na história da indústria farmacêutica, a maioria das drogas funciona em 60% dos pacientes. “Com os testes genéticos, conseguimos maior clareza de diagnóstico, identificando assim quais medicamentos responderão melhor para cada tipo de paciente”, diz o inglês Fraser Hall, presidente da AstraZeneca no Brasil. “Mais de 80% de nossos medicamentos em desenvolvimento precisarão ser combinados com um diagnóstico complementar.” A estratégia de personalizar também ajuda a diminuir os crescentes custos de inovação da indústria farmacêutica. Estima–se que o custo de desenvolvimento de uma nova droga seja de 2 bilhões de dólares. De cada 100 moléculas que passam para o estágio pré-clínico, apenas uma ou duas acabam efetivamente no mercado.

O que permite usar o sequenciamento em larga escala hoje é o brutal barateamento das técnicas que fazem a leitura do DNA. Em 2001, o custo de sequenciamento genético era de 100 milhões de dólares por pessoa. Hoje, sai por 1.000 dólares. A redução do custo ocorreu graças à entrada dos sequenciadores de segunda geração, chamados de NGS, em 2007. A capacidade computacional dessas máquinas decodifica 2 trilhões de bases de DNA por dia — a primeira geração de sequenciadores conseguia decodificar 100.000 bases por dia. A expectativa é que nos próximos anos novas máquinas, com maior capacidade de leitura, baixem o custo de sequenciar o genoma humano para 100 dólares. “O barateamento tem sido tão rápido que as tecnologias de sequenciamento têm desafiado a lei de Moore”, diz João Bosco, fundador e presidente da Genomika, empresa de Recife que faz sequenciamento genético para farmacêuticas, hospitais e laboratórios de diagnóstico. Bosco se refere à profecia do americano Gordon Moore, um dos fundadores da empresa de microeletrônica Intel, que em 1965 disse que a cada 18 meses o preço dos chips cairia pela metade, enquanto o poder de processamento dobraria. Médico patologista, Bosco codirigiu durante sete anos a área de genética e imunologia do Instituto Nacional de Saúde, órgão do governo americano, em Bethesda, no estado de Maryland. Ele decidiu voltar ao Brasil em 2013 e criar sua empresa. “Com a popularização da tecnologia, vi que havia a oportunidade de criar um negócio aqui”, diz. Em 2017, a Genomika atendeu 20.000 pacientes e o hospital paulistano Albert Einstein se tornou seu sócio minoritário.

O Brasil dá os primeiros passos nessa corrida pelo mapeamento dos genes da população. A equipe da geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da Universidade de São Paulo (USP), analisa os dados colhidos do sequenciamento genético de 1.300 pessoas com mais de 70 anos de São Paulo. O estudo foca idosos saudáveis que levam vida independente e não apresentam doenças relacionadas ao envelhecimento, como Parkinson ou Alzheimer. No projeto, foram encontradas 207.000 mutações genéticas nunca antes descritas na literatura médica. Um quinto delas é potencialmente prejudicial. Mas os pesquisadores da USP também estão encontrando variantes que protegem os idosos dos efeitos da idade avançada. Foi descoberta uma idosa de 93 anos no projeto que carrega uma mutação que, aparentemente, evita o surgimento de Alzheimer. “Se houvesse uma amostra populacional maior, poderíamos comparar os dados com os de outras pessoas que carregam a mesma mutação e pesquisar novas aplicações”, diz Mayana. O problema é que falta financiamento para esse tipo de iniciativa no Brasil. As amostras dos genes dos brasileiros foram enviadas a San Diego, na Califórnia, e a tarefa foi feita pela empresa Human Longevity (HLI), fundada pelo bioquímico americano Craig Venter, um dos pioneiros no tema. Em troca do sequenciamento das amostras brasileiras, cujo custo estimado era de 2 milhões de dólares, os americanos receberam os dados dos idosos de São Paulo para fazer os próprios estudos.

Se para os cientistas não há dúvida de que as informações contidas nos genes de milhões de pessoas permitirão desvendar muitos mistérios da medicina, questões éticas estão sendo colocadas. A principal é: como fica a privacidade se dados genéticos forem compartilhados com empresas, como seguradoras e operadoras de saúde? “Essas companhias têm todo o interesse em saber qual cliente carrega nos genes mutações que podem acarretar doenças de alto custo. É justo cobrar do paciente pelo DNA que ele tem?”, diz Mayana. A resposta tem sido um uníssono não. A nova regulação de proteção de dados da Europa, aprovada em abril, dá poder ao cidadão no controle de suas informações digitais e de seu prontuário médico, o que inclui qualquer dado genético. Nos Estados Unidos, a lei proíbe qualquer compartilhamento dos laboratórios com outras entidades sem o consentimento expresso do paciente. No Brasil, ainda não há legislação específica, mas os cientistas têm seguido o padrão americano. No entanto, esse é apenas o início de uma realidade em que boa parte dos cidadãos terá as informações genéticas trabalhando em favor de sua saúde. Um futuro em que o sequenciamento genético será tão comum quanto o teste do pezinho, hoje aplicado nos recém-nascidos — para fazê–los viver mais e melhor. 

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