Moradias populares em Goiânia: o estado de Goiás tem o pior índice de interrupções de energia elétrica do país (Eduardo Justiniano/AGB Photo)
Da Redação
Publicado em 5 de dezembro de 2019 às 05h42.
Última atualização em 5 de dezembro de 2019 às 10h06.
Reestatização, encampação, suspensão de contrato. Termos que pareciam ter ficado no passado voltaram com força no Brasil de 2019. A mais recente disputa entre o poder público e a iniciativa privada ocorre em Goiás. O governador Ronaldo Caiado (DEM) e a Assembleia Legislativa do estado parecem estar determinados a aprovar um projeto de lei que retoma os serviços de distribuição de energia em Goiás, hoje operados pela companhia italiana Enel. A empresa, que atua também no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Ceará, ganhou em 2017 o leilão de concessão para prestar o serviço até 2045. De lá para cá, investiu 2 bilhões de reais na operação da Celg, distribuidora goiana. Entre os políticos locais, a expectativa é que o projeto tramite rapidamente na Assembleia goiana, segundo o presidente da Casa, o deputado Lissauer Vieira (PSB).
Caiado, por sua vez, já avisou que, se aprovado o projeto, vai assiná-lo em frente ao prédio da Celg. “Eu sou o governador, não sou um zé-mané que fica esperando o que Roma vai decidir. Preciso fazer o que é melhor para o estado”, disse o governador por telefone a EXAME. Caiado era contra a privatização da Celg antes mesmo de ela ter sido incorporada pela Eletrobras, em 2014, que ocorreu por causa de prejuízos seguidos e que não cessaram com a federalização. De 2014 a 2016, foram quase 2,4 bilhões de reais no negativo. Na segunda-feira 2 de dezembro, o governador entregou ao procurador-geral da República, Augusto Aras, uma representação contra a Enel, pedindo que o Ministério Público Federal intervenha para que a empresa promova uma melhoria no serviço.
O principal motivo do conflito entre o poder público e a Enel são reclamações sobre a qualidade do serviço da Celg: interrupções longas e falta de energia para novos empreendimentos no estado. De fato, Goiás teve em 2018, segundo o ranking da Agência Nacional de Energia Elétrica, o pior índice de continuidade — que mede as quebras de serviço — do país. A posição não é recente. Nos últimos anos, a colocação do estado tem se alternado entre a última e a penúltima da lista. “Estamos recuperando uma rede elétrica de grande extensão que ficou anos sem receber investimentos no período em que era estatal”, diz Nicola Cotugno, presidente da Enel no Brasil.
A qualidade do serviço prestado pela Enel levou à abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa em fevereiro deste ano. “Hoje, se um empresário quiser se instalar em Goiás, não há condições de obter energia elétrica”, diz o deputado estadual Cairo Salim, relator da CPI da Enel. Por causa da CPI, ainda em andamento, a empresa assinou um termo de compromisso em agosto deste ano estabelecendo medidas para acelerar os investimentos na Celg, aumentando a qualidade do serviço, diminuindo o número de interrupções e a duração de resposta a elas, e também atendendo à demanda reprimida no estado. Os primeiros prazos começam a vencer em fevereiro de 2020 e devem ser cumpridos, de acordo com a companhia italiana. A expectativa é que, até o fim do próximo ano, 70% da demanda reprimida tenha sido atendida.
Tensões entre concessionárias privadas e poder concedente não são novidade. “É uma mistura de populismo político com problemas econômicos e regulatórios”, afirma o economista Claudio Frischtak, sócio da consultoria Inter.B. A Lei de Concessões foi aprovada em 1995 e a Lei de Parceria Público-Privada (PPP) data de 2004. Um novo marco legal para as modalidades tem sido discutido no Congresso com o objetivo de atrair mais investidores (embora a atual versão do projeto de lei tenha ganhado tantos penduricalhos que se teme que, em vez de facilitar, dificulte). A consultoria Radar PPP monitora cerca de 1.100 projetos, em vários estágios, de concessões e parcerias público-privadas no Brasil. Dos que viram realidade, apenas uma minoria chega a um impasse insolúvel. Dos 240 contratos de concessões já assinados, apenas seis foram extintos antes do prazo.
Isso não impede que governos e empresas pressionem quem está do outro lado do contrato. “Algumas concessões mais antigas foram feitas com pouca consistência e, com a chegada da crise econômica, houve um impacto grande no modelo de negócios das concessionárias”, diz Fernando Marcondes, sócio da área de infraestrutura do L.O. Baptista Advogados. Em momentos de crise, governos ficam sem dinheiro para fazer repasses e pagar contrapartidas, levando a uma piora dos serviços prestados pelas concessionárias e a uma pressão para o fim dos contratos.
“Parecem ser casos isolados. Mas temos um Judiciário mais autônomo e com mais preparo para impedir esse tipo de arroubo populista”, diz Maurício Zockun, sócio da banca Zockun&Fleury e especialista em direito administrativo. Pode ser, mas essas discussões são um banho de água fria em quem olha com interesse o mercado brasileiro. Um levantamento da consultoria Inter.B mostra que a segurança jurídica se tornou o item de maior preocupação para os investidores no Brasil. Entre as causas de temor estão desde as constantes revisões tributárias até uma sensação de que o Judiciário não defenderá os interesses dos investidores ou levará muito tempo para resolver.
Não ajuda em nada que os contratos problemáticos se transformem em espetáculos com doses de dramaticidade. Desde dezembro de 2018, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), tem travado uma forte disputa com a concessionária Lamsa, responsável pela gestão da Linha Amarela, via expressa que liga a zona norte da cidade à Barra da Tijuca. No dia 27 de outubro, Crivella mobilizou equipes da prefeitura para derrubar as praças de pedágio na via. A ação foi suspensa pelo Judiciário no dia seguinte e a Lamsa, do grupo Invepar, voltou a cobrar a tarifa. Mas as fotos de tratores derrubando as cabines repercutiram. Crivella, então, encaminhou um projeto de lei de encampação da concessão à Câmara dos Vereadores. Foi aprovado e sancionado. O prefeito determinou que as cancelas das praças de pedágio fossem retiradas. Mas a ação foi, novamente, suspensa pela Justiça.
Segundo o gabinete do prefeito Crivella, uma sindicância realizada pela própria prefeitura identificou a existência de um prejuízo de mais de 1,6 bilhão de reais ao município no contrato, que seria causado, entre outros motivos, por sobrepreço nas obras. Como no Rio não há uma agência reguladora para o setor, cada lance da briga vira uma batalha judicial. Em nova investida contra a concessão, a prefeitura do Rio entrou com uma ação civil pública pedindo a redução da tarifa — hoje de 15 reais na soma entre os dois sentidos — para 2,10 reais. No momento, a Lamsa segue sua operação normalmente. Isso, claro, até o próximo dia de fúria do prefeito.
Enquanto estados brasileiros buscam saídas com o setor privado, os britânicos estão revisando a maneira de fazer parcerias | André Jankavski, de Londres
O Reino Unido é o berço de alguns dos principais nomes do liberalismo. Foi no país que nasceram os filósofos Adam Smith e John Locke, considerados os pais das ideias liberais. Além deles, a ex-primeira-ministra Margaret Thatcher foi quem massificou os processos de privatização no Reino Unido no século passado. Porém, nos últimos anos, observa-se um movimento contrário, principalmente quando o assunto são concessões e PPPs. Um levantamento feito pela organização Transnational Institute mostrou que houve 64 reestatizações de ativos no Reino Unido de 2000 a 2017. No mundo, foram 884 — sendo que Alemanha, França e Estados Unidos foram os três líderes (348, 152 e 67, respectivamente). O movimento ganhou força, principalmente, após a crise financeira de 2008.
Entre os principais motivos para essa mudança, segundo o relatório, estão a pressão popular por melhores serviços e as taxas menores. Não foi à toa que o economista Howard Davies, presidente do conselho de administração do Royal Bank of Scotland e ex-diretor da escola de negócios London School of Economics, disse à emissora de televisão BBC que boa parte dos projetos de parcerias era uma “fraude”. Um dos exemplos foi o que resultou na reestatização de uma parceria feita com as empresas Metronet e Tubelines para a reconstrução de linhas do metrô londrino. Auditorias apontaram que, por falta de controle financeiro das empresas, o governo teve perdas de 2,5 bilhões de libras. As empresas não conseguiram seguir com os contratos e quebraram. As parcerias, iniciadas no ano 2000 e somando investimentos de 20 bilhões de libras, foram descontinuadas em 2010, 20 anos antes do fim previsto para o contrato.
As críticas concentram-se, principalmente, no modelo de Iniciativa de Financiamento Privado (PFI, na sigla em inglês), um sistema criado há três décadas bastante utilizado pelo governo trabalhista de Tony Blair nos anos 1990-2000, mas que hoje se encontra sob controvérsia no Parlamento. O motivo são alguns casos em que os custos de obras e serviços estão se mostrando bem mais caros do que o previsto. Um relatório do Escritório Nacional de Auditoria, órgão parlamentar que vigia os gastos públicos, aponta que os contratos de PFI recentes têm saído de 2% a 4% mais custosos do que os empréstimos governamentais.
A construção do Royal London Hospital teve uma estimativa inicial de 1,2 bilhão de libras para as obras e manutenção. No entanto, o Tesouro britânico calculou que, com uma série de aditivos no contrato e com o pagamento obrigatório de 119 milhões de libras ao ano (mesmo sem aumento de receita), o custo total será de 6,2 bilhões de libras até 2048. Mas o mais rumoroso dos casos é o da empresa Carillion. Responsável por várias construções e gestão de prédios públicos, a Carillion empregava 43.000 pessoas e pediu falência em 2018. O governo teve de assumir a companhia e trabalha desde então para torná-la viável novamente. Foi a maneira encontrada para não parar a prestação de serviços.
Mesmo com os problemas e com as críticas, os projetos de parcerias continuam a ser feitos. No fim de novembro, a Transport for London, estatal de transportes, anunciou a assinatura de uma PFI de 1 bilhão de dólares para a construção do túnel Silvertown na região de North Greenwich, que passará por baixo do Rio Tâmisa. Para Marcos Siqueira, especialista de PPPs do Banco Interamericano de Desenvolvimento, a Europa está passando por um momento de revisionismo, mas o futuro das parcerias não está em xeque. “O que está havendo é uma discussão de que o risco precisa ser compartilhado entre público e privado e que as PPPs não servem para tudo”, diz Siqueira. “E só depois de 800 contratos começaram a aparecer questionamentos no Reino Unido. Logo, há muito espaço para crescer em outros países.” A atenção dos ingleses com as parcerias, no entanto, está redobrada. Para os brasileiros, vale o cuidado para aprender com os acertos e não repetir os erros de quem começou antes.