Revista Exame

O quebra-cabeça democrata nas eleições americanas

Com o início das primárias, Democratas colocam em teste dois tipos de candidato: o moderado e tradicional, e o progressista e engajador

Democratas: dos 29 candidatos do Partido Democrata que lançaram candidatura à Presidência no ano passado, 17 já desistiram (Aaron Josefcz/File Photo/Reuters)

Democratas: dos 29 candidatos do Partido Democrata que lançaram candidatura à Presidência no ano passado, 17 já desistiram (Aaron Josefcz/File Photo/Reuters)

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Filipe Serrano

Publicado em 30 de janeiro de 2020 às 05h28.

Última atualização em 30 de janeiro de 2020 às 12h33.

Oestados de Iowa e New Hampshire, nos Estados Unidos, não costumam chamar muito a atenção fora do país. Com uma população somada de apenas 4,5 milhões de habitantes e uma economia relativamente pequena para os padrões americanos, os dois estados não estão nem entre os mais populosos nem entre os mais ricos dos Estados Unidos. Contudo, em anos de eleição presidencial, como em 2020, Iowa e New Hampshire ganham um destaque fora do comum na vida política americana.

Os dois são os primeiros locais a realizar as eleições primárias — um processo demorado e complexo para escolher quais serão os candidatos que vão disputar a eleição presidencial em novembro. Como as primárias começam em fevereiro e só terminam em junho, o postulante que largar na frente nas disputas de Iowa e New Hampshire, nos dias 3 e 11 de fevereiro, já sairá com uma boa vantagem para ser nomeado o candidato presidencial.

Desde que o sistema das primárias foi criado, no fim dos anos 60, só em duas ocasiões o candidato nomeado não venceu nem em Iowa nem em

New Hampshire, segundo um levantamento da professora Elaine Kamarck, da Universidade Harvard, especialista no sistema eleitoral americano. Foi o caso do democrata George McGovern, que perdeu a eleição para Richard Nixon em 1972, e o de Bill Clinton, eleito em 1992. Entretanto, mesmo nesses casos, as disputas das prévias ajudaram a catapultar o nome dos candidatos nacionalmente.

Foi o que aconteceu em outras eleições presidenciais recentes. Em 2016, Donald Trump ficou em segundo lugar em Iowa e liderou a votação em New Hampshire. Foi justamente depois dessa vitória que o atual presidente americano despontou nas prévias como um forte candidato republicano. “As primárias trazem à tona as fraquezas e os pontos fortes dos candidatos. É um processo doloroso, mas Iowa ajuda a dar o tom às prévias seguintes e seu resultado mostra quem ganhará impulso e quem não tem o que é preciso para vencer”, diz Melissa Michelson, cientista política da Universidade Yale e professora na Menlo College, na Califórnia.

Em 2020, não deverá ser diferente. Dos 29 candidatos do Partido Democrata que lançaram candidatura à Presidência no ano passado, 17 já desistiram e ficaram pelo caminho. A tendência é que a campanha continue afunilando daqui para a frente conforme os 12 candidatos restantes ganhem terreno, ou não, nas primárias.

Apenas em julho, depois de todo esse processo, o Partido Democrata deverá definir o nome de quem irá para a disputa com o presidente Donald Trump, que — exceto alguma surpresa — vai concorrer à reeleição. Até existem outros candidatos republicanos buscando a nomeação, mas Trump é disparado o nome mais forte. O Partido Republicano até cancelou as primárias em seis estados, indicando que Trump será o escolhido nesses locais.

Do lado dos democratas, já dá para identificar algumas tendências. As pesquisas de opinião têm mostrado uma preferência consistente por dois candidatos. De um lado está Joe Biden, político de 77 anos que foi vice-presidente nos governos de Barack Obama e senador por Delaware. Do outro, Bernie Sanders, senador pelo estado de Vermont, de 78 anos, que defende há décadas bandeiras como educação e saúde gratuitas, além de maior taxação sobre os mais ricos.

Joe Biden tem a vantagem de adotar uma postura considerada mais moderada e de já ter atuado no governo ao lado de um presidente popular, como Obama. Ele tem a preferência da maioria do eleitorado negro dos Estados Unidos e é visto como um político mais de centro do que Sanders, algo importante para conquistar o voto de eleitores conservadores que não estejam satisfeitos com o governo de Trump.

Já Bernie Sanders conta com uma base de apoio que tem sido cada vez mais importante numa eleição: um eleitorado engajado, que faz barulho nas redes sociais, e é mais esquerdista e diverso. É um grupo que vê em Sanders a possibilidade de fazer com que os Estados Unidos deem mais atenção a temas sociais, como moradia, saúde, desigualdade e educação — questões que outros eleitores preferem deixar para o setor privado.

Embora Joe Biden esteja na frente na média das pesquisas eleitorais, o apoio a Bernie Sanders cresceu em janeiro, antes das eleições primárias. Em Iowa e New Hampshire, ele é o favorito para levar o primeiro lugar. A recente crítica de Hillary Clinton, que afirmou num documentário que “ninguém gosta de Bernie Sanders”, mais ajudou do que atrapalhou.

Pete Buttigieg e Elizabeth Warren: eles também representam visões distintas no Partido Democrata | Alex Wong/Getty Images

Apesar da rixa Biden-Sanders, uma possível virada de um dos demais candidatos democratas não está descartada durante as prévias. Entre os que têm mais chance, segundo as pesquisas, estão Elizabeth Warren, senadora por Massachusetts, Pete Buttigieg, prefeito da cidade de South Bend, no estado de Indiana, e Michael Bloomberg, empresário bilionário e ex-prefeito de Nova York. Enquanto Bloomberg e Buttigieg apelam mais para um eleitorado democrata tradicional e de centro, Elizabeth Warren tem uma postura mais à esquerda, como Sanders.

Ela também defende, por exemplo, um programa de saúde gratuita nos Estados Unidos e vinha bem nas pesquisas até outubro, quando encostou em Joe Biden. No entanto, seu apoio dos eleitores caiu nos últimos meses e Warren estacionou no terceiro lugar. Michael Bloomberg (que não vai participar das eleições primárias em Iowa e New Hampshire) e Pete Buttigieg vêm logo em seguida. Outros candidatos que ainda aparecem nas pesquisas são o empresário do setor de tecnologia Andrew Yang e Amy Klobuchar, senadora por Minnesota.

Para analistas entrevistados por EXAME, o problema que os democratas têm pela frente é entender qual candidato terá mais condição de enfrentar Donald Trump nas urnas: um político moderado que queira consertar o que está errado e levar o país de volta à normalidade ou um candidato que deseje usar a oportunidade para impulsionar uma agenda mais à esquerda para os padrões americanos. Esse é o dilema enfrentado hoje.

Como o Partido Democrata é o mais popular entre os americanos não brancos (negros e latinos) e também entre as mulheres e os eleitores das grandes cidades, é natural que um candidato mais esquerdista esteja mais adequado a esse perfil de eleitores. “Há duas vertentes no partido hoje: a centrista, que está tensa, e uma progressista, mais à esquerda, que crê que o momento seja para mudanças estruturais. Acredito que essa segunda visão possa assustar os eleitores neste universo em que Trump é presidente e em que nada parece normal”, diz David Redlawsk, professor de ciências políticas na Universidade de Delaware e pesquisador de comportamento do eleitorado.

Qualquer que seja o candidato democrata escolhido, é certo que o presidente Donald Trump será um adversário difícil de derrotar. Ele tem a favor uma economia em crescimento e um nível de desemprego que está num dos patamares mais baixos da história. Mesmo nos chamados estados-pêndulo (como a Flórida), que ora votam em democratas, ora em republicanos, os números são favoráveis ao presidente. As recentes vitórias no plano internacional, como a assinatura de um acordo comercial com a China, também devem ajudá-lo. As primárias e a campanha de 2020 prometem.


O IMPEACHMENT, UMA ESTRATÉGIA ELEITORAL?

Poucos acreditam que Trump será cassado. Mas os democratas buscam fortalecer a narrativa de que ele pressionou a Ucrânia a investigar adversários

Donald Trump: nada parece abalar a popularidade do presidente | Yuri Gripas/Reuters

Quando o processo de impeachment contra o presidente Donald Trump chegou ao Senado em janeiro, poucos analistas acreditavam que alguma coisa diferente seria revelada durante o julgamento a ponto de mudar o resultado do imbróglio. Afinal, numa casa legislativa dominada por senadores republicanos, que nada têm a ganhar politicamente com o afastamento de Trump da Casa Branca, o resultado do processo já parecia estar dado desde o início: o presidente terminaria absolvido.

O que se tem visto até aqui, porém, é um julgamento que tem sido influenciado por notícias diárias sobre como Trump teria usado seu cargo para pressionar a Ucrânia a investigar seu adversário político, o democrata Joe Biden — ação que seria um crime de abuso de poder. Uma das revelações mais bombásticas foi a notícia de que John Bolton, ex-assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, teria escrito num livro prestes a ser publicado que o presidente Trump, de fato, instruiu que a ajuda militar à Ucrânia fosse retida como forma de pressionar o governo do país a investigar Biden.

Por ora, os senadores democratas têm aproveitado esses fatos para fortalecer uma narrativa de que o presidente Trump abusou do poder e deveria permanecer longe da Casa Branca, seja por meio de um impeachment, seja por uma derrota nas urnas em novembro. Se não forem suficientes para mudar a opinião do eleitorado, as revelações pelo menos podem assombrar o presidente e dificultar sua reeleição. “Em um mundo normal, o impeachment teria o poder de influenciar a eleição.

Mas isso não está acontecendo por enquanto porque nada parece abalar o apoio a Trump entre os eleitores republicanos. O que fará diferença para os democratas é nomear um candidato que incentive o eleitor a sair de casa e votar”, diz David Redlawsk, professor de ciências políticas na Universidade de Delaware. Diferentemente do que ocorre no Brasil, na política americana o voto não é obrigatório. Estimular a base a comparecer à urna, portanto, é chave para o sucesso. O jogo ainda está no começo.

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