Revista Exame

O puro suco da incerteza: como o clima ameaça a produção e a competitividade da laranja do Brasil

Como uma crise na cadeia do suco de laranja no Brasil desestabilizou gigantes globais num ciclo de prejuízos que pode custar caro ao agro nacional 

Fazenda de laranjas: aumentar a produtividade virou obrigação (Lau Paulinésio/Divulgação)

Fazenda de laranjas: aumentar a produtividade virou obrigação (Lau Paulinésio/Divulgação)

César H. S. Rezende
César H. S. Rezende

Repórter de agro e macroeconomia

Publicado em 21 de novembro de 2024 às 06h00.

Um sentimento azedo atravessa os produtores de laranja no Brasil. E esse azedume se reflete no cenário atual da citricultura no país. Muito se fala da soja e do milho, mas somos um gigante da laranja: 34% da produção global da fruta, 60% da produção mundial de suco e 75% do mercado global de suco de laranja está aqui. E essa pujança está ameaçada.

A estimativa para a temporada 2024/25 é de que o Brasil produza 8,8 milhões de toneladas, segundo dados compilados pelo Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus) e divulgados pela Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos (CitrusBR), entidade que representa a indústria produtora e exportadora de suco de laranja no Brasil.

Se confirmada, será a pior safra da laranja brasileira em 30 anos. “O que temos visto é uma prolongação dos períodos de seca e um aumento de calor extremo por intervalos mais longos. Isso impacta diretamente a produtividade, afetando a oferta de fruta e de suco”, afirma Ibiapaba Netto, diretor-executivo da CitrusBR. 

Como comparação, na última safra foram 12,5 milhões de toneladas produzidas no Brasil, segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). Os outros dois maiores produtores, China e Estados Unidos, com safras de 7,6 milhões e 6,1 milhões de toneladas de laranja, respectivamente, também enfrentam seus desafios.

No caso da China, a produção é destinada majoritariamente ao consumo in natura, enquanto nos Estados Unidos a capacidade produtiva vem decaindo a olhos vistos nas últimas décadas por causa de pragas e por opções como a dos produtores da Califórnia, que se dedicam ao mercado de frutas frescas. Diante disso, o mercado global de suco de laranja, uma potência de 1,4 milhão de toneladas e 7,5 bilhões de dólares anuais, vê o abastecimento de seu principal insumo em xeque. 

Naturalmente, as mudanças climáticas, cada vez mais frequentes nas contas do agronegócio, são ameaça de primeira ordem. “Algumas regiões enfrentaram períodos de 160, 170 e até 180 dias sem chuva”, diz Willians Bini, meteorologista e consultor sênior em Clima e Mudanças Climáticas. “Esse cenário, aliado às temperaturas extremamente altas, resulta em um déficit hídrico significativo e compromete diretamente a qualidade da laranja.”

Cria-se, assim, um cenário inusitado: de um lado a menor oferta da fruta faz o preço subir — e nessa situação o produtor vende a preços como nunca. Mas o comprador faz de tudo para driblar os custos. E, na ponta, o preço do suco de laranja nos mercados sobe continuadamente e as marcas recorrem a novas misturas, como o néctar, que tem mais água e menos fruta.   

O recuo na produção impacta todo o ciclo econômico, do processamento à exportação. No processamento industrial, são feitos dois tipos de suco. O primeiro é o suco concentrado e congelado (FCOJ), que passa por um processo de evaporação, reduzindo-se em seis vezes e atingindo -66 ºBrix, uma medida de concentração de açúcares.

O segundo tipo é o suco não concentrado, que passa apenas por pasteurização e é exportado em sua diluição natural, com 12 ºBrix. Com a menor oferta de laranja, a produção de suco também diminui, elevando os preços. Na Bolsa de Nova York, o preço da laranja saltou de 1.119 dólares por tonelada em 2019 para 5.364 dólares por tonelada em 2024 — uma alta de 379,7% em cinco anos, o que afeta negativamente o setor exportador.

No Brasil, o indicador utilizado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, mostra que somente neste ano os preços quase triplicaram, de 58,70 reais em janeiro para 136,51 reais em novembro. 

A situação é complexa. Ainda que o aumento de preços seja positivo para quem produz, o comprador demanda menos — num ciclo pouco alvissareiro para o setor. Na safra 2023/24, o Brasil exportou 961.300 toneladas de suco, uma redução de 9,3% em relação à temporada anterior, principalmente por causa do aumento dos preços, como comprovam os números da União Europeia.

O bloco, que é o principal importador do suco brasileiro, reduziu suas compras de 571.600 para 504.000 toneladas no período, queda de quase 12%. A alta dos preços levou alguns importadores a serem criativos.

“Alguns membros da nossa associação estão misturando suco de manga com suco de laranja, vendendo como mix. Outros adicionam água para criar néctar e até reduzem o tamanho das garrafas de 1 litro para 700 mililitros, tornando o preço mais acessível ao consumidor final”, afirma Klaus Heitlinger, diretor-executivo da Associação Alemã de Engarrafadores. 

Enquanto isso, outra ameaça se desenha: a queda no consumo de suco de laranja globalmente. Segundo Kees Cools, presidente da Associação Internacional de Sucos de Frutas e Vegetais (IFU), o consumo de suco de laranja na Europa recuou entre 15% e 20% no último ano, reflexo do aumento dos preços para o engarrafado que é repassado para o consumidor.

“O suco de laranja faz parte do estilo de vida saudável de muitos consumidores, mas precisa ser acessível e, no momento, não é”, afirma. Os números da atual safra 2024/25 reforçam o prognóstico de Cools. No primeiro trimestre (de julho a setembro) desta temporada, as exportações brasileiras de suco de laranja concentrado e congelado somaram 198.120 toneladas, uma redução de 26,73% em relação ao mesmo período da temporada 2023/24, e a perspectiva não é alentadora.

Com a competitividade do suco brasileiro em xeque, Heitlinger espera que a queda no consumo possa levar a uma redução de preços, o que possibilitaria um aumento das importações do produto brasileiro pela Europa. “Dependendo da queda no consumo, é possível que os altos preços do suco de laranja na origem também sejam reduzidos”, afirma o diretor da Associação Alemã de Engarrafadores.

Varejo: de janeiro a novembro, a caixa de laranja passou de 58,70 para 136,51 reais (Leandro Fonseca/Exame)

A Europa tem buscado abastecer seu mercado com frutas de países mediterrâneos, como Espanha, Marrocos, Itália, Grécia e Egito. No entanto, esses países estão mais focados em frutas frescas do que em suco ou suco concentrado e, portanto, não podem substituir o Brasil.

“A consequência da má safra no Brasil é agravada por safras ruins em outras regiões e países importantes. Como resultado, o preço das matérias-primas para engarrafadores e embaladores explodiu e está agora 350% mais alto do que a média dos últimos anos”, afirma Cools, da IFU. A “inflação do suco” tem levado o consumidor europeu a optar por outros produtos, como maçã, frutas sazonais ou misturas de frutas.   

Para Margarete Boteon, pesquisadora do Cepea na área de laranja, a queda no consumo de suco de laranja pode, no longo prazo, reduzir a base de consumidores, que podem acabar trocando a bebida por outras alternativas. “Se essa situação se prolongar, a grande questão é se, com uma retomada da oferta, conseguiremos reconquistar uma base mais ampla de consumidores, mesmo com uma eventual queda nos preços”, diz.

Na tentativa de garantir o abastecimento de suco e manter as exportações, algumas indústrias, principalmente em São Paulo, que registrou uma queda de 2,22% na produção de laranja em 2023, têm comprado laranjas da Bahia, quarto maior produtor nacional, com 610.000 toneladas em 2023, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

E o produtor baiano está disposto a vender, como afirmou à EXAME Reginaldo Corsino Nascimento, dono de uma fazenda de médio porte em Rio Real, principal polo de produção de laranja do estado. “Temos uma vantagem, já que aqui na Bahia produzimos laranja o ano inteiro por causa do clima e não temos pragas”, diz Nascimento. A expectativa do produtor é aumentar a produtividade nos próximos anos para 35 a 40 toneladas por hectare, em comparação com as atuais 30 toneladas por hectare.

Otimista, Kees Cool, da IFU, acredita que “as coisas vão melhorar”, embora o setor de citros ainda precise de tempo para se ajustar. Por enquanto, a sensação amarga na cadeia produtiva é de que “sobrou só o bagaço da laranja”.   

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