Luís 14, em batalha: as guerras inspiraram ideias sobre diplomacia | Album/Fotoarena /
Da Redação
Publicado em 6 de dezembro de 2018 às 05h20.
Última atualização em 7 de dezembro de 2018 às 18h41.
Está no próprio nome. No cerne da atividade dos negócios se encontra a arte da negociação. Bem mais do que apenas nos negócios, aliás. “Pode-se dizer que a arte de negociar, bem ou mal conduzida, dá forma boa ou má aos assuntos gerais e a um grande número de particulares, e que há nela mais poder sobre a conduta dos homens do que todas as leis que eles inventaram”, afirmou o escritor e diplomata francês François de Callières, num livro escrito há 302 anos, agora republicado no Brasil.
O conceito de que os argumentos se sobrepõem às normas é extremamente atual. Segue a linha de que o Diabo mora nos detalhes, que as leis pegam ou não pegam, que há diversas formas de enxergar uma mesma questão. Na linguagem de Callières, a interpretação das leis permite uma infinidade de embaraços e pretensões duvidosas que só podem se resolver por meio de convenções, e estas “se tornam mais ou menos vantajosas para cada parte interessada na proporção do grau de habilidade dos negociadores que a elas se dedicam”.
Callières é um dos pioneiros da diplomacia tal como a conhecemos hoje. Na Europa que se modernizava, as relações entre os países atingiam um novo patamar de sofisticação, com Estados mais centralizados e um aparato administrativo mais consolidado. Nesse contexto, ele pregava a profissionalização das relações diplomáticas. Forneceu o primeiro contraponto de peso à doutrina do filósofo e político italiano Nicolau Maquiavel. Em O Príncipe, escrito no século 16, Maquiavel apontava que um soberano devia ser capaz de ludibriar os outros; apenas a aparência de boa-fé era necessária.
Na principal obra de Callières, Da Maneira de Negociar com os Príncipes, escrita no século seguinte, a busca dos interesses próprios é perfeitamente compatível com o comportamento civilizado, e até mesmo favorecida por ele. Callières está para Maquiavel mais ou menos como Jean-Jacques Rousseau está para Thomas Hobbes — de acordo com o primeiro, a sociedade se ergue pela cooperação dos seres humanos; para o segundo, o Estado surge para coibir os maus impulsos dos semelhantes.
No jargão contemporâneo, Callières defende o “ganha-ganha” como o caminho da prosperidade. A negociação visa harmonizar os reais interesses das partes envolvidas. O intuito da diplomacia é construir confiança, estabelecer uma boa reputação, e isso só pode ser feito com boa fé e constância. Por isso é preciso “negociar sempre, de maneira aberta ou secreta, em todos os lugares, mesmo que não haja no momento um fruto a ser colhido ou que aquele que se espera colher no futuro não esteja à mostra”. A negociação, em suma, não é uma técnica, mas um modo de vida.
Entre os estudiosos da diplomacia, Callières nunca saiu de moda. Seu livro era um dos preferidos de Thomas Jefferson, um dos patriarcas da Independência dos Estados Unidos. Tornou-se um clássico. Na década de 90, passou a ser usado também em cursos de negócios. No ano 2000, o britânico Charles Handy, um dos gurus do capitalismo consciente, publicou uma edição em que propunha as ideias de Callières como uma alternativa à gestão preocupada apenas com o lucro. Na mesma edição, o economista e diplomata John Kenneth Galbraith comentava: “É de imaginar por que se precisaria dizer qualquer coisa a mais sobre o tema”.
Foi essa a impressão que teve Guilherme Laager, ex-executivo da Ambev e da Vale, ex-presidente da Varig e atualmente empresário e consultor, quando folheou o livro de Callières em um sebo de Paris. Laager enxergou ali uma oportunidade, não tanto de negócios, porque não espera ter lucro com a edição, mas de melhorar a formação dos administradores brasileiros. Uniu-se ao amigo e editor José Luiz Alquéres para lançar o volume — que pretende ser o primeiro de uma série de clássicos internacionais.
A edição anterior da obra no Brasil, de 2001, está esgotada. A atual edição é caprichada, com um título adaptado para seduzir um público mais amplo: Negociar, a Mais Útil das Artes. O livro vem recheado de marcações ao longo do texto para facilitar aos leitores a ponte com nosso tempo. Laager chegou a firmar também uma parceria com a Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, que inaugurou uma disciplina de negociação. “Além disso, vamos fazer lá 12 talk shows em 2019, um para cada dois capítulos”, afirma Laager.
Como em qualquer curso, o sucesso das aulas que tomem por base o livro de Callières dependerá da contrapartida que o professor possa trazer. O livro tem partes completamente datadas, como ao desprezar a atuação das mulheres ou considerar que “o grau de inteligência seguiu, na Europa, o grau de calor dos diferentes climas”. Callières também considera que um rei poderoso o bastante não precisa negociar, pode simplesmente impor sua vontade, mas nos dias de hoje os líderes mais bem-sucedidos são os que convencem, em vez de mandar.
Os insights valiosos, porém, compensam em muito os conceitos perdidos no tempo. Callières recomenda, por exemplo, que os negociadores invistam em conhecimentos gerais, mas não a ponto de se tornarem arrogantes. “Um homem comprometido com o serviço público deve considerar que está destinado a agir, e não a permanecer fechado em seu gabinete, e que sua principal pesquisa deve ser sobre o que acontece entre as pessoas vivas e, preferencialmente, tudo que aconteceu entre os mortos”, diz o autor.
No campo da coleta de informações, o bom negociador “examina previamente todas as circunstâncias, o interesse e as paixões de quem o informa, por qual caminho podem ter descoberto os desígnios que apontam, se têm relação com o que acontece ou com o andamento dos assuntos (…) e uma quantidade de outros sinais sobre os quais uma pessoa hábil e sagaz tira acertadas conclusões”.
O uso de artimanhas e enganações não é apenas condenado pelo aspecto moral. Ele é deletério no longo prazo, porque alimenta rancores e traz danos à reputação. “Um negociador deve considerar que terá mais do que um assunto a tratar durante sua vida.” Os maiores sucessos são obtidos pela persuasão, e esta só é possível com o exercício da empatia. É preciso que o negociador “se despoje de seus próprios sentimentos para se colocar no lugar do rei com quem está tratando, que se transforme, por assim dizer, no rei, que penetre em suas opiniões e suas tendências, e que diga a si mesmo, depois de tê-lo conhecido tal como é: ‘Se eu estivesse no lugar desse rei, com o mesmo poder, as mesmas paixões e os mesmos preconceitos, que efeito produziriam em mim as coisas que a ele apresentei?’ ”
Callières recomenda que um bom negociador deve ouvir mais do que falar, e deve convencer em pequenas doses, sabendo “destilar gota a gota no pensamento daqueles com quem se negociam as coisas de que temos interesse em persuadi-los”. Uma última observação, que talvez já valha o livro todo, é que as pessoas em geral não gostam de confessar que estão erradas. Por isso “é necessário dominar a arte de alegar razões capazes de justificar o que fizeram”, para lisonjeá-las, e em seguida apresentar “razões mais fortes apoiadas em seus interesses para fazê-las mudar de sentimento e de conduta”.
As pérolas de sabedoria de Callières foram compostas um ano antes de sua morte e entregues na forma de carta a Philippe, duque de Orleans, o regente do império após a morte de Luís XIV (até que Luís XV atingisse a maioridade). Há duas interpretações para os motivos de Callières ter escrito a obra. A primeira é que, morto seu protetor, Luís XIV, que o nomeara secretário particular depois de ele ter sido fundamental no acordo que encerrou uma guerra de nove anos da França com uma coalizão de vizinhos, Callières tenha querido se mostrar valioso ao novo mandante.
A segunda hipótese é que o diplomata quisesse poupar a França de um novo período de guerras, típico do reinado de Luís XIV, que tanto custou em vidas e aos cofres públicos, deixando o país à beira da crise. Por interesse pessoal, pelo bem da França, ou mais provavelmente por ambos os motivos, Callières escreveu um texto que embasou as transformações da diplomacia — até então focada apenas em normas jurídicas e no status dos embaixadores. E que ainda tem o que dizer aos leitores, três séculos depois.