Terminal da APM, na área de Maasvlakte 2, em Roterdã: a produtividade pode aumentar 50% com a automação total das operações | Vincent Jannink/AFP Photo /
Flávia Furlan
Publicado em 2 de agosto de 2018 às 05h18.
Última atualização em 2 de agosto de 2018 às 05h18.
No píer de Wilhelminakade, que se estende ao longo do Rio Mosa, na cidade de Roterdã, a segunda maior da Holanda, prédios que alcançam a 150 metros de altura preenchem a paisagem, a maioria deles com escritórios de empresas. Numa terça-feira gelada de inverno, no início de março, as pessoas caminham com celular e pasta nas mãos, na correria normal de um dia de trabalho. Quase no final do píer, um dos inúmeros edifícios espelhados e com estruturas metálicas abriga a Autoridade Portuária de Roterdã, responsável pela operação do porto que leva o mesmo nome. Cerca de 1.150 pessoas trabalham na empresa, criada em 1932 como um departamento municipal. Em 2004, no entanto, a repartição transformou-se numa empresa pública de capital fechado, com 70% das ações pertencendo ao município e o restante ao governo federal.
Não foi apenas uma mudança burocrática. O movimento foi para tornar a gestão parecida com a de uma empresa privada: os funcionários são selecionados no mercado de trabalho, os conselhos de administração e fiscal traçam metas financeiras e acompanham o negócio e há rígidas regras de governança. Todas as receitas vêm das tarifas portuárias e do aluguel de área para empresas instalarem terminais e fábricas — o crescimento depende do esforço da equipe, diante da concorrência com portos do mundo todo. “Na prática, os políticos foram removidos do dia a dia da operação”, diz o holandês Olaf Merk, que lidera a área de portos do Fórum Internacional de Transportes, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico —— um sonho para o Brasil, onde a presença de políticos na área é uma constante e autoridades aparecem citadas como suspeitas de participar de negócios estranhos com empresas portuárias. “Mas os governos holandeses têm tido um papel notável em facilitar a burocracia para a expansão e a operação, reduzindo o tempo das cargas no porto.”
Partindo da ponta do píer, uma estrada de 40 quilômetros leva à área portuária, com galpões, gruas, contêineres e pequenas fábricas nas margens. Não há nenhum tipo de portão que marque a entrada do porto, que é uma área aberta para a circulação de veículos. Da estrada, é possível ver os rios Mosa e Reno com embarcações de transporte que vão demorar um dia para levar as mercadorias até a Alemanha ou a Bélgica, ou quatro dias até a Suíça. Paralelamente à rodovia, trafegam trens que são carregados no lado leste do porto, onde um grupo de empresas montou na década de 90 um centro ferroviário, permitindo mais de 250 ligações internacionais a Roterdã. Em outra conexão, chamada Betuwe, 137 trens trafegam 160 quilômetros todos os dias até a fronteira com a Alemanha, e daí rumo aos complexos industriais do país vizinho.
Foi na base da boa gestão e da infraestrutura de qualidade que o porto de Roterdã se consolidou como a principal porta de entrada e saída para as mercadorias na Europa, com 467 milhões de toneladas movimentadas por ano. A Holanda, por sua vez, tem sido considerada há seis anos como o país com a melhor infraestrutura portuária do mundo, na opinião de cerca de 13.000 executivos de 133 países, segundo o Fórum Econômico Mundial. Entre 1936 e 2004, Roterdã também era o mais movimentado do mundo, mas acabou ultrapassado pelos asiáticos, principalmente quando os chineses decidiram entrar com peso no comércio global. Hoje, Roterdã está em quinto na lista dos maiores em volume. Há alguns anos o mais importante para os holandeses era o crescimento portuário, com a abertura de terminais para adicionar capacidade. Para cumprir esse objetivo, de 2008 a 2013 foram abertos 1.000 hectares de uma nova área, chamada de Maasvlakte 2, ao custo de 3 bilhões de euros, com capacidade de dobrar a movimentação de contêineres.
Os anos de 2012 a 2016, no entanto, foram de muita volatilidade na participação de mercado, porque houve muitas fusões e aquisições na indústria de transporte marítimo, mexendo na origem e no destino das embarcações. Em 2017, a situação foi estabilizada e Roterdã teve um bom desempenho operacional. Mas, diante de tantas variáveis incontroláveis de mercado e concorrência, Roterdã decidiu focar aquilo que real-mente depende de sua gestão: não almeja mais ser o porto que movimenta mais carga, mas quer ser o mais inteligente do mundo até 2030. “Roterdã está na vanguarda de questões relacionadas a um porto inteligente, com inúmeras iniciativas relacionadas à digitalização e à sustentabilidade”, diz Neil Davidson, analista sênior para portos e terminais da consultoria marítima inglesa Drewry. “O porto abriu o primeiro terminal de contêineres automatizado do mundo na década de 90. E hoje tem quatro dos 16 que existem, mais do que qualquer outro.”
Em um passeio de lancha nas águas calmas de uma área tomada ao Mar do Norte e protegida por um dique, em Maasvlakte 2, a reportagem de EXAME pôde ver os guindastes e as empilhadeiras em tom azul bem claro de um terminal de contêineres da empresa holandesa APM Terminals, sem nenhum sinal de presença humana no descarregamento de um navio ali parado. O terminal, que começou as atividades em abril de 2015 após investimento de 500 milhões de euros, é capaz de movimentar por ano 2,7 milhões de contêineres. Ao final da construção, ainda em curso, poderá chegar a 4,5 milhões de contêineres. Os movimentos ali são feitos por máquinas: oito guindastes controlados remotamente pegam as caixas dos navios e as colocam numa frota de 62 veículos movidos a bateria. Eles deixam o conteúdo num pátio onde outros 54 guindastes empilham o material, depois levado para trens ou barcaças.
O efeito da tecnologia é claro: um estivador experiente consegue tirar 30 contêineres do navio por hora, o que vai caindo no decorrer do dia devido à fadiga e a interrupções. Como as máquinas mantêm o ritmo de trabalho, é possível elevar 50% a movimentação. “A automação representa um potencial de melhoria da produtividade em alguns portos, mas apenas 2% dos terminais do mundo estão nessa modalidade”, diz Alex Duca, diretor do programa de automação da APM Terminals. No Brasil, a automação em portos públicos está travada porque os contratos de arrendamento não têm prazo nem projeção de volume que justifiquem o investimento nessa tecnologia. Já nos terminais portuários privados, que seguem outras regras de operação, a divisão das cargas em diversos terminais existentes e a possibilidade de entrada de novos competidores são fatores que acabam reduzindo a capacidade de movimentação e o retorno do investimento na tecnologia. “Há ainda que considerar questões trabalhistas diante da automação, que precisam ser olhadas de maneira apropriada e gradual”, diz José Eduardo Bechara, diretor comercial da APM Terminals no Brasil.
Outro sinal do caminho que Roterdã quer seguir está nas margens do Mar do Norte, bem perceptível aos visitantes que por ali trafegam. A autoridade portuária mantém 96 turbinas eólicas, que geram 194 megawatts de energia para a operação. Em 1990, o porto impôs a meta de reduzir à metade sua emissão de carbono até 2030. Mas, agora, quer neutralizar as emissões até 2050. Uma consultoria foi contratada para estudar formas de alcançar o objetivo. A autoridade portuária dá descontos de 5% nas tarifas aos navios que têm o “selo verde” do estaleiro e impõe no contrato com as indústrias metas de uso de ferrovia e navegação fluvial no despacho das cargas para reduzir o transporte em caminhões.
A maior parte da carga no porto é petróleo ou derivado do óleo e acaba sendo processada em refinarias que estão no complexo industrial local, mas a autoridade portuária está estimulando a instalação de biorrefinarias e o uso do gás natural nas operações. “Precisamos unir governos, institutos de pesquisa e empresas para produzirmos com a natureza e promovermos o desenvolvimento”, diz Fokko van der Goot, engenheiro ambiental da Boskalis, prestadora de serviços marítimos, como dragagem, para o porto de Roterdã e presente em 90 países, com faturamento de 2 bilhões de euros por ano.
Parte da inteligência do porto de Roterdã consiste em entender que nem toda solução para seus desafios virá do esforço de seus funcionários. Ao longo dos séculos, universidades de ponta e grandes multinacionais foram criadas na região enquanto o porto se tornava o maior da Europa, num ecossistema que representa hoje 3% do produto interno bruto holandês. Até 2030, o porto quer se tornar um polo de logística e industrial líder em todo o mundo. Rumo a esse desafio, a autoridade portuária está aproveitando o ecossistema a seu redor. Em 2015, ela montou o Smart-Port, uma sociedade com a Universidade Erasmus, em Roterdã, com a Universidade de Delft, na cidade de Delft, com a prefeitura de Roterdã e com outros parceiros para desenvolver pesquisa científica na área portuária e marítima. “Antes dessa iniciativa, as pesquisas eram feitas sem objetivo”, diz Dirk Koppenol, gerente de portfólio da SmartPort. “Com ela, a pesquisa passou a ser direcionada para a demanda: só começamos um estudo quando temos um sinal claro de que as empresas no porto sabem quais serão os resultados e estarão dispostas a usá-los.”
Até agora, 70 estudos foram feitos, com o gasto de 30 milhões de euros, a maior parte em recursos da iniciativa privada. Em outra frente, em 2016, foi lançado um programa chamado PortXL para fazer o trabalho de mentoria e acelerar o crescimento de startups das áreas de transporte, energia e refinarias em portos de todo o mundo. No programa, os empreendedores têm acesso a 150 mentores. Ali, são desenvolvidas startups que visam a negócios como a produção de turbinas eólicas menores e mais silenciosas. “O porto está conseguindo atrair profissionais de qualidade e criar um ambiente propício à inovação”, diz Koppenol. No desafio para se tornar o porto mais inteligente do mundo, Roterdã está deixando o resto do mundo a ver navios.