Delfim Netto: “O Congresso sentiu o gostinho de sangue” (Germano Lüders/Exame)
André Jankavski
Publicado em 11 de abril de 2019 às 05h49.
Última atualização em 25 de julho de 2019 às 11h54.
O economista Antônio Delfim Netto está próximo de completar 91 anos. A experiência de ter sido ministro e ter passado como observador por diversos governos, aliada à lucidez com que trata os eventos políticos e econômicos, confere um peso especial à sua análise do início conturbado do mandato de Jair Bolsonaro. Para Delfim Netto, no entanto, o protagonismo do momento não está com o presidente, e sim com o Congresso.
Segundo ele, pela primeira vez em muitos anos, o Parlamento percebeu o poder que tem — e que supera o do próprio Executivo. Os deputados já demonstraram esse poder com a votação da Proposta de Emenda Constitucional do Orçamento Impositivo à revelia do Planalto. “O Congresso, de repente, sentiu o gostinho de sangue”, diz Delfim, que foi ministro da Fazenda no período da ditadura militar. Sim, ditadura. Para ele, não é possível dizer que o Brasil não teve um golpe em 1964 e muito menos que o nazismo é uma ideologia de esquerda. “Isso só pode ser piada”, afirma Delfim Netto.
Qual é sua análise dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro?
É um governo com muitas facetas. Algumas excelentes e outras tenebrosas. Na área da Justiça, por exemplo, há um programa razoável e que precisa obedecer aos ritos institucionais. Porém, é algo que já está caminhando. A área econômica está indo muito bem. A equipe colocou que sem o equilíbrio fiscal, que é a mãe de todos os equilíbrios, o país não voltará a crescer. E só vai crescer quando transferir o investimento público, especialmente em infraestrutura, para o setor privado por meio de concessões e privatizações.
Quais são as principais facetas positivas?
A equipe econômica está se destacando. O secretário Carlos da Costa, por exemplo, vem desenvolvendo um programa que terá uma importância muito grande no aumento da produtividade do trabalho. É o mesmo caso do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas. O efeito da administração da infraestrutura já é visível. Há um gigantesco salto qualitativo na área. Os leilões são o aspecto externo, mas por dentro é muito mais significativo. Basta ver o acordo que Tarcísio conseguiu com o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público. Ele está abrindo caminhos para que as coisas andem com mais rapidez. Em outros ministérios também há esse movimento.
O senhor acredita que o governo está seguindo o rumo certo?
Não podemos considerar que foram poucas realizações nesses 100 dias. Porém, o que está acontecendo nos últimos dias é consequência de tudo o que o Bolsonaro disse durante sua campanha. Toda ação dele foi para provocar uma satanização da política. Essa questão da “velha política” forçou o Congresso a pensar na própria posição. Os congressistas acabaram descobrindo que o poder está dentro da Casa. O poder não está no Executivo. Quem faz o orçamento e fiscaliza a execução é o Congresso. E o presidente Rodrigo Maia tem uma participação importante nessas decisões. Um exemplo foi a decisão de que será o Congresso que fará a reforma tributária. O governo só poderá dar palpite depois. O Congresso descobriu o poder.
O que faz com que o Congresso agora esteja fortalecido?
O Congresso descobriu que tem muito mais poder quando não exige contrapartidas não republicanas. Qualquer que seja o regime político, existe a divisão do poder. E isso não pode ser necessariamente um mal. É o fato mais natural da vida. Não precisa envolver coisas não republicanas. Com essa independência, os deputados deram a primeira demonstração de força ao aprovar em 60 minutos uma pauta-bomba montada para a ex-presidente Dilma Rousseff, em 2015. E o presidente precisa entender que ainda há outras escondidas. O Congresso, de repente, sentiu o gostinho de sangue. No caso da Previdência, o Parlamento analisará a reforma e acredito que aprovará uma parte dela. Estamos em um momento novo na história. A má política ficou visível e nos levou para o desastre. Hoje, o Congresso é o poder.
O Congresso se tornou o poder por que percebeu a importância que tem ou por ocupar um vácuo?
O vácuo ocorreu pelo próprio processo que é a combinação da Operação Lava-Jato com uma onda jacobina de vingança que vemos nas redes sociais. O maior beneficiário eleitoral disso foi o presidente. As pessoas não querem Justiça, mas vingança. Esse Congresso, principalmente o PSL, é produto desse salvacionismo. Mas há resultados nos atos que você pratica e nas palavras que você fala. A correção da má política é o fortalecimento do Congresso.
Então, paradoxalmente, o próprio presidente está tirando poder do Executivo?
O presidente jogou fora o inconveniente instrumento que ele tinha de comprar o Congresso. Foi a maior contribuição dele. Aquela forma de fazer política, que é chamada de “toma lá dá cá”, leva à desgraça. Estamos tendo um aperfeiçoamento da administração, mas que não foi algo projetado. Foi um acidente derivado da satanização dos políticos. Eles precisam ser criticados, mas os únicos que devem ser satanizados são os maus políticos. A política é a forma civilizada de resolver conflitos e acredito que estamos caminhando nessa direção. O Executivo está dando algumas trombadas, mas está voltando para sua caixinha, como em qualquer país do mundo.
Na sua opinião, o Poder Executivo brasileiro foi desvirtuado nos últimos anos?
Quando se construiu um presidencialismo de coalizão por meio do “toma lá dá cá”, o processo só poderia terminar como terminou. O processo foi levado para o paroxismo. Era uma divisão de poder defeituosa. Havia uma coordenação geral e cada ministério era propriedade de um partido. Aí os maus políticos faziam o que queriam, menos o principal, que era desenvolver o Brasil.
O senhor falou de um governo com facetas tenebrosas. Seria a ala ideológica?
Essa é a mais complicada. Eles falam que não houve golpe em 1964, mas é evidente que houve. Um golpe, por definição, é a quebra da disposição constitucional. Já tinha havido um golpe antes, quando impediram a posse do João Goulart e implantaram o parlamentarismo. E, depois, houve um movimento plebiscitário que fez voltar o presidencialismo. Se tivesse parado por lá, poderia dizer que houve um golpe com poder majoritário da sociedade. Mas não parou.
E houve uma ditadura?
Evidentemente que houve. Sobre isso, não pode haver nenhuma dúvida.
Os ideólogos podem atrapalhar o governo?
Já estão atrapalhando. Por exemplo, o Ministério da Educação é uma tragédia. O Vélez Rodríguez não tem condições de ser ministro [no dia 8 de abril, Rodríguez foi substituído por Abraham Weintraub]. Há sinais de exagero também nas relações internacionais. Dizer que nazismo é socialismo só pode ser piada. A economia alemã com o Adolf Hitler era baseada na propriedade privada. Tudo isso atrapalha o governo.
A ala ideológica quer mais criar conflitos do que soluções?
Ninguém resolve conflito por meio de tuítes. O avanço da comunicação criou um instrumento de organização que está fora de qualquer poder. Hoje, qualquer um de nós pode se posicionar. Mas as pessoas querem falar com quem? Para o grupo que pensa como elas. Dessa maneira, esse grupo vira portador de uma “verdade”. Qual é a tendência disso? Separar a sociedade em dois blocos. E, quanto mais esse sistema funciona, mais ele radicaliza e afasta os grupos.
E quais são os efeitos?
Todos os preconceitos que existem normalmente e que não possuem nenhuma justificativa empírica se manifestam. Veja a facilidade com que se assassinam reputações nas redes sociais. Agora, qual será o maior efeito? Quando você usa a rede social, que é flutuante e desinformada, pode se tornar um problema. O filósofo Platão já dizia que a massa é volúvel — ou vai para um lado ou vai para o outro. Virará um Palmeiras e Corinthians sem solução.
Se o jogo virar, o presidente poderá sofrer as consequências?
Exatamente. As redes sociais estão trazendo coisas muito novas e que não sabemos como analisar.
Qual é sua opinião sobre os militares no governo?
Existe essa ala que é ligada às Forças Armadas. Digo ligada porque ela não é as Forças Armadas. Um general da reserva nada mais é do que um civil desempregado, porém muito bem qualificado. Nesse ponto, devemos ao Bolsonaro a descoberta de uma mina de ouro. Esses nomes se educaram muito nos últimos anos e podem ser utilizados na administração. São pessoas de alta qualidade. Porém, isso não significa que é o Exército que está no governo. Há uma grande confusão quanto a esse tema.
O que o senhor acha que o presidente Bolsonaro precisa mudar para fazer um bom governo?
Eu acredito que o presidente Bolsonaro tem de, na verdade, reexaminar a forma como está administrando. E compreender que existem áreas brilhantes e áreas escuras. É melhor para ele e para o Brasil continuar focando essas áreas brilhantes e jogar o resto no escuro.