Revista Exame

O plano da nova Sabesp: empresa corre para investir R$ 68 bilhões até 2029

Após a privatização, começa um novo desafio: universalizar o saneamento até 2029. O prazo é apertado. O Brasil, carente de um chacoalhão na gestão pública, está de olho

Rio Pinheiros, em São Paulo: símbolo da falta de saneamento no estado, o curso de água deve ficar despoluído até 2029 com novos investimentos

Rio Pinheiros, em São Paulo: símbolo da falta de saneamento no estado, o curso de água deve ficar despoluído até 2029 com novos investimentos

André Martins
André Martins

Repórter de Brasil e Economia

Publicado em 22 de agosto de 2024 às 06h00.

Última atualização em 30 de agosto de 2024 às 13h19.

Com os prédios espelhados da Avenida Berrini e a Ponte Estaiada ao fundo, o barco corta as águas esverdeadas do Rio Pinheiros em um bonito dia de inverno. Num futuro próximo, essa viagem pode ser uma realidade para os moradores de São Paulo. Por enquanto, é um trajeto possível apenas para os técnicos que monitoram a saúde do curso d'água na zona sul da capital. O tom esverdeado é resultado da intensa presença de lodo, e o cheiro, embora menos intenso que em anos anteriores, ainda não é agradável. A visita que a EXAME acompanhou aconteceu uma semana depois do evento mais relevante para o futuro do Pinheiros e do Tietê, o igualmente poluído rio onde deságua: a privatização da Sabesp, a empresa de água e saneamento de São Paulo.

Em 2029, a nova Sabesp, que agora tem o governo de São Paulo como sócio minoritário e a Equatorial como acionista de referência, precisa conectar 90% da rede ao esgoto. Seria uma vitória para os rios Pinheiros e Tietê e para os moradores de São Paulo. Seria, também, um marco na gestão pública do Brasil — um país que precisa de investimentos superiores a 400 bilhões de reais todos os anos em infraestrutura.

Com a privatização da Sabesp, o governo paulista concretizou o mais ambicioso projeto de parceria público-privada do Brasil. Foi um processo minucioso de 500 dias, liderado pela secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, Natália Resende, e pelo governador do estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos). “Esse processo representa a maior descarga de investimento em saneamento básico da nossa história”, afirma Tarcísio à EXAME. “A Sabesp se tornou um ator nacional para ganhar licitações. A companhia passa a ter capital, mercado, condição e tamanho. Estamos permitindo que a Sabesp, agora em uma lógica privada, voe”, diz o governador (veja a entrevista completa aqui).

O processo concretiza uma ideia nascida há 30 anos. Desde 1994, inspirado pela privatização da Embraer, o governo paulista cogitava vender a estatal, mas esbarrava na resistência política e na legislação. Naquele ano, a Sabesp se tornou uma companhia mista de capital aberto, com o estado como o único acionista. Três anos depois, em 1997, a Sabesp abriu seu capital na Bolsa de Valores de São Paulo e, em 2002, em Nova York. Apesar dessas mudanças, 50,3% das ações e o controle continuavam com o estado.

A gestão estatal buscava qualidade dos serviços, mas não tinha caminhos para uma ampliação mais ambiciosa dos investimentos. “Administrar a Sabesp era como dirigir uma Ferrari na garagem”, diz Jerson Kelman, presidente da Sabesp de 2015 a 2018. O cenário começou a mudar com a aprovação do novo Marco do Saneamento, em 2020. O novo conjunto de leis facilitou os gatilhos para que os contratos de programa com os municípios, ineficientes, sem metas nem diretrizes claras, fossem substituídos por contratos de concessão.

Um trabalho de convencimento com os prefeitos em ano de eleição municipal possibilitou que os contratos com os municípios, que tinham diferentes datas de finalização, fossem unificados com o mesmo prazo de encerramento, 2060, e sob o mesmo modelo contratual e regulatório, mas com anexos individuais que atendem às especificidades de cada localidade. No total, 371 dos 374 municípios atendidos pela Sabesp toparam um novo contrato e aderiram a uma nova forma de gestão regionalizada, batizada de Unidade Regional de Serviços de Abastecimento de Água Potável e Esgotamento Sanitário (URAE-1). “Eu estava tão imersa que esqueci que tínhamos Olimpíadas neste ano”, diz a secretária. “Tudo foi muito bem estudado, por isso podemos prever de forma responsável que conseguiremos atingir os objetivos.”

Natália Resende, secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística de São Paulo: todos os incentivos alinhados no contrato vão garantir universalização até 2029 (Leandro Fonseca/Exame)

O processo, que passou por aprovação na assembleia legislativa estadual e follow-on na B3, foi aprovado em agosto pelo Cade, o órgão de controle da concorrência. Daqui para a frente, é hora de tirar o extenso planejamento do papel. O desafio será enorme. Em meados de setembro, é esperado que a Equatorial assuma a empresa e, com isso, o desafio de investir 68 bilhões de reais até 2029. Em média, a Sabesp vai precisar investir 11,3 bilhões de reais por ano, mais que o dobro do que realizou nos últimos sete anos, um valor de 4,7 bilhões de reais por ano. “Entendemos que, com o nosso modelo de gestão e nossa capacidade de captar os recursos, a Sabesp vai investir o necessário para universalizar”, diz Maurício Velloso, diretor corporativo de clientes e serviços do Grupo Equatorial.

A Equatorial foi criada em 1999 e tem expertise reconhecida no mercado de energia; opera a empresa de saneamento do Amapá desde 2022, com 800.000 clientes. Na Sabesp, serão 27 milhões. Os executivos da empresa afirmam ter estudado o setor a fundo nos últimos cinco anos. “Tivemos de começar a nossa operação no Amapá do zero. E hoje já estamos conseguindo registrar resultados para a população, mesmo com a grande complexidade da operação”, diz Velloso. Na Sabesp, a maior diferença de curto prazo pode vir da cultura corporativa. “Acreditamos que tem muita coisa para evoluir na empresa. A Sabesp precisa se tornar mais ágil, ter um modelo de gestão mais orientado a resultados e com mais velocidade”, afirma o diretor.

Uma boa notícia: a transformação necessária não começará do zero. Sob o comando do atual CEO André Salcedo, a Sabesp chega às mãos da Equatorial após uma reestruturação que trouxe o máximo de eficiência em um ambiente estatal. Nos últimos três anos, a empresa reduziu o custo com pessoal em 2,7 pontos percentuais, diminuiu o número de unidades operacionais e diretorias, para um trabalho mais integrado entre as áreas, além de focar em reduzir perdas na distribuição de água. “Iniciamos estudos e contratamos consultorias de mercado, porque estamos preocupados em entregar algo organizado para o novo acionista”, diz Salcedo.

Entre os processos adiantados está um Plano de Demissão Voluntária (PDV), que teve adesão de mais de 2.000 servidores, o que gerou um alívio aos cofres da companhia. “Temos um protocolo de transição que garante a continuidade de tudo que a companhia tem de fazer nesse período”, afirma. A atual direção, inclusive, já começou a executar o audacioso plano de investimento do novo contrato. “A curva de investimento é factível e enxergamos que conseguiremos chegar aos objetivos”, diz Salcedo. Segundo dados da estatal, cerca de 14 bilhões de reais já estão em execução, 27 bilhões de reais estão em processo de contratação e não serão contratos via licitação e normas estatais, e outros 27 bilhões de reais estão em processo de modelagem. Todo esse valor será investido no aumento de ligação de água, coleta e tratamento de esgoto.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e seus secretários na B3: privatização da Sabesp gerou a maior oferta pública de 2024 no Brasil (Mônica Andrade/Governo do Estado de SP)

Entre os velhos desafios da nova Sabesp está realizar mais ligações de água e esgoto, considerando principalmente favelas e áreas rurais, hoje excluídas, que devem acrescentar mais de 1 milhão de pessoas à rede. As maiores e mais desafiadoras obras são as das cinco maiores estações de tratamento de esgoto da Sabesp, que já estão em andamento. Localizadas em Barueri, ABC, Parque Novo Mundo, São Miguel Paulista e Guarulhos, elas representam o maior volume de tratamento das 598 estações espalhadas pelo estado.

A de Barueri, por exemplo, é a maior da América do Sul, com tamanho equivalente a 80 campos de futebol e responsável pelo tratamento de 60% do esgoto da Grande São Paulo. O plano de 16 bilhões de reais é dobrar a capacidade de tratamento de resíduos. Serão mais 869 quilômetros de instalação de coletores-tronco de esgoto e interceptores e 667 quilômetros de redes coletoras. O resultado será o salto do patamar de 70% do esgoto tratado hoje para 90% em 2029, e mudar a realidade de cidades como Guarulhos, a segunda maior do estado, que não trata nem um terço do seu esgoto. “A Sabesp não vai poder adotar a mesma estratégia. Ela vai precisar rapidamente se transformar em uma concessionária, seguindo o modelo privado”, avalia Isadora Cohen, sócia da ICO Consultoria e ex-secretária do Programa de Desestatização de São Paulo.

Cohen analisa que, de início, a Equatorial precisa rever a lógica de compras de suprimentos para uma realidade privada e adaptar a estrutura jurídica para conseguir autorizações e licenças públicas para a realização de obras necessárias para atingir a meta de universalização. “Esta nova Sabesp precisa ter um painel de controle para saber tudo o que se passa nas cidades e informar sobre o cronograma. Não há tempo a perder. É uma necessidade de investimento surreal e um período de adaptação muito importante”, afirma Cohen.

Guarulhos: a segunda maior cidade do estado tem apenas 10,2% do esgoto gerado tratado (Leandro Fonseca/Exame)

Outra preocupação de alguns especialistas em infraestrutura é que a urgência e o curto prazo para a Sabesp atingir a meta possam fazer fornecedores aumentarem os valores. “Os preços são muito mais altos quando você coloca as coisas em regime de urgência, e alguns insumos estão disponíveis e outros não”, avalia Claudio Frischtak, economista e sócio-fundador da consultoria Inter.B.

Apesar da preocupação, o presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base, Venilton Tadini, afirma que não vê gargalos que possam atrapalhar os planos da nova Sabesp. “Tivemos recentemente um encontro de fornecedores e existe um otimismo no setor em relação ao plano de investimento da Sabesp”, avalia Tadini. A atual gestão da empresa acredita que o modelo privado, inclusive, fará com que ela aproveite oportunidades de fornecedores que hoje não têm capacidade técnica e judicial para fornecer insumos para estatais.

O significado do avanço da Sabesp vai muito além do importante marco de atender bem a população. O impacto do saneamento na economia do país é transformador. Segundo estudo da ICO Consultoria para a Organização das Nações Unidas, se o Brasil atingir os investimentos necessários para a universalização do acesso à água e ao esgoto em todo o país, poderiam ser incrementados até 947.000 empregos, até 18,2 bilhões em arrecadação e até 267 bilhões no PIB do país. “Vejo que a desestatização vai ser um grande salto para o saneamento, com a Sabesp, depois que focar em São Paulo, sendo uma grande consolidadora pelo país”, avalia Gesner Oliveira, sócio da GO Associados e presidente da estatal de 2007 a 2011.

Oliveira compara ainda o processo com o realizado na Embraer, hoje a terceira maior fabricante de jatos comerciais do mundo, privatizada pelo governo federal em 1994, e vê que a inovação regulatória e de contrato pode inspirar outros projetos Brasil afora. “São Paulo inovou porque, diferentemente dos processos como da Cedae, no Rio, em que a estatal ficou com a captação e a distribuição passou para o parceiro privado, a Sabesp se manteve com a captação, adução e distribuição da água. Isso reflete a característica técnica da empresa”, diz o ex-executivo da estatal. A conclusão de Gesner é que a Sabesp continuará com a sua capacidade multitarefa no saneamento, diferentemente de outras concessões.

André Salcedo, CEO da Sabesp: executivo arrumou a casa para a chegada da Equatorial (Leandro Fonseca/Exame)

O consenso de quem acompanha o saneamento é que o legado inovador da desestatização da Sabesp, principalmente na lógica de investimento primeiro e inclusão na tarifa depois, será marcante. Até a desestatização, a Sabesp primeiro cobrava pelo investimento previsto e depois executava. Com a lógica inversa, a melhoria chega primeiro à casa da população, antes do ônus financeiro. “A privatização se coloca como um importante símbolo para mostrar que o estado não precisa ser o financiador do investimento e gestor do serviço”, afirma Eric Brasil, economista e diretor da LCA Consultoria Econômica.

“A Equatorial se coloca como um player muito forte para daqui a uns anos, porque agora ela está com a capacidade de investimento comprometida, para que nas próximas rodadas pós-universalização ela possa expandir o seu mercado”, diz Brasil. A empresa, que ainda não abre totalmente o jogo sobre os seus planos para a Sabesp, em respeito aos ritos da privatização, demonstra que quer replicar as evoluções vistas em outros grandes processos no Brasil, como da Copel e da Eletrobras.

No pipeline pós-Sabesp, o Brasil tem 13 projetos de concessões e parcerias público-privadas (PPP) no setor de saneamento. Dados da Consultoria Radar PPP, especialista em concessões e PPPs, mostram ainda que existem outras 340 iniciativas em andamento, com maior potencial de se tornar “contrato iniciado” no curto e médio prazo. Destaca-se ainda a existência de 238 contratos de PPP ou concessão vigentes em saneamento. São projetos que já estavam mapeados, mas ganham maior tração com o otimismo do mercado gerado com o fator Sabesp. Quando olhamos para todos os setores de infraestrutura do Brasil, 1.148 iniciativas estão em andamento e outros 1.231 contratos de PPP ou concessão vigentes em 19 diferentes setores da infraestrutura, de iluminação pública a rodovias. Em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas espera acelerar outras concessões, como de todas as linhas sobre trilhos até 2026, realizar PPPs para a infraestrutura de 33 escolas, concluir obras de rodovias e avançar até em PPPs para administrar instituições paulistas, como a Fundação Casa, que atende menores infratores. Todas as iniciativas podem representar um avanço para um país que ainda precisa de bilhões em investimentos para se modernizar e que, apesar de ter voltado a figurar entre as dez maiores economias do mundo no último ano, ainda tem grandes carências estruturais.  

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