Revista Exame

Com a crise, o Brasil voltou a ser de novo o país da muamba

A crise, a carga tributária e o frágil controle nas fronteiras colocou a ilegalidade de novo em alta e o pior — batendo recorde

Rua 25 de Março, em São Paulo: o comércio ilegal cresceu na crise (Paulo Pinto/Fotos Públicas)

Rua 25 de Março, em São Paulo: o comércio ilegal cresceu na crise (Paulo Pinto/Fotos Públicas)

Raphael Martins

Raphael Martins

Publicado em 7 de junho de 2018 às 05h00.

Última atualização em 7 de junho de 2018 às 16h47.

Às vésperas de uma copa do mundo, como a que começa em 14 de junho na Rússia, a paixão do brasileiro por futebol multiplica as vendas de camisas da seleção. Nessa época, a procura pelo uniforme canarinho é 20 vezes superior ao normal, de acordo com a Nike, marca fornecedora da Confederação Brasileira de Futebol (a empresa não divulga a quantidade). Até aí, é uma ótima notícia para a Nike e para os varejistas ansiosos por faturar com a ótima fase do time treinado por Tite. Mas uma importante parcela da torcida brasileira deve apelar para cópias piratas de origem duvidosa, agravando assim um problema conhecido no país: o da ilegalidade. Só um terço dos uniformes de craques como o polivalente Neymar e o atacante Gabriel Jesus vendidos por aí é, de fato, original. De acordo com a Ápice, a associação brasileira de fabricantes de artigos esportivos, a presença de muambas desse tipo atravanca os investimentos do setor, empacados em 1,2 bilhão de reais ao ano. “Poderíamos aportar até 35% mais no Brasil”, diz Marina Carvalho, diretora da Ápice.

A trava nos investimentos em artigos esportivos é só uma das consequências dos males causados pela venda de contrabando, mercadoria falsificada e todo tipo de produção que desrespeita direitos autorais nem paga impostos no Brasil. Esse mercado movimentou 1 trilhão de reais em 2017,  o equivalente ao produto interno bruto da Colômbia e um recorde para padrões nacionais, segundo o Índice da Economia Subterrânea, calculado pela Fundação Getulio Vargas e pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), organização social de combate a desvios empresariais como a ilegalidade. Os números reforçam uma tendência péssima: a “economia cinza”, dependente de bens e serviços ilegais, voltou a crescer. Depois de uma década em que a fatia perdida para a informalidade caiu, ano após ano, de 21% para 16% do PIB, desde 2014 a economia informal voltou  a crescer — no ano passado, chegou a 16,6% da soma de riquezas produzidas no Brasil. Para discutir as causas do repique, a revista EXAME e o ETCO promoveram o Fórum Combate à Ilegalidade, realizado no dia 24 de maio em São Paulo. O evento teve a presença de autoridades como o ex-governador de São Paulo e pré-candidato pelo PSDB à Presidência Geraldo Alckmin, além de especialistas como o advogado Edson Vismona, presidente do ETCO, o economista Samuel Pessôa, do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, o ex-secretário de Segurança Pública paulista Eduardo Muylaert e o sociólogo Caio Magri, presidente do Instituto Ethos, entidade sem fins lucrativos para a disseminação de boas práticas de governança. Para debater os efeitos da ilegalidade nos negócios, também participaram do debate o presidente da fabricante de cigarros Souza Cruz, Liel Miranda, o fundador da grife carioca de roupas e acessórios Osklen, Oskar Metsavaht, e o vice-presidente da fabricante de combustíveis Raízen, Antonio Ferreira Martins, além de Marina Carvalho, da Ápice.

Por trás do repique nas taxas de ilegalidade há uma porção de fatores que interagem entre si. “A informalidade é um problema complexo: vai desde a pressão na carga tributária por causa das transferências de renda até distorções causadas por pequenos grupos organizados que conseguem impor pautas de interesse privado, como desonerações, em detrimento da necessidade coletiva”, disse o economista Samuel Pessôa no evento organizado por EXAME. Um consenso do debate foi que a crise econômica, vivida desde 2014 e da qual o país ainda não saiu completamente, é parte importante do problema. A começar pelo empobrecimento do brasileiro. A recessão derrubou o PIB e dobrou a taxa de desemprego, que está em 12,9% da população ativa. A conse-quên-cia: em quatro anos houve uma queda de 9% da renda média do brasileiro, que ficou mais tentado a trocar o original pela cópia. Segundo uma pesquisa da Federação do Comércio do Rio de Janeiro, realizada em 2016, no auge da crise, 96% dos 1 200 entrevistados afirmaram ter o preço baixo como maior atrativo para comprar um produto. Desse total, um terço admitia já ter consumido pirataria para economizar recursos.

Para piorar, as empresas que seguiram formalizadas na recessão foram penalizadas com a sanha arrecadatória do governo na luta contra o rombo nas contas públicas. Apesar de a crise ter deprimido a demanda de consumo país afora, a carga tributária aumentou meio ponto desde o início da crise: hoje é de 32,4% do PIB, bem acima da média da América Latina, de 13%, e perto do nível da OCDE, clube dos países mais ricos do mundo, onde a produtividade e a qualidade dos serviços públicos justificam a mordida média anual de 34% do PIB. No meio disso tudo, os cofres públicos minguados ajudaram a deflagrar uma crise de segurança pública em muitos estados. Resultado: houve uma escalada dos roubos de cargas, que praticamente dobraram desde 2013. No ano passado, a taxa fechou em 11 ocorrências a cada 100 000 habitantes, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um centro de estudos da criminalidade. A proliferação de assaltos a caminhoneiros em áreas onde a crise pegou mais forte, como o subúrbio do Rio de Janeiro, abriu mais espaço para o contrabando. Hoje em dia, o transporte público carioca está cheio de ambulantes com carne, leite, guloseimas e toda sorte de mercadoria roubada nas redondezas.

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“Mata-Rato” paraguaio

O dano causado pela economia cinza não é sentido de forma homogênea nas diferentes cadeias produtivas. Nada supera o estrago causado aos fabricantes de cigarros: 60% dos 20 bilhões de reais movimentados por fumantes no país em 2017 foram para a economia informal. Quase a totalidade desse mercado criminoso é ocupada por marcas contrabandeadas do Paraguai, país em que a carga tributária média é de 16% do PIB — no Brasil, a taxação sobre a indústria do tabaco equivale a 70% do faturamento do setor. Com tanto imposto sobre a produção nacional, e tamanha frouxidão nas fronteiras sobre a muamba vinda do Paraguai, não causa surpresa o fato de a marca de cigarro mais vendida no Brasil ser paraguaia. Trata-se do Eight, um verdadeiro “mata-rato” com níveis de nicotina 20 vezes superiores aos dos similares nacionais. Encontrado na internet e em botecos país afora por até 2 reais o maço — os cigarros brasileiros mais baratos, Belmont, Continental e Minister, custam pelo menos 5 reais —, o Eight detém 12% do mercado no país, à frente de concorrentes tradicionais como Derby, Free e Hollywood. “Precisamos garantir, por meio do Mercosul ou outros grupos de que o Brasil participa, uma pressão para equiparar a concorrência”, diz Liel Miranda, presidente da Souza Cruz. “Nossa taxação é regressiva. Penaliza o mais pobre no preço e o empurra para um produto de má qualidade.” A seguir na lista dos produtos mais pirateados estão óculos e roupas, incluindo as camisas da seleção brasileira: o mercado ilegal desses itens representa 31% e 15% do total, respectivamente.

O avanço da pirataria não se limita aos bens de consumo. Outro mercado afetado é o de TV por assinatura, quarto item mais consumido na economia subterrânea. Segundo a Associação Brasileira de Televisão por Assinatura, 3,3 milhões de domicílios têm conexões clandestinas de TV a cabo e internet — o serviço ilegal ficou conhecido como “gatonet”.  Se fosse legalizado, o gatonet seria a terceira maior operadora do país. Um dos itens obrigatórios dos sacoleiros em Ciudad del Este, meca paraguaia da muamba na fronteira com o Brasil, são os receptores de sinal de satélite dos canais fechados vendidos a partir de 200 reais. Hoje, 13% dos gastos de brasileiros com TV por assinatura são direcionados às operadoras ilegais. A farra, porém, pode estar prestes a acabar. Um projeto que tramita no Senado prevê multa de 10 000 reais e prisão de seis meses a dois anos para quem distribuir ou receber sinal pirata de TV paga — apesar de uma consulta pública feita pelo próprio Senado mostrar que 95% dos brasileiros rejeitam a criminalização do gatonet. “Temos de sair da situação em que sonegação, roubo de carga e outros crimes podem se acomodar dentro do jeitinho brasileiro”, diz Antonio Ferreira Martins, vice-presidente jurídico da Raízen, que lembra que os carros no país consomem 6 bilhões de reais por ano em combustível adulterado.

Contrabando de cigarros: a marca mais vendida no Brasil é do Paraguai e entra aqui ilegalmente | L. Adolfo/Estadão Conteúdo

Diante de tanta pirataria, como combater o problema? Avançar em mudanças dos impostos seria um bom começo. A comissão do Congresso para a reforma tributária, encerrada no ano passado diante dos problemas do governo de Michel Temer, deve recomeçar os trabalhos em junho e espera-se que encaminhe uma proposta a plenário ainda em junho. A principal medida cogitada é transformar nove impostos sobre o consumo em dois: no imposto de valor agregado (IVA) e num adicional para determinadas categorias, como o cigarro. A ideia é taxar menos bens e serviços para baratear os produtos originais — e reduzir, portanto, a diferença em relação ao produto pirata, que custa menos. “Sairíamos do pior sistema tributário do mundo para o melhor”, diz o relator da medida, o deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). A proposta conta com o apoio do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e de presidenciáveis. “No mundo inteiro, a tributação é feita com o IVA. É urgente simplificar nosso modelo tributário para recuperar a competitividade e reduzir a sonegação”, disse Geraldo Alckmin no evento organizado por EXAME. “Temos uma cultura cartorial no Brasil, de regras e mais regras. A mania de criar cobranças para cada caso é o que faz o sistema ser tão complexo.” Em paralelo, um projeto do setor privado tem ganhado força. Por iniciativa da Associação dos Industriais da Colômbia, um grupo de entidades empresariais de 15 países, incluindo o Brasil, criou em 2016 a Aliança Latino-Americana Anticontrabando para fiscalizar em conjunto a pirataria e pressionar os governos a atacar o problema. “O plano é que o grupo seja presidido por gente da iniciativa privada e do governo, como por membros do Itamaraty, do Gabinete de Segurança Institucional ou da Receita Federal”, diz Edson Vismona, presidente do ETCO. Não faltam propostas para combater a pirataria. Resta saber se elas serão adotadas com força e velocidade ante um problema que não para de crescer. 

COMO RESOLVER O PROBLEMA DA ECONOMIA ILEGAL NO BRASIL

Lideranças empresariais, políticas e do terceiro setor debateram os efeitos perversos sobre a economia brasileira do consumo de bens e serviços que não pagam impostos nem respeitam as regras da concorrência — o que inclui cópias falsificadas e itens contrabandeados de países com carga tributária inferior à brasileira

FÓRUM COMBATE À ILEGALIDADE: palestra de Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo e pré-candidato à Presidência da República pelo PSDB | Flávio Santana
FÓRUM COMBATE À ILEGALIDADE: debateram as causas da pirataria, a partir da esquerda, André Lahóz Mendonça de Barros, diretor editorial do Grupo EXAME; Liel Miranda, presidente da Souza Cruz; Oskar Metsavaht, fundador e diretor criativo da Osklen; Marina Carvalho, diretora da Associação pela Indústria e Comércio Esportivo no Brasil (Ápice); e Antonio Ferreira Martins, vice-presidente jurídico da Raízen | Flávio Santana

FÓRUM COMBATE À ILEGALIDADE: primeira foto acima, Edson Vismona, presidente do ETCO; e Samuel Pessôa, economista da Fundação Getulio Vargas. Segunda foto cima, Eduardo Muylaert, ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, e Caio Magri, presidente do Instituto Ethos, discutiram as ligações entre corrupção e ilegalidade | Flávio Santana
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