Competição de software na Índia: atenção à tecnologia impulsionou o crescimento | Xavier Galiana/AFP
Da Redação
Publicado em 19 de dezembro de 2019 às 05h30.
Última atualização em 19 de dezembro de 2019 às 06h30.
Uma das notícias mais preocupantes de 2019 não recebeu a cobertura que se poderia esperar dos meios de comunicação nos Estados Unidos e na Europa. Mas é provável que a desaceleração econômica na China e a desaceleração potencialmente acentuada do crescimento na Índia recebam consideravelmente mais atenção em 2020. O Fundo Monetário Internacional, o Banco Asiático de Desenvolvimento e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico rebaixaram as estimativas de crescimento da Índia em 2019-2020 para cerca de 6% ao ano, o que seria o menor índice desde o início da década. Outros afirmam que essa previsão ainda é otimista e projetam narrativas mais problemáticas.
Por exemplo, Arvind Subramanian, até recentemente o principal consultor econômico do governo indiano, argumentou, com base na triangulação de evidências de vários indicadores, que o índice de crescimento pode cair para até 3,5%. Na China, o crescimento do produto interno bruto diminuiu de 14,2%, em 2007, para 6,6%, em 2018. O Fundo Monetário Internacional projeta que possa cair para 5,5% até 2024. O rápido crescimento chinês e indiano tirou milhões da pobreza e é possível que a desaceleração de agora impeça o progresso da melhora da vida dos pobres.
O que a China e a Índia deveriam fazer? Ou melhor, o que não deveriam fazer? Quando estávamos escrevendo nosso livro Good Economics for Hard Times (“Boa economia para tempos difíceis”, numa tradução livre) em 2018, antes que começassem a sair as más notícias sobre a Índia, já estávamos preocupados com uma potencial desaceleração naquele país (a desaceleração na China já era conhecida). Antecipando a queda do crescimento, alertamos que “a Índia deveria temer a complacência”.
O que estávamos argumentando é simples: em países que partem de uma situação em que os recursos são mal utilizados, como a China sob o comunismo ou a Índia em seus dias de extremo dirigismo, os primeiros benefícios da reforma podem advir da transferência de recursos para melhores usos. No caso das indústrias indianas, houve uma forte aceleração na atualização tecnológica das fábricas e alguma realocação para as melhores empresas de cada setor após 2002. Isso parece não ter relação com nenhuma mudança na política econômica e foi descrito como “o misterioso milagre industrial da Índia”.
Mas não foi milagre, apenas uma modesta melhora, saindo de um ponto de partida bem sombrio. Pode-se imaginar várias razões pelas quais isso tenha ocorrido. Talvez tenha sido resultado de uma mudança geracional, já que o controle passou de pais para filhos, frequentemente educados no exterior, mais ambiciosos e mais esclarecidos sobre tecnologia e mercados mundiais. Ou talvez a acumulação de lucros modestos tenha eventualmente possibilitado bancar a mudança para fábricas maiores e melhores. Ou talvez ambos os motivos — e mais alguns — tenham desempenhado algum papel relevante.
De um modo geral, talvez a razão pela qual alguns países, como a China, possam crescer tão rapidamente por tanto tempo seja que eles começam com muito potencial e recursos mal utilizados, que podem ser direcionados para atividades mais valiosas. Mas, à medida que a economia descarta suas fábricas e empresas precárias e resolve os problemas mais graves de má alocação de recursos, diminui naturalmente o espaço para novas melhorias. O crescimento da Índia, como o da China, tinha de desacelerar. E não há garantia de que ele diminuirá apenas quando a Índia atingir o mesmo nível de renda per capita da China. A Índia pode ser pega na mesma “armadilha da renda média” que aprisionou a Malásia, a Tailândia, o Egito, o México e o Peru.
O problema é que os países têm dificuldade em abandonar o hábito do crescimento. Há o risco de os formuladores de políticas atirarem para qualquer lado em sua busca para retomar o crescimento. A história recente do Japão deveria servir de alerta. Se a economia do Japão tivesse mantido a taxa de crescimento registrada na década de 1963-1973, teria ultrapassado os Estados Unidos em termos de produto per capita em 1985 e de PIB geral em 1998. O que houve é suficiente para ficar de sobreaviso: em 1980, um ano após o professor de Harvard Ezra Vogel publicar Japan as Number One (“O Japão em primeiro”, numa tradução livre), a taxa de crescimento caiu e nunca mais se recuperou. Durante todo o período 1980-2018, o PIB real do Japão cresceu a uma anêmica taxa média anual de 0,5%.
A questão era simples: a baixa fertilidade e a quase completa ausência de imigração significavam que o Japão estava (e está) envelhecendo rapidamente. A população em idade ativa atingiu o pico no final dos anos 90 e vem declinando a uma taxa anual de 0,7% desde então (e continuará a declinar). Além disso, durante as décadas de 50, 60 e 70, o Japão estava se recuperando do desastre da Guerra do Pacífico, com sua população com nível universitário gradualmente sendo empregada nas melhores funções possíveis.
De 1980 em diante, isso acabou. Na euforia das décadas de 70 e 80, muitas pessoas (no Japão e no exterior) convenceram-se de que o Japão sustentaria um rápido crescimento inventando novas tecnologias, o que provavelmente explica por que a alta taxa de investimento (superior a 30% do PIB) continuou ao longo da década de 80. Muito dinheiro bom correu atrás de bem poucos projetos bons na chamada economia de bolha dos anos 80. Como resultado, os bancos acabaram com inúmeros empréstimos ruins, o que levou à enorme crise financeira dos anos 90. E o crescimento foi interrompido.
Ao final da “década perdida” de 90, os formuladores de políticas do Japão poderiam ter percebido o que estava acontecendo e o que tinham a perder. Afinal, o Japão já era uma economia relativamente rica, com bem menos desigualdade do que a maioria das economias ocidentais, um sistema educacional forte e muitos problemas importantes a ser enfrentados, entre eles como garantir qualidade de vida decente para uma população que envelhece rapidamente. Mas as autoridades pareciam incapazes de se ajustar — restaurar o crescimento era uma questão de orgulho nacional.
Como resultado, sucessivos governos disputaram a criação de uma série de pacotes de estímulo, gastando trilhões de dólares principalmente em estradas, represas e pontes que não serviam a nenhum objetivo óbvio. Talvez previsivelmente, o estímulo não fez nada para aumentar o crescimento econômico e levou a um enorme aumento da dívida nacional, para cerca de 230% do PIB em 2016, de longe a mais alta dos países do G20 e um possível prenúncio de uma enorme crise na dívida.
A lição para os formuladores de políticas na China e na Índia é clara: eles devem aceitar que o crescimento inevitavelmente diminuirá. Os líderes da China estão cientes disso e fizeram um esforço consciente para gerenciar as expectativas do público de acordo com a realidade. Em 2014, o presidente Xi Jinping falou sobre um “novo normal” de 7% de crescimento anual, em vez de 10% ou mais. Mas não está claro que mesmo essa projeção seja realista e, enquanto isso, a China está embarcando em enormes projetos globais de construção, o que não é necessariamente um bom presságio.
A chave, em última análise, é não perder de vista o fato de que o PIB é um meio, e não um fim. É um meio útil, sem dúvida, especialmente quando cria empregos, aumenta salários ou ajusta o orçamento do governo para poder redistribuir melhor a riqueza. Mas o objetivo final continua sendo aumentar a qualidade de vida da média da população — especialmente a mais pobre. E qualidade de vida significa mais do que apenas consumo. A maioria dos seres humanos se preocupa em se sentir digna e respeitada e sofre quando sente que está em falta consigo mesma e com sua família.
Embora viver melhor seja, de fato, em parte ser capaz de consumir mais, mesmo pessoas muito pobres também se preocupam com a saúde dos pais, com a educação dos filhos, em ter a voz ouvida e ser capaz de correr atrás dos sonhos. Um PIB mais alto é apenas um modo de conseguir isso. Não se deve assumir que isso seja sempre o único objetivo.
Muitos dos importantes sucessos do desenvolvimento das últimas décadas são resultado direto de um enfoque político nessa concepção mais ampla de bem-estar, mesmo em alguns países que eram e permaneceram muito pobres. Por exemplo, ocorreu uma redução maciça da mortalidade de menores de 5 anos, inclusive em alguns países muito pobres que não estavam crescendo particularmente rápido, em grande parte graças ao foco no atendimento ao recém-nascido, à vacinação e à prevenção da malária.
Isso nos leva de volta à desaceleração da Índia e da China. Ainda há muito que os formuladores de políticas de ambos os países possam fazer para melhorar o bem-estar dos cidadãos e nos ajudar a ter alguma esperança em relação ao futuro do planeta. Um objetivo míope de aumentar a taxa de crescimento do PIB poderia desperdiçar essa chance.
Abhijit Banerjee é professor de economia no MIT. Esther Duflo é professora de alívio à pobreza e economia do desenvolvimento no MIT. Eles são cofundadores e codiretores do Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel (J-PAL) no MIT e (com Michael Kremer) os vencedores do Prêmio Nobel de Economia de 2019