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O ocaso de Margaret Thatcher, a dama de ferro

Vinte anos depois de deixar o poder, Margaret Thatcher ainda semeia discussões apaixonadas entre os britânicos

Thatcher deixa o hospital: o mundo sonhado por ela sofreu um duro golpe com a última crise financeira (Dan Kitwood/Getty Images)

Thatcher deixa o hospital: o mundo sonhado por ela sofreu um duro golpe com a última crise financeira (Dan Kitwood/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 13 de abril de 2013 às 15h09.

Aos 85 anos, frágil, sofrendo de um problema mental — demência — que a faz chamar repetidas vezes Denis, o marido morto, recém-saída de uma temporada no hospital por causa de uma gripe, Margaret Thatcher continua a provocar celeuma entre os britânicos.

Já se passaram mais de três décadas desde que ela chegou ao poder com uma determinação de ferro para sacudir um país estagnado moralmente, mentalmente e economicamente.

Thatcher se instalou em maio de 1979 no número 10 da Downing Street, sede do governo inglês, depois de sucessivas administrações que foram literalmente emasculadas pelo poder de sindicatos que fizeram da Inglaterra um híbrido malsucedido de capitalismo com socialismo. No apogeu do poder sindical, nos anos 70, a Inglaterra chegou a enfrentar uma greve de coveiros em Liverpool no curso da qual chegou a ser cogitada a ideia de atirar cadáveres no mar.

Em seu primeiro pronunciamento como primeira-ministra, Thatcher citou são Francisco de Assis para prometer harmonia onde havia discórdia. Em seus 11 anos de poder, transformou a Inglaterra e influenciou mudanças no mundo, incluído aí o Brasil privatizante de Fernando Henrique Cardoso, mas jamais conseguiu alcançar a harmonia prometida.

Governou um país dividido — muito mais que o Brasil de hoje, para efeito de comparação. Ao deixar abruptamente a Downing Street, os britânicos continuavam intensamente divididos. Até em torno de seu legado, admirado por muitos e detestado por outros tantos. Um astro pop disse que dançaria no túmulo de Thatcher quando ela morresse e uma estátua sua — a única no Reino Unido — foi destruída.

Ao mesmo tempo, intelectuais como Paul Johnson, historiador e ensaísta, reconheceram nela uma grandeza só comparável entre os britânicos à de Winston Churchill, a improvável nêmesis de Adolf Hitler na Segunda Guerra. Neste final de 2010, o nome de Thatcher esteve mais uma vez no centro de uma fogosa discussão.

Sua internação num hospital acendeu rumores de que ela poderia estar vivendo seus dias finais. Em meio às especulações, a BBC levantou uma questão que para muitos pareceu mórbida e inoportuna: que tipo de funeral merece Thatcher? Há, entre os britânicos, uma hierarquia clara quando se  trata de homenagear mortos célebres.

Nem todos os ilustres são ilustres igualmente, e isso se reflete no funeral. A saída de Thatcher do hospital amenizou o debate, mas é improvável que ela, ao morrer, não receba o grau máximo de pompa na homenagem, o funeral com honras de chefe de Estado.

O último primeiro-ministro morto que recebeu esse tratamento foi Churchill, votado pelo público britânico o personagem mais influente da história do Reino Unido. Naquele tipo de funeral, o corpo é geralmente velado por três dias no Westminster Hall, um espaço nobre na sede do Parlamento britânico.

Usualmente, apenas monarcas merecem tal deferência. A alguns raros heróis britânicos — entre eles os dois grandes militares que derrotaram Napoleão, o almirante Nelson e o duque de Wellington — foi concedida essa honra.


O impacto de Thatcher em seu país e em seu tempo pode ser medido pelo depoimento de um psiquiatra em meados dos anos 80. Quando ele perguntava a seus pacientes que sofriam de degeneração mental o nome do primeiro-ministro, quase nenhum deles sabia o que dizer. Quando Thatcher estava no comando, todos responderam com acerto à questão.

Thatcher amava e odiava intensamente. Amava o livre mercado, a desregulamentação da economia, um Estado nanico que se intrometesse o menos possível na vida das pessoas. Detestava o socialismo, a União Soviética e os alemães.

Lutou quanto pôde contra a reunificação da Alemanha. Teve no presidente francês François Mitterrand um aliado apaixonado nessa causa. "Gosto tanto da Alemanha que quero ver sempre duas", disse Mitterrand quando se discutia a reunificação.

"Lá vêm os alemães!", lamentou Thatcher quando já não havia como deter a união das Alemanhas, no final da década de 80. Thatcher e Mitterrand tinham fresca na memória a beligerância alemã, expressa antes na Grande Guerra, de 1914 a 1918, e depois, espetacularmente, pelos nazistas de Hitler na Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945.

Foi uma das raras quedas de braço que Thatcher não venceu em sua carreira. Sua reputação de guerreira surgiu nos primeiros anos de sua administração, depois que venceu numa dramática e demorada disputa os mesmos sindicatos que haviam humilhado tantos primeiros- ministros antes dela.

Pouco depois, ela destroçaria as pretensões do regime militar argentino do general Leopoldo Galtieri de tomar as ilhas Falkland (ou Malvinas). Foi mais ou menos nessa época que os russos, incomodados com o anticomunismo de Thatcher, a apelidaram de Dama de Ferro. O que eles não imaginavam é que ela iria se sentir lisonjeada pelo apelido.

Thatcher virou líder do Partido Conservador com um golpe interno e foi apeada também com um golpe interno. Ela derrubou Edward Heath, em cujo governo ela fora ministra da Educação. Já mostrava ali sua visão de mundo.

Tirou o leite grátis das crianças logo no início de sua gestão, uma medida que lhe valeria o apelido de "Thatcher, the Snatcher". É impossível reproduzir o trocadilho, mas ela estava sendo xingada mais ou menos de gatuna.

O governo de Heath começara com uma série de medidas para diminuir o tamanho do Estado, mas, depois, sob a pressão sindical, ele fez o que se tornaria conhecido como u turn — marcha a ré. Num de seus discursos mais célebres, já como primeira-ministra, Thatcher usaria a mesma expressão para avisar seus adversários de que jamais recuaria como Heath. "Comigo não há u turn", avisou.

Não houve mesmo. O que houve foi o desgaste de 11 anos de poder com incessantes transformações. Thatcher começou a cair longe dos holofotes. Era vista mundialmente como uma líder de grande força quando, na sombra, seu gabinete começou a conspirar contra ela, em 1989. Os insurgentes tinham queixas pessoais e programáticas.

Achavam que Thatcher os tratava com muita rispidez. Um deles, numa definição que seria depois amplamente reproduzida, era para Thatcher um "misto de capacho com saco de pancadas". Quanto ao programa do partido, a insatisfação era contra a visão anti-Europa de Thatcher.

Ela queria o Reino Unido em seu canto, longe dos sonhos federativos de uma Europa integrada. Eles suspeitavam também que o desgaste popular de Thatcher seria um risco para a permanência dos conservadores no poder nas eleições que se aproximavam.

Como é praxe na Inglaterra, Thatcher tombou em altíssima velocidade. Foi desafiada como líder do partido por um ex-ministro sem grande expressão. No dia da votação, em vez de batalhar por votos, foi a um encontro em Paris de líderes globais. Venceu, mas não pela maioria necessária. Teria de haver um segundo turno.

Ela queria tentar, mas aí a derrota seria humilhante. Faz parte do repertório do poder na Inglaterra o líder desistir se não consegue os votos indispensáveis na primeira rodada. O apoio de muitos é retirado caso haja insistência numa causa dada como perdida. Para os ingleses, é como se os interesses pessoais se sobrepusessem aos do partido.

Nas versões mais recentes da queda de Thatcher, ela teria recebido da rainha Elizabeth II o conselho de que desistisse do segundo turno. Anunciada a desistência, em 24 horas Thatcher estava fora da Downing Street.

Tentou ir a seu gabinete uma última vez, mas já o encontrou trancado. O mundo sonhado por Thatcher sofreria um golpe rude na crise financeira dos anos 2000, atribuída por muitos à desregulamentação dos bancos. Executivos bancários em busca de lucros máximos no menor prazo — para assim levantarem bônus multimilionários — semearam uma crise que se alastraria globalmente.

Houve quem pusesse a culpa em Thatcher. Mas isso, como observou o prefeito de Londres, Boris Johnson, dá apenas a medida do colosso que foi a Dama de Ferro.

Uma nova geração de conservadores, sob o comando do primeiro-ministro David Cameron, de 42 anos, está de volta ao poder na Inglaterra depois de 13 anos de trabalhismo. Na campanha, Thatcher foi ainda menos falada do que Fernando Henrique por José Serra.

Mas os recentes e corajosos cortes enormes em gastos sociais feitos por Cameron mostram que Thatcher não perdeu o poder de inspirar. O que só o tempo vai mostrar é se Cameron, sob a pressão inevitável que enfrentará, terá a mesma força e determinação de Thatcher para não dar u turn.

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