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Da Redação
Publicado em 21 de maio de 2020 às 05h30.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h55.
A crise provocada pela pandemia da covid-19 escancarou a desigualdade e evidenciou um sistema econômico que privilegia poucos. O princípio de valorizar o retorno financeiro para o acionista acima de outros stakeholders — a força motriz do capitalismo global — não considera o bem comum na equação. A concentração de renda crescente custa caro para o todo.
O que se viu é que boa parte das empresas, e também da população, não estava preparada para enfrentar este momento. Na periferia, as condições são perversas. Num mundo socialmente mais justo e economicamente mais igualitário, essas condições poderiam ser evitadas. O cenário de crise aponta a importância de conduzir os negócios de outra forma.
Nos últimos dois meses, assistimos a uma forte sensibilização por parte das empresas brasileiras para apoiar os mais vulneráveis — talvez a maior mobilização de recursos privados jamais vista no Brasil, um país que, historicamente, não tem cultura de doação. Vimos a construção de hospitais de campanha em tempo recorde, doações maciças de cestas básicas, suprimentos hospitalares e inúmeras organizações do terceiro setor recebendo os mais diversos recursos.
Embora essencial e muito bem-vindo, todo esse esforço pode ser insuficiente perante o que está por vir. Um estudo feito pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro concluiu que a economia do país poderá encolher até 11% em um cenário pessimista se ações mitigatórias não forem realizadas a tempo.
Ainda, os principais impactos serão sentidos no desemprego e no agravamento da desigualdade social, com maior prejuízo no comércio, na construção civil e nas indústrias extrativistas e de transformação. Somados, esses setores poderão alcançar uma perda de até 14,7 milhões de vagas no mercado de trabalho, sendo ainda mais intensa em setores com mais informalidade e salários mais baixos.
Apesar de essas iniciativas imediatas estarem certamente amenizando o sofrimento de milhares de pessoas em todo o país no curto prazo, é preciso jogar luz sobre as questões estruturais do nosso modelo de desenvolvimento. Se não pensarmos e agirmos de maneira diferente, enfrentaremos as próximas crises com os mesmos desafios e tenho a convicção de que se repetirão com frequência, considerando a crescente escassez de recursos naturais, aumento dos efeitos das emissões de carbono, ampliação das desigualdades e má distribuição de riqueza e renda. Olhando de maneira realista para os dados que a ciência apresenta, a crise da covid-19 pode ser mero ensaio do choque estrutural e civilizatório que enfrentaremos.
Diante de tantas evidências expostas por uma crise global sem precedentes, fica claro que é preciso repensar o modelo atual de capitalismo e endereçar as principais questões de nosso sistema econômico. Não adianta a economia voltar a crescer com um número grande de empregos informais, por exemplo. Se boa parte das empresas pagasse seus funcionários de maneira adequada e cumprisse as leis trabalhistas, de forma que eles conseguissem ter reservas, hoje estaríamos em uma situação completamente distinta.
Já passou da hora de as empresas adotarem um modelo de governança que privilegie todos os seus stakeholders, não apenas o acionista e o curto prazo. Empresas que mantêm boas relações com seus funcionários e consumidores, que têm cadeias de suprimento sólidas e alto padrão de governança geram maior valor no longo prazo. Como exemplo, as Empresas B — que adotam os mais altos padrões de práticas ambientais, sociais e de governança — tendem a ser muito mais resilientes durante as crises, algo que foi provado na crise de 2008 e já tem sido testemunhado no momento atual.
No entanto, a mudança do sistema só será possível se for além da atuação individual das empresas. É crucial o papel do governo para garantir um bom ambiente para que o setor privado opere no longo prazo, com políticas públicas que incentivem as boas práticas. E, mais do que nunca, o mercado financeiro deve assumir um compromisso firme e participativo para a construção de uma nova economia, principalmente considerando que o setor é o maior interessado em manter a estabilidade do sistema. Portanto, implementar uma estrutura para alocação do capital que inclua aspectos de governança focados em sustentabilidade será essencial para acelerar essa transição.
Há um evidente progresso no reconhecimento da importância dos fatores ambientais, sociais e de governança (ESG). Ainda assim, muitos investidores precisam integrar esses princípios a seus processos de investimentos ou se envolver com as causas das empresas em que investem. Agora é hora de encorajar as empresas investidas a priorizar seus trabalhadores e comunidades assim como priorizam a relação com o acionista. É urgente que empresas e mercado financeiro ampliem suas responsabilidades para com a sociedade.
Não se trata apenas de pagar impostos e gerar valor para o acionista. Essa mentalidade é pré-covid-19. Se as empresas não passarem a considerar a sério e de maneira equânime todos os stakeholders em suas decisões, certamente teremos aprendido muito pouco com este momento. A crise de 2008 deixou poucos aprendizados. Em um piscar de olhos o desequilíbrio econômico e o aumento da desigualdade voltaram a dar as cartas. Agora, mais uma oportunidade desperdiçada de evoluir nos fará ainda mais falta ali na frente.