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Negócio de mudar a mente: como o mercado de alucinógenos cresce pelo mundo

A venda de cogumelos aumenta entre brechas legais nos Estados Unidos e Canadá e vira documentário da Netflix

Cogumelo alucinógeno: mercado cresce nos EUA e Canadá e vira documentário da Netflix (EyeEm/Getty Images)

Cogumelo alucinógeno: mercado cresce nos EUA e Canadá e vira documentário da Netflix (EyeEm/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 18 de agosto de 2022 às 06h00.

É difícil não notar a bandeira verde brilhante drapejada no teto do café Coca Leaf (“Folha de coca”, na tradução do inglês) de Vancouver, no Canadá, que declara: “DISPENSÁRIO DE COGUMELOS”. Lá dentro, hippies idosos, empresários solitários e jovens usando streetwear examinam caixas de vidro cheias de uma dúzia de variedades de cogumelos “mágicos”, com nomes como Penis Envy e Jedi Mind Trick (“Inveja do pênis” e “Truque mental jedi”, respectivamente).

Também no menu da pequena loja, localizada na rapidamente gentrificante Chinatown da cidade, estão chocolates de cogumelos e cápsulas de microdosagem, bem como ofertas mais avançadas, como tinturas de LSD e cartuchos de vape contendo DMT (ingrediente ativo da ayahuasca). Para comprar um produto, é só mostrar um documento de identidade, assinar um formulário de saúde e — se quiser — deixar um comentário no Google.

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Os cogumelos mágicos estão se movendo das margens para o mainstream. Nos últimos dois anos, pelo menos seis dispensários de cogus abriram em Vancouver, que está se tornando um campo de testes-chave para uma reforma política mais ampla e onde as drogas pesadas em breve serão descriminalizadas. Lojas semelhantes — ainda que mais discretas — estão abrindo em cidades dos Estados Unidos em que os cogumelos foram descriminalizados, como Oakland, na Califórnia, e Portland, no Oregon.

As vendas comerciais ainda são ilegais nos Estados Unidos e no Canadá, mas essas empresas do mercado ilícito operam por meio de brechas, incluindo isenções de liberdade religiosa, programas de presentes e eventos pop-up. Os vendedores digitais proliferam nas mídias sociais, onde contas anônimas vendem abertamente produtos de marcas bastante conhecidas.

“Os traficantes de drogas sempre ganham”, declara Dana Larsen, proprietário do Coca Leaf Cafe, um ativista da cannabis que diz que dispensários como o dele são fundamentais para o avanço da legalização dos cogumelos, normalizando o uso recreativo do produto. O dispensário teve uma audiência em um tribunal para tratar de problemas com o licenciamento em junho. “Estamos pressionando o sistema legal a melhorar.”

Os cogumelos mágicos são a estrela-mor da revolução psicodélica em torno da saúde mental e do bem-estar. A psilocibina — o principal composto alucinógeno de mais de 180 cepas de cogumelos — vem mostrando resultados impressionantes para problemas como depressão, ansiedade e dependência de drogas e álcool, que há tempos têm se provado resistentes a tratamentos médicos já consolidados.

Um estudo publicado na Nature em julho também descobriu que aqueles que ingerem cogumelos de psilocibina em pequenas quantidades — técnica conhecida como microdosagem — têm relatado melhoras no humor e na saúde mental.

De modo semelhante, a cobertura da mídia popular, como o documentário Fantastic Fungi, de Paul Stamets, e o livro de Michael Pollan Como Mudar Sua Mente (hoje uma série hypada na Net­flix), vem ajudando a ampliar a aceitação dessas substâncias como ferramentas para a auto-otimização.

Mas quem consegue capitalizar em cima dos cogumelos mágicos — e como se obtém acesso a eles — continua sendo uma pergunta crucial. O mercado global de psilocibina farmacêutica, liderado por empresas como a Johnson & Johnson, deverá atingir 6,9 bilhões de dólares até 2027, segundo a Data Bridge Market Research.

O vasto movimento popular para descriminalizar os cogumelos de psilocibina vem dando fôlego à questão. Logo depois de Denver abrir o caminho em 2019, Oakland, Washington, Detroit, Seattle e Santa Cruz, na Califórnia, o seguiram. Quinze cidades ou municípios já fizeram o mesmo, e projetos de lei semelhantes estão em análise em escala estadual na Califórnia, no Havaí e em Nova Jersey.

Embora as leis atuais protejam apenas o uso pessoal de psicodélicos, a descriminalização vem promovendo um clima no qual os operadores subterrâneos estão se engajando em vendas, distribuição e serviços diretos ou auxiliares, com ousadia crescente.

“É uma loucura o que está acontecendo”, diz Alli Schaper, cofundadora da Multiverse, um empório online voltado para marcas legais que vendem cogumelos não psicoativos (ou adaptogênicos). “Existem centenas de marcas de microdosagem [psicodélicas] sendo vendidas no Shopify, e, mesmo que seja ilegal, elas estão lá para ver se são pegas.”

Outros veteranos da indústria relatam o crescimento de círculos comunitários em que os psicodélicos são administrados por curandeiros subterrâneos, bem como mercados de agricultores pop-up e seshes (corruptela de section, “seção”, na traduçao do inglês) — eventos secretos em que os participantes pagam uma taxa de entrada e podem comprar cogumelos diretamente dos produtores.

“Há muito investimento clandestino em áreas hoje subterrâneas ou numa área cinzenta do mercado”, diz Ismail Ali, diretor de políticas e advocacia da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos, a notável organização sem fins lucrativos que hoje está patrocinando vários testes clínicos para terapia assistida com psicodélicos. “A descriminalização traz um nível de proteção para comportamentos que já estão ocorrendo.”

Essas mudanças na lei colocam o uso pessoal e a posse como as menores prioridades para a aplicação da lei, reclassificando tais atos como penalidades civis sujeitas a multa em vez de prisão. Ativistas dizem que as medidas tiveram um impacto direto nos riscos que os operadores subterrâneos estão mais dispostos a assumir.

“As pessoas estão se sentindo mais confiantes de que não vão para a cadeia, tanto que estão abrindo vitrines”, diz Nathan Howard, da Plant Medicine Healing Alliance, um grupo de ativistas em Portland. “Eles só não têm grandes placas de néon ainda, mas são definitivamente acessíveis se você conhece as pessoas certas.”

Em Oakland, uma igreja psicodélica chamada Zide Door opera como um dispensário de cogumelos de fato por meio da isenção federal de liberdade religiosa. Ela exige que os clientes assinem um termo declarando que aceitam plantas psicodélicas como parte de sua prática espiritual.

No meio de uma rua industrial, o estabelecimento — um repórter experiente em cobertura de cannabis comparou o lugar a um clube de punk rock no porão — está se tornando parte integrante da crescente comunidade psicodélica da cidade. Apesar de uma operação policial em 2020, a igreja continua funcionando.

“O volume definitivamente aumentou”, concorda Travis Tyler Fluck, cofundador da Denver Mushroom Cooperative e líder do movimento Decriminalize Denver. “Há encontros em grupo em que as pessoas ficam felizes em compartilhar cogumelos e falar sobre essas coisas. É uma fonte de orgulho.”

Os líderes do movimento dizem que a descriminalização é um passo importante a ser dado antes da legalização, porque possibilita que indivíduos e empresas menores entrem no jogo a um custo menor do que poderia acontecer com a legalização imediata e ampla e a burocracia subsequente.

“Isso permite que as pessoas se envolvam em um nível pequeno sem ter de se envolver com empresas logo de cara”, afirma Carlos Plazola, que cofundou a influente organização Decriminalize Nature em resposta ao que vê como os erros na legalização da cannabis.

Por causa de regulamentações rígidas, altas taxas de impostos e altas taxas de licenciamento, a indústria de cannabis recreativa é dominada hoje por grandes empresas com investidores endinheirados, enquanto a queda nas margens de lucro também tem dificultado a sobrevivência das lojas pequenas de comerciantes locais.

Como resultado, muitos operadores de cannabis há tempos no ramo optaram por permanecer fora do radar. O mercado ilícito de maconha da Califórnia é hoje de 8 bilhões de dólares, o dobro do tamanho de seu mercado legal.

No Oregon, único estado em que a psilocibina foi legalizada para uso terapêutico, todos os residentes com mais de 21 anos terão acesso a centros de terapia de cogumelos a partir do próximo ano, quando a lei passar a valer.

Nesses centros, os clientes não poderão comprar cogumelos para uso doméstico. Em vez disso, eles terão de passar por um processo envolvendo a supervisão de um facilitador licenciado treinado sob um programa aprovado pelo governo, que ajudará a administrar os cogumelos e orientará os consumidores nas sessões. Embora o preço dessas terapias ainda não tenha sido definido, é provável que vá custar vários milhares de dólares e que não seja coberto pelos planos de saúde.

O desafio para os reguladores é como criar uma estrutura que permita às empresas legais de cogumelos prosperar contra a concorrência feroz do submundo. “Sabemos que há um mercado não regulamentado, assim como há séculos de uso por comunidades indígenas”, diz Angela Allbee, gerente da seção de serviços de psilocibina da Oregon Health Authority (OHA), a agência governamental encarregada de conceder licenças para centros de terapia, cultivadores, laboratórios de testes e prestadores de serviços.

Allbee diz que a OHA está se envolvendo em engajamento de comunidades para incentivar os participantes no mercado subterrâneo a embarcar na iniciativa. A agência também está projetando um sistema de rastreamento “do esporo à porta” para evitar que uma superabundância de produtos seja desviada para o espaço não regulamentado. Será semelhante ao atual sistema “da semente à venda”, conhecido como Metrc, que rastreia a atividade comercial da cannabis em toda a cadeia de distribuição.

Alguns especialistas estão preo­cupados com o fato de que o atual mercado subterrâneo não possui um controle de qualidade e outras medidas de segurança. “É o Velho Oeste, e você pode fazer o que quiser”, diz Ophelia Chong, consultora de cannabis e fundadora da Asian Americans for Cannabis Education. “Não há regulamentações ou testes [federais], é tudo em dinheiro vivo, e não há ninguém a quem eles se reportem.”

Apesar dessas preocupações, é provável que o mercado cinza continue a atender grandes segmentos da população que não têm como pagar pela terapia legal com cogumelos. “Esse modelo está seguindo o sistema de saúde com fins lucrativos, que não é acessível à maioria das pessoas”, diz Alex Wilson, organizador principal da Decriminalize Nature Portland.

Alguns ativistas também estão se tornando empreendedores clandestinos: Reggie Harris, um membro-chave do movimento de descriminalização de Oakland, abriu uma empresa de testes de potência de cogumelos chamada Hyphae Labs, que sediou a primeira Copa da Psilocibina em 2020.

“No momento, temos nos beneficiado da ambiguidade, porque isso mantém as grandes empresas fora”, diz Harris. “Você não vai conseguir um investidor por 100 milhões de dólares num cenário em que as regras podem mudar amanhã.”

Ele também organiza com frequência eventos educacionais na Califórnia que se concentram em pessoas negras. “A descriminalização permite que pessoas como eu e outros veteranos comecem a entrar no jogo”, diz ele. “Isso nos dá uma vitrine.”

Algumas marcas estão aguardando a legalização federal antes de entrar no mercado psicodélico, optando por estabelecer as bases com cogumelos funcionais e não psicoativos, como chaga e reishi. Os irmãos Chris e Joe Claussen, cofundadores da First Person, começaram a dar microdoses de cogumelos psicodélicos ao pai depois de acompanhar sua queda na demência.

“Vimos alguns resultados surpreendentes e começamos a nos microdosar e a compartilhar com nossos amigos”, diz Joe. “As pessoas estavam dizendo que têm curado suas enxaquecas e que se sentem melhores com seus filhos.” Hoje, a First Person vende cápsulas de cogumelos funcionais e outros nootrópicos com supostos atributos “aprimoradores do cérebro” que visam as vias dos neurotransmissores.

A FP adquiriu recentemente uma empresa de cultivo, pesquisa e desenvolvimento na Jamaica, onde os cogumelos mágicos são legais, e iniciou uma fazenda de cogumelos adaptogênicos no estado de Washington. A First Person também entrou com pedido de patente e tem uma licença pendente da Drug Enforcement Administration para cultivar cogumelos nos Estados Unidos. A legalização, diz Chris, “vai ser uma p... bagunça, com 10.000 marcas tentando estabelecer seu nome no mercado. Estamos criando uma marca maior começando do zero, indo do esporo para a loja.”

Por enquanto, os operadores do mercado ilegal vêm colhendo os benefícios do crescente interesse de novos consumidores que podem não ter o número de um traficante de drogas em seu telefone. Larsen, do Coca Leaf, diz que seu dispensário de cogumelos recebe cerca de 100 clientes e 5.000 dólares por dia em vendas. “Há muita receita potencial nesse tipo de negócio”, diz ele. “Acredito que vamos ver mais centenas de lojas nos Estados Unidos e no Canadá.”

“A legalização vai acontecer, e aí você vai ver também as fontes regulares de capital e os empresários”, acrescenta Howard, da Plant Medicine. “Mas há uma demanda tão grande por coisas que realmente funcionem que o setor está decolando — com ou sem o apoio do governo.”


Tradução de Fabrício Calado Moreira

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