Sala de telemedicina do Hospital Albert Einstein, em São Paulo: 80.000 consultas virtuais foram realizadas em 2018 (Daniela Toviansky/Exame)
Lucas Agrela
Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05h34.
Última atualização em 25 de outubro de 2019 às 15h06.
Ver, sentir e escutar. Esses três verbos sempre estiveram muito ligados ao atendimento médico. Mas nem sempre o médico precisa estar na frente do paciente para atendê-lo. Com o avanço da tecnologia, o acesso à saúde também vem se tornando digital. A internet, como fez com muitos setores, agora pode conectar médicos a pacientes a distância. Os Estados Unidos são o país mais avançado nesse campo. Segundo a previsão da consultoria Forrester Research, o número de consultas médicas realizadas a distância deverá superar o de atendimentos presenciais em 2020.
No Brasil, o tema ainda está em discussão. Em fevereiro, o Conselho Federal de Medicina chegou a aprovar uma resolução que permitia telemedicina e atualizava as regras anteriores, de 2002 — vistas como obsoletas para um mundo em que o smartphone é onipresente. Em menos de 20 dias, a medida foi revogada por causa das críticas da comunidade médica. O tema da telemedicina, porém, é urgente. Segundo a Organização Mundial da Saúde, uma das dez principais ameaças à saúde em 2019 é a falta de acesso à atenção primária, algo que poderia ser resolvido com a tecnologia.
Uma das maiores empresas de telemedicina é a americana Teladoc. Ela oferece atendimento a pacientes por meio de videoconferências com um médico da família. Nas teleconsultas, os pacientes podem receber assistência para problemas de saúde comuns, como enxaqueca, hipertensão e diabetes. No ano passado, 2,6 milhões de atendimentos a distância foram realizados, 80% mais do que no ano anterior. Segundo uma pesquisa com clientes do serviço, o índice de resolução de problemas é de 92%.
A Teladoc diz estar pronta para atuar no Brasil como faz nos Estados Unidos, mas espera uma regulação clara da telemedicina. Por enquanto, a empresa trabalha aqui apenas com orientação médica, sem prescrição de medicamentos por telefone. No futuro, com uma nova regulamentação esperada para 2020, a teleconsulta será usada tanto para fazer a triagem de pacientes para encaminhamento a especialistas quanto para prescrever remédios.
Nos Estados Unidos isso já ocorre. Se o paciente precisa de um remédio que requer receita, o médico pode prescrevê-lo em uma teleconsulta e o paciente pode retirar o medicamento em uma farmácia cadastrada. De acordo com Jean Marc Nieto, diretor executivo da Teladoc no Brasil, apesar de a regulação ainda não estar avançada, a ambição da companhia é tornar-se global. “Um estrangeiro que estiver nos Estados Unidos poderá ser atendido por um médico em sua língua e conseguirá uma prescrição”, diz Nieto. Lá, 76% dos hospitais já usam a telemedicina, que é regulamentada em mais de 30 estados americanos.
Não é apenas nos Estados Unidos que a prática vem crescendo. De acordo com a consultoria americana Tractica, o número de consultas remotas, que era de 20 milhões em 2014, chegará a 158 milhões em 2020, um aumento de quase oito vezes. Com mais consultas, cresce também o faturamento das empresas que atuam na área. No ano passado, as receitas no setor de telemedicina no mundo foram de 38 bilhões de dólares e a estimativa é que cheguem a 45 bilhões neste ano — um crescimento de 18% —, segundo a consultoria americana Business Research Company.
Um aumento considerável nas consultas a distância também ocorre no Brasil. Desde 2012, o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, atua de forma experimental com telemedicina. A instituição conecta o médico e o paciente por vídeo. Mas, como a regulação não permite uma consulta remota, há médicos dos dois lados da videochamada. A ideia é oferecer atendimento com médicos especializados para determinados pacientes, que são recebidos no hospital por um clínico-geral. Em 2018, foram realizadas 80.000 consultas pelo Albert Einstein, duas vezes mais do que no ano anterior. O serviço também é oferecido a empresas e, nesse caso, o paciente não precisa se deslocar até o hospital em quase nenhuma situação. A consulta é intermediada por um médico no próprio local de trabalho.
Outras companhias do ramo da saúde estão de olho na telemedicina. É o caso da Philips, fabricante de equipamentos médicos. A empresa conta com tecnologias para digitalizar o atendimento, como prontuário eletrônico e armazenamento de informações em nuvem. Para César Giannotti, diretor de soluções corporativas da Philips na América Latina, a telemedicina permite fazer um atendimento contínuo da população. “As plataformas de saúde avançaram e a tecnologia de dados foi para a nuvem. Tudo está preparado para atender pacientes, falta apenas a regulação”, diz Giannotti.
Enquanto a prática continua limitada, empresas como a Brasil Telemedicina, baseada em Campinas, no interior de São Paulo, dão um jeito de atender pacientes a distância como podem — com análise de laudos à distância, consulta entre médicos ou com o intermédio de farmacêuticos. Outra empresa é a startup FalaFreud, conhecida por seu aplicativo para conectar psicólogos e pacientes. Fundada pelos brasileiros Renan Pupin e Yonathan Faber, a startup lançou em outubro um aplicativo chamado FalaDoc. Voltado para empresas, a startup espera com o app reduzir o número de idas de funcionários a consultórios ao conectá-los com médicos da família, terapeutas, nutricionistas e até personal trainers. O custo mensal por funcionário será de 90 reais.
GANHO DE EFICIÊNCIA
O Reino Unido é um dos países que apostam na telemedicina para melhorar a eficiência do serviço público. No plano de longo prazo para a saúde pública, anunciado em 2018, o Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) prevê que os atendimentos digitais com clínicos-gerais poderão reduzir até um terço do número de visitas aos hospitais nos próximos cinco anos. No país, são feitos 400 milhões de consultas presenciais por ano. A medida ajudaria o serviço de saúde a economizar 1 bilhão de libras no período. Por meio de um site ou de um atendimento telefônico no serviço NHS 111, quem estiver passando mal e não souber o que fazer poderá obter aconselhamento a distância a qualquer dia ou hora. Se necessário, poderá marcar uma consulta.
Além de ampliar o acesso à saúde, a telemedicina traz oportunidades. Para o consultor na área de saúde Guilherme Hummel, coordenador científico da organização sem fins lucrativos Healthcare Information and Management Systems Society, a regulamentação da telemedicina pode movimentar 8 bilhões de dólares no Brasil com o investimento de grandes empresas e startups no ramo. “A telemedicina é importante porque a oferta de médicos longe de grandes centros urbanos é menor do que a demanda”, afirma Hummel. Para Leonardo Giusti, sócio da consultoria KPMG, com a aprovação da regulamentação da telemedicina no Brasil, as entidades médicas públicas e privadas poderão melhorar o acesso e os custos do serviço de saúde. Mas, antes, elas precisarão vencer alguns desafios. “As grandes empresas terão de se reorganizar para mudar a cultura interna e a forma de trabalhar. O maior desafio é convencer o corpo clínico”, diz Giusti.
Em julho, o plano de saúde Amil lançou um serviço de atendimento por teleconferência em vídeo para os 180.000 clientes do plano Amil One. Após o anúncio, no entanto, a Associação Médica Brasileira fez uma denúncia para a Agência Nacional de Saúde Suplementar por causa da ausência de amparo legal para a prática da telemedicina. “A AMB combate o atendimento a distância devido às suas limitações. Há casos em que nada substitui a consulta presencial. Porém, uma vez estabelecidos os parâmetros legais, sem oferecer risco à saúde do paciente, não resta dúvida de que a telemedicina pode ser aplicada”, diz Lincoln Ferreira, presidente da associação. A tecnologia, como se vê, está pronta. O desafio para levar o atendimento a distância aos brasileiros é puramente regulatório.