Revista Exame

O legado tech da COP30: como o encontro global de ambientalistas pode acelerar as startups do Norte

A escolha da capital do Pará para sediar o maior encontro global de ambientalistas em 2025 já projetou a imagem do Brasil no mundo. Daqui para a frente, o evento deve acelerar a abertura de startups com foco na biodiversidade da Amazônia

Estação das Docas, em Belém: além de gastronomia e turismo, a orla da capital paraense vai ganhar um hub para startups (Leandro Fonseca/Exame)

Estação das Docas, em Belém: além de gastronomia e turismo, a orla da capital paraense vai ganhar um hub para startups (Leandro Fonseca/Exame)

Leo Branco
Leo Branco

Editor de Negócios e Carreira

Publicado em 22 de agosto de 2024 às 06h00.

A trajetória da amapaense Bruna Freitas, de 30 anos, é exemplar de uma nova geração de empreendedores dispostos a montar negócios para gerar renda na Amazônia sem derrubar a floresta. Freitas é fundadora da Yara Couro, uma startup dedicada a comprar as peles de peixes até então jogadas no mar após a descamação. Depois de uma limpeza e um processo de tingimento com corantes extraídos da própria natureza, o material vira um couro ideal para bolsas ou carteiras.

A Yara Couro foi aberta em outubro de 2022, após um período no qual Bruna buscou resgatar a própria origem. Nascida em Santana, cidade colada à capital amapaense, Macapá, ela fez faculdade de publicidade em Belém. Formada, mudou-se para Brasília e Portugal em busca de oportunidades de trabalho. “Foram boas experiências, mas sentia falta de algo mais”, diz ela. “Olhando de longe, via muita gente falando da Amazônia, e eu me perguntava como aproveitar essa riqueza natural.”

De volta ao Amapá, ela ouviu de pescadores locais que 18 toneladas de pele de peixe são descartadas por dia só no Amapá. No total, 250 metros quadrados iam para o lixo. Depois de cruzar isso tudo com o fato de o mercado de couro natural movimentar 800 milhões de dólares todos os anos no mundo, Freitas teve um momento digno de epifania. O passo seguinte foi juntar-se a sócios com expertise para criar uma técnica de beneficiamento do couro de forma sustentável, e a Yara Couro veio ao mundo. Com um site caprichado, a inovação do produto e as boas conexões dos sócios dentro e fora do Brasil, a Yara chamou a atenção de investidores.

Em outubro do ano passado, o negócio captou 2 milhões de reais de um fundo dedicado à bioeconomia. A quantia serviu para ampliar a produção da Yara a tempo de uma oportunidade histórica para um negócio desse tipo. Em novembro do ano que vem, Belém vai sediar a 30a edição da COP, a Conferência das Partes, o maior encontro para agenda climática do mundo. O evento vai atrair delegações de 160 países e mais de 50.000 participantes, entre eles Freitas. “Será uma vitrine importantíssima”, diz.

Bruna Freitas, da Yara Couros: após carreira em Brasília e em Portugal, vida de “startupeira” no Amapá (Yara Couros/Divulgação)

O sucesso de empreendedores como Bruna Freitas tem tudo para ser um dos principais legados da COP em Belém. A pouco mais de um ano do evento, a capital paraense virou um canteiro de obras. Prédios abandonados estão virando hotéis. Avenidas estão ganhando faixas exclusivas de ônibus numa tentativa de aliviar o trânsito carregado da metrópole de 1,3 milhão de habitantes. Numa área próxima ao aeroporto, um parque de 560.000 metros quadrados — o equivalente a três Maracanãs — está sendo erguido do zero para sediar boa parte dos encontros da COP.

Na orla de Belém está, talvez, a obra mais importante de todas. A área já sedia a Estação das Docas, uma passarela com bares e restaurantes instalados em três armazéns às margens do Rio Guamá. No passado, por ali funcionou um dos portos mais movimentados do Brasil. Agora, outros sete terminais fluviais estão sendo reformados para virar o Porto Futuro 2, um projeto de 300 milhões de reais do governo estadual com praças, museus e outras atrações para levar as pessoas de volta à região. Um dos galpões desativados vai virar um hub de startups. “A ambição é firmar Belém como polo de negócios da bioeconomia”, diz Mauro O’de Almeida, secretário de Meio Ambiente paraense.

A COP vem num momento de afirmação da Amazônia como destino de startups. A presença de empresas com pegada tecnológica por ali está aumentando. O censo mais recente da -Abstartups, a associação do setor, mapeou 121 startups ativas nos sete estados da Região Norte em 2023, alta de 37% em 12 meses. A concentração de startups em Belém, Manaus e Macapá já fez essas cidades criarem seus próprios “vales”, apelido para destacar a comunidade empresarial sediada ali tal qual fazem os negócios do Vale do Silício. (Açaí Valley, Jaraqui Valley e Tucuju Valley são, respectivamente, as marcas das três.) Em fevereiro deste ano, Macapá foi sede do Startup20, um encontro com delegações de “startupeiros” dos países do G20, o grupo das 20 maiores economias do mundo.

A comparação com outras regiões do país, contudo, mostra que falta muito ainda para a Amazônia virar de fato um celeiro de startups. Somados, os sete estados da Região Norte têm apenas 4,7% das empresas de tecnologia brasileiras. É uma fatia inferior à da população (8% dos brasileiros, ou 18 milhões de pessoas, moram no Norte) e mesmo à da riqueza local (6% do PIB vem da região). Santa Catarina, com 7 milhões de habitantes, tem mais que o dobro de startups da Amazônia inteira. A promessa com a COP é de uma visibilidade capaz de atrair mais gente para o ecossistema. “A descentralização dessas conversas, especialmente para o Norte, é essencial para garantir que a inovação alcance todas as regiões, não ficando restrita apenas aos grandes centros”, diz Ingrid Barth, presidente da Abstartups.

Círculo virtuoso

O fato é que gente talentosa da Região Norte está prestando atenção no papo das startups de outros locais para entender o que faz sentido levar para a Amazônia. No início de agosto, Belém sediou a primeira edição do Bioeconomy Amazon Summit, um encontro promovido pelo Pacto Global, aliança empresarial capitaneada pela ONU, além do fundo paulistano KPTL. Pelos corredores de um centro de eventos que sediará a COP no ano que vem, investidores brasileiros e estrangeiros trocaram cartões com pelo menos 60 empreendedores da Amazônia que montaram barraquinhas para expor produtos por ali, como foi o caso de Bruna Freitas, da Yara Couro. “As lideranças empreendedoras da Região Norte estão mais preparadas em seus pitches”, diz Renato Ramalho, um dos sócios da KPTL. “Podemos estar entrando num círculo virtuoso de mais investidores olhando para a Amazônia.”

Marcelo Salazar, da Mazô Maná: geração de renda para cadeias extrativistas da floresta (Isa Brant/Divulgação)

Um termômetro importante sobre a atenção dispensada ao tema está na popularidade dos cursos e treinamentos aos empreendedores da região. Programas do Sebrae em parceria com faculdades e grupos de interesses locais estão criando espaços para startups em cidades pequenas e médias até recentemente sem tradição no tema, como Santarém, no Pará; Tefé, no Amazonas; e Ji-Paraná, em Rondônia.

Uma das iniciativas de fomento ao empreendedorismo mais abrangentes é a Jornada Amazônia, uma espécie de aceleradora de startups, criada em 2021 após um investimento de 50 milhões de reais de grandes empresas, como a mineradora Vale e os bancos Bradesco, Itaú e Santander. À frente da Jornada Amazônia está a Fundação Certi, uma organização do terceiro setor aberta em 1984, em Florianópolis, por professores da Universidade Federal de Santa Catarina imbuídos da missão de colocar no mercado a inovação feita pela Academia.

A pegada empreendedora da Certi é tida como um dos motivos para Florianópolis ter virado um polo de tecnologia. Atualmente, a cidade tem sete startups para cada 1.000 habitantes, a maior densidade entre as capitais, segundo estudo do fDi Intelligence, braço de análise de dados do jornal britânico -Financial Times.

Bioeconomy Amazon Summit, em Belém: encontros entre investidores e empreendedores (Gil Silva/Divulgação)

Agora, um dos focos da Certi é ampliar o impacto para outras geografias. “Guardadas as devidas proporções, a ideia é manter a floresta em pé compartilhando o que deu certo no ecossistema de startups de Florianópolis”, diz o biólogo Marcos Da-Ré, diretor-executivo da Jornada Amazônia. Pelo programa, há opções para todos os estágios de maturação de um negócio. Quem ainda só tem uma ideia pode participar de cursos sobre como tirar um produto do papel ou fazer uma boa negociação comercial. Quem já tem algo pronto pode receber aportes de até 70.000 reais para deslanchar o negócio, além de ter a chance de conversar com potenciais investidores.

Até a COP do ano que vem, a meta da Jornada Amazônia é formar 3.000 empreendedores, além de colaborar para a abertura de 200 startups e investir em outras 100. Ao total, 20.000 pes-soas devem se envolver no projeto, entre “startupeiros” e curiosos. Há conversas para a Jornada Amazônia ocupar um espaço no hub de startups em obras na orla de Belém. “Uma em cada três cidades da Amazônia Legal já tem representantes em algumas de nossas atividades”, diz Da-Ré. “Estamos só no começo.” 

No longo prazo, o empreendedorismo da Amazônia tem grandes chances de ser uma força importante para a preservação da floresta. Basta dar uma olhada no perfil das startups. A região concentra 15% dos negócios de tecnologia com algum impacto ambiental no país — insumos para agricultura sustentável, metodologias para a reciclagem do lixo, entre outros —, de acordo com pesquisa recente do Sebrae. Quase metade das startups da Amazônia depende, em maior ou menor grau, da biodiversidade da floresta.

Vide o caso da paraense Mazô Maná, fabricante de um “superalimento”, uma mistura em pó com 13 frutos da Amazônia, como cumaru, camu-camu, cajá e cupuaçu. O alto valor proteico das substâncias atraiu praticantes de esportes: a mistura serve para shakes pré e pós-treino. À frente da Mazô Maná está o químico paulista Marcelo Salazar, que trocou o trabalho em ONGs na região de Altamira, no sul do Pará, para empreender.

Aberta em 2022, a Mazô Maná vende produtos em um e-commerce próprio e em lojas de suplementos no eixo Rio-São Paulo. “Estamos gerando valor a cadeias extrativistas da Amazônia”, diz Salazar. Uma parte do lucro pela venda dos shakes — um kit com 2 quilos do pó custa aproximadamente 400 reais — é revertida aos 3.200 trabalhadores rurais responsáveis pela extração das matérias-primas. “Acredito no conceito de equity for communities, ou seja, as comunidades fazem parte do nosso negócio”, diz Salazar.

Protótipo do “barco-avião” Volitan, da AeroRiver: promessa de solução para os problemas logísticos da Amazônia (AeroRiver/Divulgação)

Algumas startups apostam na biodiversidade da Amazônia para inovação de ponta. O acreano Ricardo Marques cursa neste momento um Ph.D. em biotecnologia na Universidade Federal do Ceará sobre o uso de plantas da floresta para a produção da ibogaína. A substância é responsável por uma sensação de bem-estar físico e mental e é cada vez mais utilizada na medicina para tratamentos de dependência química e depressão.

Até agora a ibogaína consumida no mundo vem de arbustos (alguns alucinógenos) extraídos em regiões de mata em países africanos como Camarões, Congo e Angola. A cotação nos mercados globais é proibitiva: o grama da ibogaína custa 1.000 dólares, em média. Com isso em mente, Marques abriu a Hylaea, dona de uma técnica para extrair ibogaína de plantas da Amazônia cujos nomes são mantidos em segredo absoluto. “É a minha fórmula da Coca-Cola”, brinca o empreendedor, que aguarda obter todas as licenças para começar as vendas. “Com essas plantas será possível fazer um tratamento com ibogaína com 20% do custo cobrado hoje ao redor do mundo.”

Barco-avião

Daqui para a frente, a expectativa de quem empreende hoje na Amazônia é poder fincar as raízes de seus negócios na região. Dependendo do tipo de empreendimento, trata-se ainda de um sonho. Vide o caso do engenheiro aeronáutico manauara Lucas Guimarães e Souza. Ele é fundador da AeroRiver,  fabricante de um equipamento com um quê de barco e outro de avião. Chamado de Volitan, o “barco-avião” foi desenhado para voar por cima do leito dos rios e a uma altura de 2 a 5 metros do solo. A intenção é resolver de uma vez por todas os problemas logísticos da Amazônia. “O transporte por barcos é lento e trava o potencial da região”, diz ele. A promessa do Volitan é de uma velocidade média de 150 quilômetros por hora e de transportar até dez passageiros ou 1 tonelada de carga.

Estudante do ITA, a mais prestigiada escola de engenharia do país, Guimarães e Souza abriu a AeroRiver com o colega de ITA e conterrâneo Felipe Bortolete. Ambos captaram 10 milhões de reais com a Finep, agência do governo federal para inovação. Um protótipo do Volitan está sendo aperfeiçoado nos laboratórios da incubadora do ITA, em São José dos Campos, no Vale do Paraíba, depois de passar por testes na região amazônica. Por isso, atualmente os sócios vivem na ponte-aérea entre Manaus, onde está o time comercial, e São Paulo, sede da linha de produção.

O desejo é, em breve, concentrar todas as equipes em Manaus. “É ali que estão os nossos clientes”, diz Guimarães e Souza, que já ouviu dezenas de empresários amazonenses interessados em comprar um Volitan. “Quando conseguirmos ter inovação de ponta disseminada na Amazônia, vamos ter um impacto ainda mais relevante.” No que depender da vontade de empreendedores como ele, esse futuro está cada dia mais perto. 


A criação de um ecossistema

As metas do Jornada Amazônia, projeto da Fundação Certi que engloba cursos e aportes de dinheiro para formar lideranças empreendedoras da Região Norte, para a COP30, em novembro de 2025

20.000 moradores da Amazônia impactados pelo projeto

3.000 empreendedores formados

200 startups abertas

100 aportes de capital semente


O governador e as startups

Clécio Luis Vieira, governador do Amapá: “Qualquer discurso sério não pode considerar a Amazônia de pé com nosso povo com fome. Precisamos de empresas” (Startup20/Divulgação)

O governador do Amapá, Clécio Luis Vieira (Solidariedade), é filho de comerciantes, chegou a trabalhar com a família, mas acabou seguindo carreira política. Em seu primeiro mandato após duas gestões na prefeitura de Macapá, Vieira elencou o apoio a startups como prioridade. Em fevereiro, ele foi o anfitrião do Startup20, encontro de negócios de tecnologia dos países do G20 levado para Macapá numa articulação com a Abstartups. Para ele, só a tecnologia vai superar os problemas sociais da Amazônia. Por isso, tem frequentado eventos de inovação país afora, como o Web Summit, no Rio de Janeiro. Na conversa a seguir, ele explica a lógica dos investimentos no tema.

Por que o interesse pelas startups?

O Amapá é o estado mais setentrional do país. Está isolado porque não há estradas que o conectem ao restante do Brasil. Só se chega de avião ou barco. Somos o estado mais preservado do país: 97% da nossa floresta é nativa e está em pé; 73% tem alguma proteção legal. Todas as reservas indígenas estão protegidas e sem conflito. Se há algum lugar que pode ser apresentado como exemplo ao Brasil no quesito ambiental é o Amapá. Aí vem nossa contradição: temos também alguns dos piores indicadores sociais. Qualquer discurso sério não pode considerar a Amazônia de pé com nosso povo com fome. Precisamos de empresas.

O que explica essa realidade?

O Amapá foi território federal de 1943 até 1991. A União dava tudo para a gente: saúde e educação de qualidade, pleno emprego, tudo. Só que havia um problema colateral se acumulando: a gente não precisava empreender. Quando viramos estado e tivemos a necessidade de andar com as nossas próprias pernas, foi como se tivessem tirado o nosso tapete. Só tínhamos a União como fonte de riqueza. Aí perdemos movimentação econômica. Atualmente, 80% da arrecadação do estado vem do governo federal. Agora, estamos reconstruindo a cultura empreendedora.

Como seu governo quer fomentar empreendedores?

A gente já tem um ecossistema de startups interessante. Existem empreendedores que começaram a fazer startup, provavelmente sem saber que era startup. Coloquei o fomento ao tema no plano de governo. Contratamos uma delas para resolver questões técnicas do orçamento estadual. Agora, vamos conceder um hotel construído nos anos 1940 e que está abandonado para a iniciativa privada. Além de hotel, o espaço vai sediar startups.

E a COP em Belém impacta os seus planos?

O ideal seria que a gente fosse uma espécie de subsede da COP, mas isso não está sob nosso controle. Quem define isso é a ONU. Nosso interesse é ter eventos pré-COP. E estamos avançando na ideia de uma COP da Amazônia. Claro que a sede é Belém, mas o importante é que toda a região se sinta representada no evento. Queremos chegar a Belém com uma presença importante.

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